segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Hipocristiania


Não há a mínima dúvida de que o Papa Francisco parece ser uma excelente pessoa. Bondoso, caridoso, tolerante. Daí ser difícil não nos questionarmos acerca da contradição entre essa cativante personalidade e a imoralidade do livro, instituição e ideias que este senhor representa.

Os movimentos anti-discriminatórios que defendem a maioria muçulmana, que é pacífica e que se trata da principal vítima da radicalização, são importantes para combater os racismos mais ignorantes. Mas não podemos excluir a religião do debate geo-político em que todos estamos envolvidos. Hei-de discorrer ainda muito sobre as várias dimensões deste conflito global. Hoje, queria apenas tocar ao de leve num ponto importante neste confronto que é também religioso: o Islamismo não é dogmaticamente mais perigoso que o Cristianismo ou o Judaísmo. Tudo o que os distingue é moralidade resultante do desenvolvimento civilizacional em que estão inseridos.

Como crítico de longa data de qualquer crença mítica, deparo-me com frequência com o argumento da moralidade dos escritos e da sua importância para que as pessoas, hoje em dia, tenham compaixão umas pelas outras. Há poucos argumentos tão falaciosos como o da importância da Bíblia na construção da moralidade humana ocidental. Durante séculos, vivemos numa sociedade dominada pelos valores bíblicos, e isso mais não trouxe do que discriminação, preconceito, rejeição científica, conflitos bélicos, genocídios e autoridade moral ilegítima. Os grandes avanços civilizacionais foram obtidos precisamente quando a autoridade dos escritos foi questionada, quando o estado começou a secularizar-se, quando a realidade passou a importar mais que os mitos, quando o sofrimento humano se sobrepôs á palavra de Deus. O argumento da moralidade bíblica devia ser encarado como uma piada de mau gosto, um escandaloso fechar de olhos a séculos de imoralidade que provém precisamente das escrituras.

Olhemos para o que a Bíblia judaica-cristã tem a dizer sobre a posição social da mulher:

 - O homem não foi criado para a mulher, mas a mulher para o homem. (Coríntios, 11:9)
 -  Se uma jovem é dada por esposa a um homem e este descobre que ela não é virgem, então será levada para a entrada da casa de seu pai e a apedrejarão até a morte. (Deuterónimo 22:20-21)
 - Foi pela mulher que começou o pecado, e é por culpa dela que todos morremos. (Eclesiástico 25: 24)
 - É melhor a maldade do homem do que a bondade da mulher: a mulher cobre de vergonha e chega a expor ao insulto. (Eclesiástico, 42: 14)
 - As mulheres tem de ser submissas aos vossos maridos (Pedro 3:1)

Estas nojentas normais morais não são passagens do livro sagrado dos terríveis muçulmanos terroristas; são transcrições da palavra do Deus que o Papa Francisco segue, que muitos de vocês seguem, que os nossos avós veneram. Tudo isto está escrito e é considerado pela Igreja Católica como a inatacável palavra do Senhor. Como é que alguém pode considerar este livro a grande origem moral da sociedade moderna? Como pode o papa chamar blasfémia ao acto de cometer atrocidades em nome de Deus e, simultaneamente, ser o grande representante na terra de um Deus que, a acreditar nas escrituras como ele acredita, impôs ele próprio as mais vis atrocidades e ataques aos direitos universais?

A sociedade ocidental não é mais avançada e pacífica por a nossa religião ser moralmente superior. O que a maioria dos cristãos faz é separar aquilo que os escritos divinos têm de ensinamentos positivos e priorizá-los, ignorando pornograficamente os actos grotescos cometidos pelo Deus que deviam amar, mas que na realidade temem. O que está na origem dessa separação entre as partes boas e as partes más da Bíblia é precisamente uma moral secular, intelectual, filosófica, uma bondade que faz os cristãos olhar para a palavra de Deus e, mesmo admitindo a sua origem e infalibilidade divina, optam ainda assim por descartá-la como lixo. Esta é a prova definitiva de que a moralidade humana não provém da religião. É, isso sim, bem mais forte do que ela.

Isso não é só visível nas sociedades de tradição judaica-cristã. Pelo contrário, este ponto é ainda mais forte quando olhamos a sociedades maioritariamente muçulmanas que não vivem de acordo com os radicalismos que associamos a esta crença.

Os cristãos, judeus e muçulmanos que vivem em países desenvolvidos no século XXI pegam nas palavras bíblicas como inspiração moral e filosófica, não como normas inatacáveis de atuação. Deus não lhes ensinou que passagens da Bíblia estão incorrectas. Deus não desceu novamente à terra em forma de arbusto para nos dizer "pessoal, só uma coisinha, afinal enganei-me naquela história das mulheres serem inferiores, elas são afinal iguais aos homens". Foram, isso sim, séculos de desenvolvimento científico, filosófico e humano que nos levaram a um ponto de iluminação em que a bondade, a tolerância e a igualdade são mais importantes do que a palavra divina. A nossa bússola moral é a nossa consciência, não o livro.

Por isso, Sr Francisco, deite-o fora. Se é a pessoa boa que parece ser, rasgue a Bíblia toda e deixe de representar um livro que vai totalmente contra a sua posição do mundo. Dispa-se desse fardo. Porque as palavras que proferiu vieram da sua consciência moral, não da palavra do Senhor, muito menos da história de actuação e pensamento da instituição que chefia. A sua moral, como a minha, provém do respeito mútuo, da compaixão humana e da nossa própria reflexão intelectual e emocional. Não sei quanto a si, mas o facto da raça humana ser capaz desse processo filosófico e comportamental dá à minha vida bem mais sentido do que ser obediente a uma mitologia ancestral.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

As tentações do Facebook

(Nota: o texto que se segue contém uma quantidade muito pouco patriótica de estrangeirismos. Se tiver dúvidas, consulte um dicionário Português – Português 2.0.)

Deparei-me há uns meses com uma reportagem, do Jornal de Notícias, que se fazia acompanhar por uma foto na qual um jovem na casa dos vinte, com um azucrinante e presunçoso sorriso, empunhava um cartaz no qual anunciava, orgulhoso: «Eu não tenho facebook». O artigo era precisamente sobre jovens que não aderiram à epidemia e que resistem no seu vaidoso isolamento. Não ter facebook é uma opção válida e extremamente racional. Porém, o seu pedantismo e arrogância deram-me de tal forma a volta ao estômago que dei por mim, eu que critico quase diariamente o uso dado às redes sociais, a defender fervorosamente as vantagens de um perfil activo nesse mundo paralelo.

O texto que se segue é uma avaliação crua, ainda que breve, dos malefícios do facebook no que concerne a desenvolvimento pessoal e às relações humanas. No entanto, esta minha experiência com o hipster que vos partilhei serve para ilustrar que, por muito que se assemelhe, não padeço da prepotência do rapaz supracitado. Tenho facebook, respeito muito a liberdade individual e, acima de tudo, nada tenho contra redes sociais per si. Tenho, