sexta-feira, 13 de junho de 2014

Rotos e Nus

Apesar do disfarce, toda a gente teve consciência de que alguma coisa teria de mudar, que o rumo que o partido levava até então iria redundar numa escassa vitória nas legislativas, embaraçosa para o partido, perigosa para a governabilidade. Não foi, como Assis logrou dizer sem denunciar sequer um leve sorriso, uma vitória de Seguro; foi, sim, uma vitória apesar de Seguro. A contradição entre o dia das eleições, em que o PS festejava efusivamente uma vitória curta contra o grupo de governantes mais contestado da democracia e o entusiasmo com que abraçaram a expectativa de Costa avançar para a liderança foi deliciosa.

Ninguém sai limpo deste processo. Por se ter seguido a uma vitória, ainda que escassa, quando houve um timing mais adequado anteriormente para avançar, António Costa consporcou-se no processo de candidatura, perdendo um pouco a aura sebastianista que vinha alimentando. Seguro não ganhará, mas sonha em reforçar a sua liderança partidária, num processo eleitoral confuso e inadequado saído do seu brilhante encéfalo, e com a argúcia dos grandes estadistas, preparar-se-á para ser um primeiro-ministro sem capacidades e sem poder parlamentar, que seria chacinado pelos seus iludidos eleitores quando estes se apercebessem do obsceno vazio intelectual deste indivíduo alienado.

Enquanto isto, o PSD esfrega as mãos e apresenta uma vergonhosa falta de brio e uma memória tão curta que é só não choca por já sabermos que na política os escrúpulos são mito:
Juro da dívida dispara com demissão de Portas - 2 de Julho de 2013

terça-feira, 10 de junho de 2014

A Incapacidade da Incompreensão


"Na minha consciência não encontro uma razão para me demitir" - António José Seguro

O milagre da vida é um motivo óbvio de estupefacção. Entre duzentos e seiscentos milhões de espermatozóides são libertados numa única ejaculação, dos quais, na cruel maioria dos casos, apenas um atingirá o objectivo glorioso da fusão sagrada com o óvulo. As probabilidades que são extraídas destes números devem chocar as sensibilidades daqueles que se julgam azarados e provocar lampejos eufóricos de comemoração em qualquer ser humano racional.

No entanto, nenhuma outra manifestação miraculosa da vida causa tanta estupefacção quanto a existência de António José Seguro. Esse espanto não advém das probabilidades perturbantes que envolvem gâmetas e gónadas, mas da incapacidade em compreender como é que, depois de consumada a sua existência, esta conseguiu chegar tão longe. O secretário-geral socialista tem o aspecto de alguém que morreria tragicamente num evento absurdo, alguém que é assolado diariamente por infortúnios e desgraças, alguém que tropeça nas bermas acidentadas, escorrega nos átrios molhados, tranca o carro com as chaves lá dentro, deixa a torneira aberta, atropela o gato do vizinho, pisa em cocó de cão e passa uma tarde inteira a perseguir uma nota de cinco euros a ser puxada por um anzol.

Não é nada de novo. A banalidade perversa na classe política é um facto estabelecido da vida portuguesa. É apenas o reflexo infeliz das nossas exigências. É por essa mesma razão que quando um agente político chama a atenção pela sua mediocridade, ficamos embasbacados como alguém que acabou de encontrar uma agulha enferrujada num vasto abismo de sucata. Nesse mundo as trajetórias são curtas e inglórias. A admiração é invariavelmente substituída pelo desprezo. As ascensões meteóricas são acompanhadas de quedas aparatosas. Aquilo que normalmente ocorre é que o agente da mediocridade reconhece as suas limitações e aceita as vicissitudes levianas da carreira política quando a luz do holofote fica demasiado brilhante e começa a queimar.

Mas o líder socialista é alguém que vive eternamente insatisfeito. Ele não se limita a desafiar as probabilidades incertas da corrida da fertilização. Ele é alguém que passou décadas a rastejar pelos canos de esgoto do aparelho partidário com o objectivo de ser coroado como a ratazana entre ratazanas. Uma combinação improvável de eventos levou a que António José Seguro fosse eleito para o cargo de Primeiro-Ministro-à-Espera. Depois de uma prestação onde, ao contrário de José Sócrates, não conseguiu dissimular a sua mediocridade, o secretário-geral socialista tem sido reconhecido universalmente como uma fraude ambulante. Mas como um jogador embriagado pelo rodopio dos dados, ele não resistiu ao encanto místico da sorte e decidiu bater o pé, cruzar os braços, fazer birra e acorrentar-se ao trono, à espera que o destino providencie uma combinação mais feliz de cartas.

A razão pela qual chegamos aqui é muito simples. Na nossa cultura a honestidade é considerada falta de educação. Não me refiro àquela honestidade virtuosa que transborda da alma das legiões de homens que juram escolher sempre o certo em detrimento do errado. Refiro-me à honestidade corriqueira, aquela que diz a um amigo que a sua poesia é horrível, que diz a um colega que o seu hálito cheira mal e que revela que, por mais que tentem, por maior que seja a sua perseverança, certas pessoas simplesmente não possuem a capacidade de realizar grandes actos. É por essa razão que, sem fazer qualquer reivindicação de “frontalidade”, “honestidade” ou “coragem” (palavras irreparavelmente profanadas pelo discurso político nacional), inscrevo nestas páginas virtuais, sem quaisquer ferramentas estilísticas, as razões óbvias para o insucesso deste miserável traste carreirista.

Um político necessita de carisma. Esse carisma é um modo de estar confiante que transmite segurança. Quando o político não dispõe desse carisma, ele deve ser excepcional num âmbito diferente. Ele deve ser conhecido pelo seu pragmatismo implacável, pela sua habilidade de conciliação, pela sua coragem inabalável, ou pela sua inteligência superior. Ele deve ter um percurso académico e profissional que forneça garantias de competência. António José Seguro não possui nenhum desses atributos. Ele fica visivelmente nervoso durante intervenções públicas. Esse nervosismo causa um desconforto que transmite insegurança. Ele não é inteligente. O seu discurso superficial é desprovido de qualquer implicação prática. O seu currículo académico e profissional é duvidoso. O seu percurso é o testemunho de alguém que passou uma vida inteira encostado aos facilitismos da carreira partidária.

E o pior de tudo é que António José Seguro é ingénuo. É a tragédia dos estúpidos e dos ignorantes: são incapazes de compreender a sua estupidez e ignorância. A sua ingenuidade leva-o a considerar este imbróglio noveleiro como uma injustiça causada pela ambição desmedida de António Costa. Na realidade, isto é apenas o inevitável. Este mundo pode ser imperfeito, mas tem a capacidade de compreender quando o partidarismo foi longe demais e quando é necessário libertar os anticorpos para erradicar um vírus que, apesar de estúpido, é potencialmente letal. António José Seguro declara-se incapaz de encontrar razões para se demitir. Se ele quisesse realmente encontrar razões, bastaria olhar-se ao espelho. Se ele procurar na sua consciência, não encontrará nada. Por definição, o vácuo é exactamente isso: nada.

Egrégios

“Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e dói não sei porquê.”

                                Luís Vaz de Camões

Hoje estava um óptimo dia para sair de casa, mas decidi-me, por ociosidade, por manter-me fiel ao pijama. Não foi uma decisão per si, mais do que a consequência de uma embaraçosa apatia. Os feriados são sempre aguardados por mim com grande expectativa e entusiasmo, e acabam sempre por defraudar. Revelam-se deprimentes e melancólicos. Muitos são os dias não feriados em que cumpro esta rotina de acordar tarde e deixar as horas passar apenas com o que o meu lar tem para oferecer. Em dias feriados, parece inexplicavelmente insuficiente e, no entanto, sair de casa não se afigura um melhor plano. Lá fora paira uma taciturnidade pouco convidativa, pelo que não parece estar mais divertido do que aqui.

Quando o feriado serve para festejar a Portugalidade, é inevitável este desânimo ser ainda mais acentuado. Senti-lo hoje, porém, é uma homenagem ao pathos lusitano. Celebro este dia comendo um reconfortante caldo verde, assistindo aos Capitães de Abril e condoendo-me ao som da Amália. Não o faço por masoquismo, faço-o porque amo este incorrigível país e não quero desrespeitar, no seu dia, o seu hereditário sofrimento.

Somos o povo que menos razões e, simultaneamente, mais razões tem para carpir. Não temos conflitos armados, regiões separatistas, tensões étnicas, catástrofes naturais de grande dimensão, climas agrestes, perigosos animais selvagens, doenças epidémicas, falta de liberdades ou crimalidade relevante. Conseguimos, no entanto, estragar estas benesses com ressabianço combinado com uma eterna insatisfação com o estado das coisas, com o sistema, com esta merda que é sempre a mesma, sem nos apercebermos que estas míticas entidades mais não são do que o resultado inevitável dos nossos vícios colectivos.

Camões, que detém um terço do passe deste feriado, engrandeceu um povo que com arrojo tudo conquistou, e por imprudência tudo perdeu. Quinhentos anos depois, temos uma classe política infantil, sindicalistas ignorantes, uma justiça disparatada, uma burocracia insustentável e um seleccionador que não leva o Quaresma ao Mundial. Está visto que é sina.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Anticonstitucionalissimamente

Não tenho o menor know-how jurídico, mas consigo constatar que deixou de se discutir política para se discutir legalidades. Na legislatura de Sócrates, era Cavaco quem fazia sentir o poder do seu veto em questões em que a legitimidade da sua intervenção é duvidosa, como esta ou esta, deixando passar em claro medidas ruinosas para a economia; nesta parece ser o Tribunal Constitucional a travar os cortes avulsos deste precipitado governo. A função pública, protegida que está pelo sistema e pela própria jurisprudência, vai acabar por cair desamparada, em vez de descer paulatinamente as escadas imperativas da reforma.

A incompetência deste Executivo parece-me, por isso, evidente. Faz-me confusão, isso sim, é que a oposição se preocupe mais em verificar a constitucionalidade de uma decisão governativa em vez de a analisar politicamente e, em caso de discordância, explicar o porquê e apresentar soluções. Quando uma proposta é rejeitada indeliberadamente, ainda para mais baseada em princípios ambíguos, já não se discute se uma solução é viável e positiva politicamente e passa-se a discutir se esta vai contra os dogmas inquestionáveis. A Constituição, como já o disse em tempos, é encarada com uma deidade que não merece. Não a Constituição enquanto entidade, mas sim a nossa em específico, escandalosamente necessitada de uma legítima actualização.

Dito isto, tenho de observar que as figuras a que o Governo se está a prestar desde o acórdão são lamentáveis. Esta incursão pública contra o TC e seus elementos é ir contra a separação de poderes que tanto evocam. É eticamente reprovável e politicamente pouco inteligente. Entendo que o governo se sinta de mãos atadas, num contexto excepcional, ao ser limitado por interpretações judiciais que dificilmente não têm preconceito político. Mas a verdade também é que o TC, por linhas muito tortas, já travou algumas autênticas irreflexões do Executivo. Se a emenda acabará por ser pior do que o soneto, o tempo o dirá.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Ódio Intestinal

“Na gíria popular o futebol português funciona como aquele fenómeno fisiológico conhecido como ânus, onde temos duas nádegas que se enfrentam uma frente à outra, imponentes, não saindo de lá, dizendo uma à outra eu estou aqui e sou melhor que tu." - Bruno de Carvalho

Um aviso: esta pequena crónica com que vos presenteio é exclusivamente um ataque pessoal e odiento à figura de Bruno de Carvalho, mas longe de mim querer com isto atacar a substância da analogia que engendrou. Muita coisa se passará no futebol português; faço por ignorar o espectáculo de bastidores, concentrando-me na actividade artística, essa sim relevante. Para os dirigentes, o jogo é um meio, não um fim. Muitos deles nem percebem muito daquilo, a praia deles é mais o negócio, por cima ou por baixo da mesa. São paradigmáticos dos hábitos lusitanos corruptos e de compadrio.  É, portanto, pertinente comparar este putrefacto ambiente à zona glútea.

Mas Bruno de Carvalho conseguiria, com o seu misto de impertinência e sobranceria, estragar a mais engenhosa das metáforas. O seu semblante presunçoso e o seu humor pseudo-sarcástico sugam toda a eventual validade das suas infelizes declarações.

Poderão sentir um ligeiro rancor quando me refiro ao presidente do Sporting. Devo referir que nada tem a ver com o facto de os leões terem ficado este ano, pela primeira vez desde que me nasceu o meu primeiro pêlo nas axilas, à frente do meu Porto. Com ele, foi ódio à primeira vista. Tem um aspecto arrogante, pedante e desdenhoso que me enoja. O timbre escabroso da sua voz é perturbador. Esboça sempre um sorriso desaforado que inspira violência. É um narciso egocêntrico, que nas vitórias faz questão de festejar com os todos jogadores focados pelas câmaras, esbracejar efusivamente, para que não se esqueçam que a vitória também foi dele.

Há todavia um aspecto que me enoja por demais: este seu devaneio quimérico de que ele detém a verdade, um paladino da frontalidade e da coragem, um baluarte inabalável da verdade e da justiça, um Marinho e Pinto dos meandros futebolísticos. Os portugueses adoram estes messias correctores de costumes. Há um problema óbvio nesta genuinidade: corremos o risco de cair em contradições. Declarações com esta, estaesta e sobretudo esta, carregadas de irresponsabilidade, além de mostrarem uma lamentável puerilidade e ignorância, são precisamente o que está de errado com a classe de dirigentes. Casos de violência entre adeptos ou erros gritantes de arbitragem têm, num grande número de ocasiões, origem em atitudes institucionais com estas. Bruno de Carvalho consegue a proeza de agir como as pessoas que critica, ao critica-las.

E se todas estas razões não fossem suficientes para o odiar, ficamos agora a saber mais duas, todas relacionados com o seu aparelho digestivo: Bruno de Carvalho acha que o ânus é um fenómeno fisiológico e que as suas nádegas estão em constante disputa sobre qual das duas é a melhor. É caso para o mandar à trampa.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Aurora Dourada

É com prazer que assisto ao ressurgimento de um fenómeno anual de rara beleza: a proliferação, ao primeiro sinal do sol de Verão, de um sem-número de mulheres apetecíveis pelas ruas.

Permitam-me que abra um parágrafo anexo, para que possa fundamentar o adjectivo usado: a língua portuguesa é rica em sinónimos inúteis, mas parca em vocábulos essenciais. A nível sexual, é tão púdica quanto o seu povo. O acto de acasalar tem no grotescamente mecânico "fazer sexo" a sua expressão mais aceite, se não quisermos recorrer ao ultraromântico "fazer amor". Ainda há que "vá para a cama" com alguém mesmo que essa cama seja um quarto-de-banho público, e quem "durma" com alguém mesmo que no final invente uma desculpa para sair e acabe por dormir sozinho. A língua portuguesa não nos permite referirmo-nos ao sexo com a dignidade de não recorrer a palavrões. Neste contexto, surge a dificuldade de definir estas mulheres que surgem com a calidez. Não são necessariamente bonitas, no sentido casto do termo. São aquilo a que os anglo-saxónicos chamam apropriadamente de hot. É sexual, é primitivo, os nossos instintos são despertados a cada esquina, não nos apaixonamos por nenhuma, apenas as desejamos a todas.

Não ignoro alguns factores óbvios por trás deste fenómeno. O vestuário é crucial: os calções e as saias são curtos e reveladores e os decotes são abundantes, colocando os objectos do nosso desejo no limiar entre a revelação e a fantasia (o grau adequado de liberdade). E até os óculos de sol, indispensáveis na fase do ano que agora principia, cobrem muitas vezes falhas faciais que afastariam um segundo olhar.

O Verão, todavia, dá mais a uma mulher do que a oportunidade de exibir as curvas. Este fenómeno que descrevo trata-se do surgimento de uma aura à volta de todas as beldades, uma sinergia de peles mais douradas, perfumes mais doces e, como consequência, uma confiança altiva que consegue apelar aos instintos de forma ainda mais aguda que os aspectos referidos anteriormente. É no Verão que o forte espírito da mulher se funde com o corpo e passa a emanar por cada poro a delicada e feroz essência feminina. Desaparecem as olheiras, o corrimento nasal, a cinzentude dérmica, e tudo dá lugar a uma formosa plenitude.

O calor ajuda as senhoras a disseminarem uma sexualidade interior que hiberna no Inverno, num processo que imagino semelhante ao da evaporação. Um bloco sólido de confiança e sensualidade que, aos primeiros raios de sol, e até à queda das primeiras folhas caducas, se vaporiza e invade a cidade de uma palpável luxúria. Como se o sol não bastasse para pôr todos os homens mais joviais, as senhoras ainda nos brindam com a sua silhueta, com o seu andar, com o seu sorriso estival. Não é uma exibição gratuita para olhares concupiscentes; apreciemos antes estas graciosas figuras com o espírito artístico com que elas merecem ser contempladas. Fica aqui um desmedido obrigado às mulheres por conservarem e aprimorarem a sua aparência, mesmo sabendo que não o fazem por nós.

sábado, 17 de maio de 2014

Heróis de Guerra

Ao intervalo, estava conformado: um Barça estragado, podre, cinzento, sem alma, que passou de nunca cruzar para exclusivamente cruzar, sem ideias, sem personalidade, um gigante transformado em pedra, com um treinador sem carisma nem capacidades, ia ser campeão. O Atlético perdera os seus dois melhores jogadores nos primeiros vinte minutos do jogo decisivo, e o Barcelona marcara na única ocasião que lograra criar.

Deus escreve, todavia, direito por linhas tortas. E esse Deus chama-se Simeone. O regresso dos balneários é paradigmático do carácter, competência e coração dos dois treinadores e, por extensão, da equipa. O batalhão colchonero colocou o champanhe no frigorífico, porque havia inevitavelmente de ser bebido, e entrou de gládio em riste. A guerra tinha de ser ganha, a competência estava lá. Com quarenta e cinco minutos de bravura, teriam o mundo a seus pés.

A ideia romântica de que o dinheiro não é tudo tinha sido cruelmente contrariada pelo final da Premier League. Mas Simeone sabe que a supremacia capitalista pode ser ultrapassada. Com qualidade técnica, claro. Mas sobretudo encarando o futebol como a guerra que ela é: um conjunto de batalhas, um xadrez de ideias, as cabeças de todos e o coração de todos unidos no mesmo intuito. Simeone é um Genghis Khan, um Átila, um Napoleão. Dotou aquele exército de arrojo, ousadia, tenacidade, dedicação. Concedeu-lhes uma grandeza que os outros tinham por estatuto; o Atlético teve-o por crença. Este Atlético é a infantaria de Nuno Alvares Pereira em Aljubarrota, e ficará para a história como a evidência máxima de que no futebol, como na vida, o suor também triunfa.

Não se trata aqui de justiça. Podíamos estar aqui todos a lamentarmo-nos que o Atlético morreu na praia, que este Barça era o campeão mais inexplicável de que há memória, que a vida é injusta. A vida não quer saber, e Simeone sabia que o karma não iria ganhar nada por ele. Pegou os escudeiros pelos colarinhos e convenceu-os, de início, que acabar a época com Messi e Ronaldo prostrados perante a sua grandiosidade era mais do que um sonho, era um desígnio. Esta milícia estava destinada à glória, comuns mortais que reservaram, com nada mais do que perícia e brio, um lugar no Olimpo.

Era demasiado cruel para os milhões que sofrem, mais do que pelo clube, pelo jogo, que Liverpool e Atlético acabassem ambas sem títulos, quando foram as equipas mais apaixonantes, mais vertiginosas, mais sedutoras, por jogarem o futebol mais ardente, mais inflamado. São equipas que contrariam as limitações com uma impetuosa e incontrolável vontade, e é impossível, no mínimo, não simpatizar com este tipo de grupo. Demos por nós a festejar os seus golos, e depois de todos escorregarmos com Gerrard, foi refrescante viver o clímax deste conto de fadas e sentir que, um pouco por todo o mundo, também todos saltamos com Godín.

(Uma última palavra para Tiago. Daqui a umas décadas, o mundo do futebol já se esqueceu dele. Há, no entanto, poucos jogadores destinados ao esquecimento com uma carreira tão gratificante. Brilhou no Benfica, foi campeão com Mourinho no Chelsea, formou em Lyon com Juninho e Diarra um extraordinário meio-campo, teve muitas dificuldades na Juventus mas termina a carreira a jogar o futebol mais refinado da sua vida num grande Atleti. Pagava do meu próprio dinheiro para o ver passear toda aquela classe com a nossa camisola, nos perfumados relvados do Brasil.)

sexta-feira, 4 de abril de 2014

O Segredo


“So we beat on, boats against the current, borne back ceaselessly into the past.” – F. Scott Fitzgerald

Quando ouvi o anúncio do lançamento de mais uma versão cinematográfica do The Great Gatsby, eu já sabia a resposta. Não iria ver. Por diversas razões: uma questão de nojo, quando deparei-me com a sobre-estilização de Baz Luhrmann; uma questão de princípio, por ter preconceitos quase fundamentalistas sobre a adaptação fílmica de certas obras literárias; e uma questão de pragmatismo - não consigo entender como qualquer ser humano lê a frase final do romance, que exponho na epígrafe, e pensa que é possível capturar isso com uma câmara.

O escritor corre um risco sério com este tipo de frase: a hipótese da pretensiosidade. Corre-se o risco de se parecer moralista sem oferecer conteúdo palpável. Quando executado com destreza e cautela, o resultado final são os mandamentos universais da humanidade - frases apreciadas mesmo por aqueles que nunca abriram o livro de onde foram retiradas. Quando executado com arrogância e desleixo, o resultado final são obras de auto-ajuda e livros do Paulo Coelho. Mas, verdade seja dita, eu tenho uma fraqueza terrível por esse tipo de obra.

Não por achar o seu conteúdo particularmente relevante para a Angústia Humana, mas porque a sua visualização permite-me experienciar o tipo de ódio pulsante do qual eu necessito com o mesmo ímpeto que um arrumador de carros necessita de heroína. Todas essas obras afirmam possuírem a receita sagrada, a solução instantânea, o pó de perlimpimpim, a poção encantada e a panaceia universal. Para mim começou com “O Segredo”. Esta peça audaz afirmava que o pensamento positivo não era apenas um mantra motivacional. Era um fenómeno neurológico com resultados tangíveis. De acordo com os autores, um pensamento positivo emite uma frequência para o universo, e, se essa frequência for positiva, o universo corresponderá igualmente com frequências positivas.

Ou seja, se pensarmos num Ferrari vermelho na nossa garagem, em rios de dinheiro a correrem na nossa direcção e numa supermodelo estoniana na nossa cama, o universo acabará por providenciar esses desejos. Como é óbvio, a absurdidade desta asserção é tão evidente que a sua mera enunciação deveria acarretar pena de morte automática. Mas isso não evitou que “O Segredo” se transformasse num livro que vendeu vinte milhões de cópias e num documentário com receitas de sessenta e cinco milhões de dólares. Tudo isso com um certificado de recomendação da Oprah Winfrey, o mais próximo que o século XXI tem de um selo de aprovação da Santa Inquisição. Entre 2007 e 2011, “O Segredo” foi o livro mais vendido em Portugal.

No entanto, essa obra é uma aberração particularmente aberrante. A maioria das obras deste género possui apenas asserções inofensivas que não ofendem a mais humilde das inteligências. Mas existe um atributo comum entre todas estas obras que me parece fulcral: a importância de se saber o que se quer. Se o indivíduo tem esta informação, o resto passa a ser uma questão de perseverança. O meu problema é que eu não sei o quero, tampouco sei para onde quero ir. Qualquer que seja o desejo, a possibilidade ou o cenário, eu sou capaz de conceber mil razões positivas e mil objecções negativas. Na minha consciência não existe um debate frutífero sobre as valências e os riscos.

E a razão para esse combate mental interminável é que não possuo a capacidade de auto-ilusão. Aqueles que conseguem concretizar os seus sonhos devem necessariamente possuir a capacidade de, consciente ou inconscientemente, ignorar tudo aquilo que pode correr mal. E, como liricamente nos diz Fitzgerald, o passado é um colete-de-forças pesado. Por mais que a perseverança e o pensamento positivo ajudem, o verdadeiro triunfo surge apenas quando somos bem-sucedidos na tarefa hercúlea de nos iludirmos e esquecermos a vergonha dos erros do passado e, ao contrário do que muitos afirmam, não existe nenhum segredo para nisso.

quinta-feira, 27 de março de 2014

As Faces de Cristo


“The greatest hazard of all, losing one’s self, can occur very quietly in the world, as if it were nothing at all. No other loss can occur so quietly; any other loss - an arm, a leg, five dollars, a wife, etc. - is sure to be noticed.” - Soren Kierkegaard

Durante a minha jornada pela Europa, eu visitei diversos museus importantes - o National Gallery em Londres, a Galeria Uffizi em Florença, o Museu do Vaticano, o Louvre em Paris, Rijksmuseum em Amesterdão. Nessa peregrinação maravilhosa eu tive diversas epifanias ligeiras sobre a natureza da existência, observei in loco os hábitos alimentares das diversas raças europeias e cheguei a uma conclusão muito importante: eu queria fazer aquilo para sempre.

A dádiva de viajar proporciona uma rara sensação de esperança eufórica que é impossível de ser recriada no quotidiano sedentário da humanidade neolítica. Existe uma liberdade indescritível em poder escolher rumos infinitos por este continente glorioso. A distância da tecnologia traz uma claridade mental que apenas pode ser descrita como um estado primitivo de paz nirvânica. A ansiedade ligeira que vive alojada no núcleo incandescente dos nossos cérebros - que eu nem sequer sabia que existia - desaparece, e traduz-se numa concretização inesperada da capacidade de viver no momento.

Uma multitude de atributos – vaidade, orgulho, ambição, raiva, inveja – desaparecem da balança mental, e o seu peso deixa de se fazer sentir na racionalização mental e na ponderação accional. O poder da viagem é tão grande que as minhas descrições desse fenómeno transformam-me num guru budista irritante que vê no asceticismo uma quimioterapia espiritual e que secretamente deseja que toda a humanidade fizesse cessar o sustento doentio do produto interno bruto. A flacidez das almofadas deixa de importar, a inutilidade do colchão deixa de irritar, a alimentação ganha uma dinâmica utilitária e deixamos de ser tão exigentes com a higiene de uma casa de banho.

Mas um aspecto recorrente que me pareceu peculiarmente interessante foi outro. Os museus expunham inúmeros quadros onde a figura proeminente era Jesus Cristo: o recém-nascido abençoado, o bebé nos braços da mãe, o adulto iluminado, o mártir crucificado, o homem morto, o ídolo ressuscitado. A tipologia que mais me impressionava era a representação de Jesus como um homem, virado para a frente, a olhar directamente na nossa direcção.

Em muitos quadros, o olhar era passivo e espectral, como se o homem soubesse que a sua permanência neste mundo não iria durar muito mais tempo. Em outros, ele parecia desgastado e severo, como um mineiro a descer no elevador da mina, que sabe que nada de bom o espera nas profundezas. Em casos raros, ele mostrava expressões faciais completamente ausentes da escala emocional humana, em que as suas características levavam-nos a crer que Jesus Cristo sabia de algo que nós nunca seríamos capazes de compreender. Mas o que todos aqueles quadros tinham em comum é que nenhum deles cedia à tentação de retratar Jesus Cristo como um idiota feliz retirado directamente da propaganda norte-coreana.

No entanto, nenhum daqueles quadros representa a verdade. Nenhum daqueles pintores, por mais talentosos que fossem, foi uma alma iluminada com acesso a um canal directo para o divino. As particularidades das obras, neste caso a face de Jesus Cristo, contam-nos mais sobre as intenções esperançosas do artista, do que sobre as intenções verdadeiras do filho de deus. No momento da criação aqueles olhos olhavam directamente para o pintor, que se via forçado a ver na tela branca um espelho indirecto. O resultado disso é que não se vislumbra uma réstia de compaixão naqueles olhos. Mas também não se vislumbra qualquer sinal de julgamento. O instinto do julgamento é uma ferramenta automática das tendências mais desprezíveis da consciência humana. É uma das bases primordiais dos nossos sistemas socioculturais. A negação desse instinto é uma das mensagens da estória cristã e um objectivo valoroso de todo um movimento artístico.

As figuras daqueles quadros não fazem brotar sentimentos de culpa, antes intensificam aquilo que o contemplador já sentia antes do confronto. E, infelizmente, na maior parte das ocasiões, essa intensificação incide sobre sentimentos negativos. Mas nesses quadros, Jesus não demonstrava o desapontamento paternal resultante de um julgamento. Era pior. Era um desapontamento que ele parecia tentar não deixar transparecer. Era a desilusão tão humana que ele tinha em si mesmo. Era a desilusão dos pintores, a nossa desilusão colectiva na humanidade, a nossa desilusão individual em nós próprios. Isso é algo que, julgo eu, é recorrente no ser humano. Nós somos os nossos piores juízes. Nós gostamos de nos sentirmos mal sobre nós próprios.

Isso foi, em parte, o que permitiu a rápida disseminação da Cristandade pelo mundo. A interpretação da religião cristã tende a confirmar os nossos piores medos. O medo de que somos todos potenciais demónios a vaguear na terra, e que a bondade está restrita aos mártires, anjos e santos. Essa tendência leva-nos a projectar deuses perfeitos que vivem em reinos inacessíveis, e faz-nos esquecer que o desapego ao julgamento, especialmente sobre nós próprios, é o ideal mais nobre a que a alma humana pode aspirar. No Livro de Génesis, quando Deus afirma que criou o Homem à sua imagem, essa não é a expressão omnipotente da sua bondade infinita na Criação. É apenas o Homem a ver-se, desapontado, ao espelho, e a decidir, desesperado, criar uma mentira que consiga fazê-lo esquecer, mesmo que momentaneamente, que a vida é injusta, a morte é certa e o julgamento, tanto humano como divino, é uma tragédia inevitável.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Sósias

Uma das maiores particularidades que nos distingue enquanto indivíduos será sempre a nossa capacidade de percepcionar parecenças entre as pessoas. Todos nós já estivemos na posição de partilhar com um grupo de amigos que duas pessoas são, aos nossos olhos, a cara chapada um do outro, para sermos confrontados, como resposta, com confusão e indignação. Pouco haverá de mais frustrante do que alguém nos dizer que duas pessoas, que nós vemos como gémeos separados à nascença, nada têm a ver uma com a outra.

Estas semelhanças não são efectivamente, na maioria dos casos, de detecção instantânea. Por pertencerem a contextos distintos, não damos por ela até que o nosso cérebro acenda uma lâmpada e ilumine a inevitável associação, que sempre esteve à frente dos nossos olhos. Reparem, por exemplo, como o actor Adrien Brody, d’O Pianista, é igualzinho ao actor português Miguel Guilherme. No outro dia, o tenista João Sousa eliminou o cotadíssimo Gilles Simon, que é inegavelmente semelhante ao actor Joaquin Phoenix.

Alguns de vocês já protestarão por esta altura, por impulso, sem atentar devidamente aos traços faciais dos pares que enuncio. Cada um vê com os olhos que tem, e nunca com outros. Mas não neguem, por favor, que o actor Kit Harigton, conhecido por Jon Snow de Game of Thrones, é a reencarnação do Jim Morrison, vocalista dos The Doors. Nem que o Pedro Martins, treinador do Marítimo, é o irmão campónio do nosso primeiro-ministro.

Já que estamos no futebol, digam lá se o Chicarito do United não tem parecenças com o Bruno Mars. Não recusem de imediato, considerem e vejam mais além. Tal como têm o Walcott, jogador do Arsenal, e o automobilista Lewis Hamilton. O Tymoschuck é, sem tirar nem pôr, o Kurt Cobain, assim como o Ricardo, jogador do Porto, é a versão humanizada do papagaio Zazu, do Rei Leão. E o Khedira é muito parecido com a versão Ali G do Sasha Baron Cohen.

Se o leitor vai lendo estas linhas abanando a cabeça em jeito de discordância, um desafio: visite a página da wikipédia do poeta Edgar Allan Poe e veja se consegue ignorar que a foto tem de ser, na verdade, do actor Bill Murray caracterizado.

Naturalmente, já estou habituado a carregar o ónus de abrir os olhos à população. Para já, esta é composta apenas pelos meus escassos leitores. Àqueles que discordaram das minhas associações estéticas, fica o conselho de serem mais minuciosos na observação. Aos outros, agora que a minha palavra é suficiente, e desprovido que estou de provas visuais do que vou afirmar, garanto que uma das minhas tias-avós alemãs é igual ao Mick Jagger e que a minha mãe, quando sorri, é tão parecida com a Janis Joplin que já lhe pedi que cantasse a “Piece of my Heart” para tirar as teimas. Não é ela.

domingo, 23 de março de 2014

Acertar à primeira


“Se em tudo o mais forem idênticas as várias explicações de um fenómeno, a mais simples é a melhor" - Guilherme de Ockham

Ele tinha entrado na esquadra às duas e meia da manhã, chegado junto ao balcão da recepção e exigiu ser preso. O agente de serviço reconheceu o cheiro a álcool e ignorou as palavras, esperando poder voltar para as palavras cruzadas que o mantinham entretido durante o turno mortificante da madrugada:

- “Prenda-me.”

O homem tinha pelo menos cinquenta anos. Era uma daquelas pessoas abençoadas com a dádiva inexplicável de um envelhecimento generoso. A voz fraturada denunciava a sua verdadeira idade. O seu cabelo era castanho e estava penteado com brilhantina. A barba era grisalha e bem aparada. Ele vestia um fato preto completo feito à medida. Não tinha entornado uma única gota de álcool no casaco. A roupa parecia ter sido engomada naquele mesmo dia.

- “Prenda-me, caralho.”

Ele cheirava a água-de-colónia. A única razão que permitiu o agente identificar o cheiro a álcool foi o homem ter-se debruçado sobre o balcão. Ele não se tinha dirigido para o balcão a cambalear. As suas mãos não faziam movimentos desajeitados. Ele tinha-as pousado no balcão, completamente abertas, com as palmas na superfície. O seu piscar de olhos mantinha-se ágil e pouco frequente. A sua postura era ergonómica. As costas não se vergavam e o pescoço mantinha-se hirto. Ele não alternava o peso do corpo entre as duas pernas, como uma criança amuada faria numa situação de espera.

- “O senhor está bem?” – perguntou o agente.

O agente sentiu-se estúpido a fazer aquela pergunta, mas não sabia o que haveria de dizer. Ele estava no segundo ano de serviço. Não era a primeira vez que o agente tinha-se deparado com um indivíduo alcoolizado a realizar exigências absurdas, mas nunca tinha ouvido aquela exigência em particular. O homem não respondeu à pergunta, mas a sua inexpressividade impávida alterou-se para um sorriso lamentoso. Ele levantou os braços e esticou-os, com a parte interior exposta, para facilitar a colocação das algemas.

- “Prenda-me, se faz favor.”

O agente ficou confuso. Era como se o homem pensasse que o problema fosse a falta de boa educação no seu pedido.

- “Desculpe, meu senhor, mas eu não tenho legitimidade para o prender. O senhor não cometeu nenhum crime.”

O homem debruçou-se sobre o balcão e esbofeteou o agente com a mão direita. Ele colocou os braços atrás das costas e sentou-se no chão à espera da concretização do seu pedido. O agente ainda se manteve sentado durante alguns momentos. A estalada não tinha sido forte, mas ele não tinha qualquer alternativa. Levantou-se, gritou pelos dois colegas que estavam na sala ao lado, e algemou o homem. Apenas um dos agentes saiu da sala.

- “O que se passa?”
- “Este homem acabou de me agredir.”
- “O quê?”
- “Este gajo bateu-me, caralho. Ele entrou aqui e pediu para ser preso. Eu disse-lhe que não podia prendê-lo e ele bateu-me. O que fazemos?”
- “O que é que achas? Temos de prendê-lo. Não há outra alternativa.”

Os agentes processaram a papelada, comunicaram o evento ao tenente e levaram o homem para a cela colectiva da esquadra, onde já estavam um homem que tinha tentado roubar uma câmara a uma turista e um arrumador de carros que tinha arranhado um veículo.

- “Queres explicar-me o que se passou realmente?”
- “Não sei, pá, não consigo entender isto. Eu juro que foi mesmo como eu disse. O velho entrou aqui, sem qualquer agressividade, e exigiu ser preso.”
- “Ele está podre de bêbado.”
- “Eu sei, nota-se, mas o homem aguenta bem o álcool. Ele não arrastava palavras. Não parecia confuso. Nada.”
- “O que é que pode levar alguém a querer ser preso?”
- “Talvez o gajo matou alguém, arrependeu-se e veio aqui poupar-nos trabalho. Já viste se há alguma notificação de homicídio nos canais de comunicação?”
- “Não há nada. Já falei com as outras esquadras. A noite está calmíssima.”
- “Talvez isto é alguma espécie de activismo político. Talvez o gajo esteja a tentar passar alguma mensagem sobre a crise actual. Se calhar o gajo é famoso e chamou as estações de televisão antes vir aqui.”
- “Alguma coisa tem que ser. É melhor a gente telefonar ao Major. Este gajo ainda acaba por ser alguém importante e a gente é que fica aqui a segurar a granada. Ninguém aparece aqui e pede para ser preso. Não disseste que ele estava a usar um fato caro?”
- “Caríssimo! Aquilo era seda ou uma qualquer coisa assim. Tem mesmo que ser alguém importante. Ouve o que eu te digo. Isto vai dar merda. Mas é melhor não acordar o major. Ele entra às sete e meia. Quando ele chegar nós contamos tudo.”

Passaram quatro horas. Já tinha amanhecido, mas ainda faltava uma hora para o Major chegar. Os dois agentes continuavam a especular sobre os motivos misteriosos do homem.

- “Talvez morreu alguém. O gajo estava com roupa de funeral.”
- “É possível. Aposto que morreu-lhe a esposa. Agora ele está arrependido por tê-la tratado mal e veio aqui para se crucificar.”
- “Tem que haver alguma razão.”

O terceiro agente de serviço apareceu na sala da recepção. Ele tinha acabado de voltar das celas.

- “Quem é o homem de fato na cela colectiva?”
- “É um homem que chegou aqui de madrugada, pediu para ser preso e, depois de eu recusar, deu-me uma estalada.” – disse o primeiro agente.
- “Agora estamos aqui a tentar perceber as razões do homem” – disse o segundo agente.
- “Nós achamos que o gajo é alguém importante e que isto é uma alguma espécie de acto político” – disse o primeiro agente.
- “Ou ele matou alguém e arrependeu-se.” – disse o segundo agente.
- "Ou ele está farto de viver." - disse o primeiro agente.
- "Ou ele está desempregado há tanto tempo que não aguenta mais" - disse o segundo agente
- "Ou foi à falência e agora está arruinado" - disse o primeiro agente
- "Ou a mulher descobriu que ele tinha uma amante" - disse o segundo agente

O terceiro agente coçou a cabeça e disse:

- “Eu não sei, pá. Quando eu passei nas celas, ele estava a dormir, mas acabou por acordar com o barulho das chaves. Chamou-me e disse que não sabia o que estava a fazer ali. Tinha vomitado na cela toda. Já vos ocorreu que o gajo devia estar podre de bêbado? Vocês nunca fizeram coisas estúpidas enquanto estavam assim?"

sexta-feira, 21 de março de 2014

Palma

Amanhã o Público lança, no contexto da Colecção Canto&Autores, o CD de estreia do Jorge Palma, acompanhado por um livro que recorda a sua vida e obra. Custa menos de sete euros, e vou adquiri-lo.

O álbum não é, musicalmente, o meu predilecto do artista. É, no entanto, um álbum rico em duas vertentes. Primeiro, o contexto histórico justifica redobrada atenção ao seu processo criativo. Em 1973, largou o país e voou para norte, onde se instalou como exilado político na Dinamarca. Sempre preferiu passear a guitarra pelo mundo civilizado do que a espingarda pela África colonizada. Arranjou emprego num hotel, que serviu de sustento enquanto escrevia e compunha canções em casa, onde vivia com a sua primeira mulher. Foram essas composições que publicou em 75, de regresso a um Portugal livre. Tal como na música, partilhou com os ouvintes a aventura fora do país e deu-lhe o seu infalível cunho pessoal: baptizou o álbum de "Com uma viagem na Palma da mão".

Musicalmente, e é esta a segunda vertente, acusa natural juventude. A voz, essa então, é quase irreconhecível, virgem da rusticidade que os anos de álcool e tabaco lhe conferiram. Apenas em alguns momentos se reconhece o timbre, como numa foto antiga em que as feições são as mesmas.

Quase todas as músicas do "Com uma viagem na Palma da mão" foram ignoradas pelo tempo, mesmo pelo próprio. Contudo, há que destacar um ambiente de música de intervenção distinto dos demais. Mais vivo, mais cosmopolita, mais optimista dentro da desgraça. Tem influências que o acompanharão no resto do percurso musical, como os acústicos americanos Bob Dylan e Simon & Garfunkel, mas também com muito bluegrass, muito jazz. Houve-se também muito Elton John nas entrelinhas. Mostra também já a poesia de que é feito, o lirismo que o destacará como um dos artistas portugueses mais consagrados.

Tive o prazer de o ver duas vezes ao vivo. Uma foi a solo, no Coliseu, onde actuou com o seu filho Vicente. A outra foi com os Cabeças no Ar, uma fantástica superbanda portuguesa de apenas um álbum, composta pelo próprio, por João Gil, Tim e Rui Veloso. Foram a Guimarães, e protagonizaram um extraordinário concerto, genuíno e íntimo.

Actualmente, a sua imagem pública é desgraçada. Graças a recorrentes episódios de duvidoso decoro, as pessoas apenas reconhecem a Jorge Palma os vícios que este não faz por esconder e só conhecem as músicas mais recentes, a anos-luz da genialidade que foram as suas composições, sobretudo no percurso ascendente de maturação dos anos 80 e que lhe permitiu expelir pérolas como o brilhante "Lado Errado da Noite".

Felizmente, a obra está aí e é demasiado boa para não ser partilhada. Rogo aos amantes da boa música que percam tempo a explorar o portefólio de um homem que transpira música, de um aventureiro, de um artista que eleva este epíteto à sua verdadeira dimensão, uma dimensão de mais sofrimento do que prazer, mas dentro da inevitabilidade de um percurso que lhe estava traçado no sangue.

As pessoas merecem conhecer a tua poesia musical, a tua música poética. Faço a minha parte, Jorge, o resto é contigo.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Há ler jornais e há ler o Expresso

O meu processo semanal de leitura do Expresso é faseado e ritualizado. Começo, como em quase todas as publicações periódicas, pelo final. Exploro celeremente a contracapa, lendo sem atenção curtas notícias e a crónica de um dos Henriques, o mais velho, o Monteiro, homem de verdades, mas de arrogância infundada.

Prossigo na mesma direcção, em contramão. Segue-se o desporto, leitura desnecessária por eu obter toda a informação de que necessito nesta área de outras fontes mais especializadas. Leio na mesma, contudo, pela frescura da escrita que transforma totalmente a abordagem aos temas; e por, admito, não resistir a sugar toda a informação, mesmo que redundante, sobre o desporto-rei. Nesta secção, é agradável acompanhar a tabela “Palpites”, em que figuras públicas afiançam semanalmente aquele que eles acham que será o desfecho dos jogos dos grandes; são-lhes posteriormente atribuídos pontos por cada palpite certeiro. E é sintomático ver este ano a posição de Manuel Serrão, incorrigível portista e optimista, que augura sempre o sucesso do seu clube e o insucesso do rival, e que figura no último lugar da tabela classificativa.

Desfolhando mais para trás, descobre-se o In Memoriam, um texto necrológico acerca de uma figura internacional relevante que tenha falecido na semana relativa à publicação. O conceito é idoso, mas assume uma nova alma por ser assinado pelo genial José Cutileiro, que produz autênticas odes a heróis e vilões, a homens cuja história de vida, muitas vezes, ignorava e que passo conhecer, fascinado pelo factual de que a história se encarregou, e pelo lírico que Cutileiro, um ex-embaixador que sabe tudo o que há para saber acerca da diplomacia internacional, se incumbe brilhantemente de redigir.

A seguir, opinião. Um antro de ódios, paixões e indignações com o condão de não permitir que nenhum leitor o explore sem sentir também ele ódios, paixões e indignações, sejam os mesmos, sejam exactamente os opostos. Delicio-me com o segundo Henrique, o mais novo, o Raposo, sujeito que imagino insuportável no convívio diário, mas de inegável talento e perspicácia. A seguir, um pouco de Daniel Oliveira, sempre divertido em doses moderadas, de punho erguido contra o sistema, que tem a particularidade de conseguir ser histérico organizadamente. Discordo das suas ideias, mas sabe expô-las; grita e barafusta, mas através de alíneas.

De seguida, os gémeos Avillez Figueiredo e Pedro Adão e Silva. Não tendo relação de sangue, são gémeos de género: dois senhores à volta dos 40 anos, jornalistas-politólogos de profissão, que escrevem na mesma página do jornal, expressando as mesmas preocupações económicas, usando o mesmo registo que alterna a subtileza da ironia com a dureza dos números, por baixo de uma foto com um sorriso semelhante. Leitura que tem tanto de útil como de fastidiosa.

A seguir, alto lá. Com uma rápida vista de olhos às páginas seguintes, concluo que surgem em número alarmante as palavras empreendedorismo, franchising, marketing, administração, inovação científica, tecnologia, estratégia, gerenciamento e globalização. Não é para mim, voltarei à linearidade da imprensa clássica e recomeçarei pelo início.

Pedro Santos Guerreiro recebe-me com um rasgado sorriso, cuja jovialidade não consegue reproduzir na palavra escrita. Ricardo Costa é, em bom português, um chato de merda. Não deve dar para aguentar dez minutos à mesa com este enfadonho e maçador indivíduo. É um tipo inteligente, mas é cinzento, sem carisma e sem relevantes aptidões. Raramente perco tempo a ler os seus escritos. O extraordinário Pedro Mexia, um oásis de inteligência e ponderação, fecha com chave de ouro a minha exploração dos artigos opinativos. Nunca leio o Sousa Tavares: armado em paladino da (sua) verdade, é mais socialite que jornalista; tem a mania que é polémico, mas é inócuo e desconhecedor.

Finalmente, chego às verdadeiras notícias, na pureza do conceito. Política nacional, economia, mundo. Notícias a fundo, que se distanciam do padronizado formato e das já muito disseminadas informações, intercaladas com curiosas reportagens e interessantes entrevistados. Design organizado e discreto, informações gráficas constantes e relevantes. A crise na imprensa é muito mais que económica. Consequência ou não da menor procura, a inevitável adaptação dos órgãos de comunicação ao jornalismo 2.0. não precisava de passar, mas passou, por uma deterioração dos princípios jornalísticos. Não porque os princípios foram esquecidos; são, de resto, constantemente evocados. Mas são ignorados, por grande parte da comunicação, seja em nome de um bem maior, a subsistência, seja em virtude da pura inabilidade dos profissionais. Neste contexto, parece-me importante realçar a qualidade do trabalho jornalístico do Expresso, longe da perfeição, mas que é competente sem ser elitista, informativo sem ser maçador.

Dito isto, uma breve crítica: entendo que a imensidão de conteúdo complique o processo que vou sugerir, mas deviam considerar um formato mais compacto. Até a mim, portador de compridos membros superiores, a leitura do jornal é um desafio, uma constante luta contra as colossais páginas que insistem em mover-se, em que as letras na parte superior da página são ilegíveis e em que cada desfolhar é semelhante ao movimento de nadar de bruços. Corrijam isto, caros editores, e terão em mim um fã para a vida.

terça-feira, 11 de março de 2014

Um Ponto Filosófico de Situação Existencial


“Quem vive sob o domínio da sensação tenta realizar todas as possibilidades, mas estas não lhe proporcionam mais do que uma actualidade transitória. A ameaça do tédio é perpétua e consequentemente a busca de novidades conduz, em última instância, ao desespero” - Soren Kierkegaard

"Que ideia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas)."
- Alberto Caeiro

(Devido aos constrangimentos dos blogues com meio de expressão, as ideias aqui discutidas são apresentadas numa forma simples, reconhecendo que, no meio da minha ignorância técnica, sem o devido enquadramento filosófico, fundamentação teórica e exposição meticulosa das racionalizações subjacentes, muitas das afirmações e conceitos aqui inscritos poderão parecer redutores e facilmente contrapostos com objecções conhecidas.)

A história do sacrifício de Isaac é, ao mesmo tempo, a história mais interessante do Antigo Testamento, a lição mais interessante da filosofia ocidental e a pintura mais bela de Caravaggio. Deus ordena Abraão que sacrifique o seu filho Isaac. Abraão é assombrado por uma ordem divina tão cruel, mas, mesmo com uma imensidão de dúvida, leva Isaac para o cimo de uma montanha e amarra-o num altar sacrificial. No momento em que levanta a lâmina para acabar com a vida do seu próprio filho, Abraão é interrompido por um anjo, que comunica-lhe que Deus agora sabia que ele tinha fé.

O filósofo dinamarquês, Kierkegaard, argumentou que esta história representa a progressão final da atitude livre do homem para com a vida. De acordo com o autor existem três fases nessa progressão: a estética, a ética e a religiosa. O indivíduo tenta viver de acordo com os ditames da beleza e do prazer, mas sente as limitações intrínsecas da gratificação instantânea. O plano ético surge com a ansiedade sobre essas limitações e quando o indivíduo preocupa-se com as implicações morais das suas acções relativamente aos outros. A impossibilidade de aceitar o absolutismo moral do plano ético sem a existência de Deus leva o indivíduo a aceitar a fé da fase religiosa. Essa transição final é a história de Abraão e Isaac. O pai sabia que matar o seu filho era moralmente errado, explicitamente errado segundo a moral divina, mas, sendo comandado por Deus, realizou o sacrifício num acto supremo de fé.

A redoma protectora que os nossos pais instalam quando nascemos é imaterial. É um aquário maravilhoso de amor e boas intenções. Ela é a lente correctiva que nos permite ultrapassar a fragilidade da infância sem questionarmos o mundo que os nossos pais juram estar à nossa volta. Apenas é possível vê-la no passado, quando já estamos do outro lado, fora da sua alçada. Ao pensar na minha experiência dentro dela, eu vejo nitidamente um vidro cristalino que me acompanhava sempre, que impossibilitava o acesso à visão desconstruída do mundo nas suas partes constituintes e que transformava os progenitores na autoridade benevolente final.

A adolescência é a fase em que saímos dessa campânula parental. Aproximamo-nos inconscientemente da sua superfície e, suspeitando a sua presença, passamos para o outro lado e recebemos um choque existencial. Do outro lado a razão diz-nos que aquilo que fazia sentido é apenas um fenómeno auto-referencial, e aquilo que tinha significado é apenas um fenómeno aleatório. No entanto, ainda sentimos as emoções derivadas do sentido e do significado. O amor da nossa mãe não tem significado, mas ainda sentimos os seus efeitos. Esse conflito – a noção simultânea de que tudo importa e nada importa - tem um potencial destruidor. O concretizar do quotidiano estagna quando o infinito absorve o finito. Os nossos pais passam a ser os recipientes de uma enorme raiva devido ao seu papel como propagadores da Grande Mentira. É difícil pensar num emprego, ver um filme, ou estar com amigos, quando não sabemos qual é o nosso lugar no universo. Este é o problema básico do existencialismo filosófico.

Qualquer criança se depara com o dilema existencial quando recebe as respostas rebuscadas de adultos face às questões mais básicas: por que nascemos, de onde viemos e para onde vamos. Eu nunca ultrapassei este problema. Eu tenho uma experiência maior em lidar psicologicamente com o desespero que dele advém, mas não há nenhum trabalho literário, corrente filosófica ou dogma religioso que consiga eliminar ou resolver este problema. O ser humano sintetizou várias substâncias incapazes de produzir respostas, mas capazes de fazer com que a pergunta desapareça momentaneamente. No entanto, também este efeito meliorativo acaba por cessar. Existem pessoas capazes de ignorar este problema, vendo um imperativo existencial satisfatório na obtenção de prazer e no colmatar da dor. Eu adoraria conseguir viver satisfeito nesse hedonismo moderno ou no naturalismo humilde de Alberto Caeiro, mas, na minha experiência, o sofrimento mental superioriza-se sempre ao prazer físico e, apesar da sua genialidade no papel, Fernando Pessoa morreu de cirrose hepática aos quarenta e sete anos de idade, dificilmente sendo considerado um protótipo de uma vida bem vivida.

Para efeitos de simplificação radical, eu vejo o mundo em duas visões. As duas visões são quase diametralmente opostas, aparentemente irreconciliáveis. Na visão do pessimismo o mundo é uma sopa aleatória de moléculas, onde as nossas vidas são apenas ilusões desprovidas de significado, sem qualquer desígnio aparente. A nossa existência é uma eventualidade irrelevante do cosmos. Os grandes conceitos da humanidade – felicidade, amor, altruísmo – são apenas mecanismos evolutivos expressos em variações bioquímicas no cérebro com o objectivo de sustentar a manutenção de um sistema de organização de matéria. A moral, a ética e a lei são apenas linhas imaginárias na areia da praia universal. A vida, alegria, sofrimento e morte são tão significativas quanto a transformação estelar de hidrogénio em hélio, erupções vulcânicas, a sobreposição de sedimentos rochosos ou a trajectória errante de cometas e meteoros. O conceito de deus não tem qualquer lugar nesta visão. O absolutismo nesta visão é visceralmente incapacitante. No fundo deste poço, não é possível sair da cama.

Na outra visão o mundo é um colosso de ordem onde as nossas vidas são a procura significativa de felicidade, regidas pelo certo e errado, com o desígnio supremo de honrar Deus através da prática do amor. A nossa existência é a expressão do acto da Criação de uma entidade perpétua cuja natureza não compreendemos na totalidade. Os grandes conceitos da humanidade – felicidade, amor, altruísmo - são razões absolutas para viver. A moral, a ética e a lei representam o quadro orientador da operacionalidade dessas razões absolutas. O mundo orgânico dispõe, na sua essência, de uma supremacia existencial sobre o mundo inorgânico. Existe mais significado no núcleo de uma ameba unicelular do que em todas as galáxias e buracos negros deste universo. O conceito de Deus é inseparável desta visão. O absolutismo nesta visão é impossível, pois a lista de argumentos contrários é demasiado extensa para ser completamente ignorada. Sobre as especificidades características atribuídas à entidade divina – omnisciência, omnipotência, omnipresença – não me pronuncio, apesar de existirem diversos argumentos a favor e contra. A minha concepção de Deus admite apenas a entidade criadora em si, e, ao assumir que a sua existência se dá num plano incompreensível para a mente humana, fora do tempo e do espaço, não me pronuncio sobre os seus atributos, por tal não ser possível.

Depois de ter passado muito tempo preso na ideia de que eu tinha que escolher uma destas visões, a minha solução foi aceitar as duas visões. Não consiste em fundi-las dialecticamente, mas em aceitar a sua possibilidade e as suas respectivas eventualidades ao mesmo tempo. Envolve alguma resignação, algo que ainda não está completamente assente no meu espírito, mas é a única forma de conseguir viver fora das paredes almofadadas da cela de um hospital psiquiátrico. Existem forças no universo que são simplesmente demasiado poderosas para serem convertidas sistematicamente em palavras. O infinito indiferente não destrói o finito quotidiano apenas porque não compreendemos tudo. A vida vale a pena viver e poderá não ter qualquer significado. O amor é uma expressão do infinito cósmico e é um subproduto evolutivo de uma realidade finita. Isto foi o que Kierkegaard chamou de ironia. A capacidade de viver com a presença simultânea de duas noções opostas.

Eu sei que esta visão é logicamente imperfeita. Não afirmo possuir toda a verdade, nem tenho a certeza de possuir alguma verdade. Tendo em conta o pouco que sabemos da nossa realidade extraordinariamente complexa, seria ilusório e arrogante afirmar que atingi a verdade num plano existencial superior. Apesar de tudo isto, eu não aceito o agnosticismo. Eu não penso que estas verdades são incognoscíveis. No seu estado actual, os nossos pobres cérebros humanos são incapazes de compreender aquilo que não está relacionado directamente consigo mesmo e com a metodologia de organização sensorial das suas formas limitadas de percepção. É na computadorização exponencial do futuro e nas descobertas vertiginosas da física quântica que residem a esperança iluminada do esclarecimento.

Tenho apenas uma certeza – algo existe. Algo ao invés de nada. Eu não sei porque nascemos, mas sei que nascemos. Eu não sei de onde viemos, mas sei que estamos aqui. Eu não sei para onde vamos, mas sei que quero ir. Estaria a mentir se dissesse que me sinto completamente seguro na minha posição filosófica e que não tenho momentos de desespero que tendem mais para a visão do pessimismo do que para o optimismo. Mas, na maior parte das noites, quando pouso a cabeça na almofada, estou extremamente grato por estar aqui. Há uma imagem mental a que recorro quando estas dúvidas são mais fortes e as preocupações da minha vida parecem irrelevantes neste universo indefinível. Nos documentários da vida animal existe a cena clássica – a passagem migratória das zebras num rio povoado por crocodilos. Inevitavelmente, uma das zebras é atacada e tenta fugir desesperadamente do poderoso réptil. A sua repulsa por essa violência é tamanha que chegamos a observar situações em que o animal tem um dos membros preso nas mandíbulas, mas continua a tentar libertar-se e chegar à segurança da margem. Esse desespero instintivo, essa recusa brutal da morte em todas das coisas vivas, é a minha canção de embalar, as notas reconfortantes que me levam a fechar os olhos com a esperança de viver e a vontade de voltar a abri-los no dia seguinte.

segunda-feira, 3 de março de 2014

O Templo Suburbano


Com o furor que se instalou depois do deflagrar de armas químicas no conflito sírio, não entendo por que razão ainda não se produziu um chiqueiro comparável relativamente ao crime contra a humanidade que é a aerosfera das lojas modernas de roupa. Pelo menos na Síria estamos a falar de uma substância que causa uma morte quase instantânea, enquanto nas lojas de roupa estamos a lidar com gases tóxicos cujo objectivo parece ser o de infligir o máximo de sofrimento injustificado sem acabar com a vítima.

A morte é um fenómeno que ainda experienciei e que não tenho qualquer intenção em experienciar, mas julgo pelo menos ter a certeza de que este representa o fim de percepções sensoriais terrenas como o olfacto. Nas lojas de roupa dos centros comerciais não temos a hipótese de desfrutar desse alívio agridoce. As Zaras e as Mangos insistem em disseminar versões diferentes de um gás tóxico que pode ser descrito como um perfume de avó francesa com um toque de antraz. O ar é de tal forma espesso que este aproxima-se perigosamente do estado sólido. Não sei decifrar o motivo para este atentado contínuo. Eu quero comprar uma camisa nova, mas a impossibilidade de me manter dentro de uma loja durante mais que dois minutos seguidos dificulta a selecção, experimentação e pagamento de uma peça de roupa.

Infelizmente, este nem sequer é o pior atributo dos centros comerciais. Aos Domingos, estes templos pós-modernos atraem hordas suburbanas de pessoas que apreciam desmesuradamente o acto de vaguear sem rumo por corredores labirínticos de lojas. Durante a temporada fria, o aquecimento do recinto parece atraí-los, como répteis de sangue-frio a realizarem a termorregulação homeostática ao sol. Qualquer passeio por uma cidade portuguesa de pequena-média dimensão transmite o clima de uma geografia pós-apocalíptica. No entanto, o mundo não acabou. Simplesmente migrou temporariamente para os centros comerciais. É por essa razão que tendo a evitar estes espaços com a mesma aversão que me leva a evitar a costa da Somália e o deserto do Chade. Sartre já dizia que o inferno são os outros, mas ele nem sequer podia imaginar a danação misantrópica que o esperaria num centro comercial.

Não julgo ter alguma perspectiva nova sobre o fenómeno do consumismo, nem quero compor qualquer diatribe sobre os perigos da alienação individual causada pelo malvado sistema capitalista. Não é isto que me preocupa. É a incapacidade humana de simplesmente estar. É a mesma razão que leva alguém a preferir automaticamente a televisão a um livro. A razão pela qual se pensa que a verdadeira ameaça à democracia está nos mercados financeiros, ao invés da tendência assustadora da abstenção. É esse motivo que leva alguém a não querer estar informado. É o que origina a incapacidade de finalizar uma viagem de carro antes de responder a uma mensagem escrita. É a força motriz da propagação de redes de internet sem fio, com objectivo final de transformar o mundo num inferno conectado em banda larga.

Os centros comerciais vivem dessa deficiência moderna. Eles preenchem o vazio que surge das deambulações hiperactivas de um reduzido limiar de atenção. O chocante é que, além do simples acto de compra, nenhuma função, actividade ou prática significativa pode ser desempenhada nessas catedrais. Eu não tenho nenhuma recordação importante de algum momento passado num centro comercial. Apesar disso, é ali que, cada vez mais, congregamos e comungamos à procura de nada em particular. Toda a estrutura é desenhada de forma a alimentar essa procura fútil. Os estímulos são sobrecarregados. A ideia é atenuar ao máximo os efeitos da imaginação. O ar é quente e perfumado. O sistema de som transmite constantemente música insuportável. As luzes são intensas e variadas. As cascatas cospem água. Os anúncios no altifalante fazem promessas babilónicas. Todos parecem confortáveis. A multidão percorre o espaço alegremente como cavalos mecânicos a girar num carrossel abandonado.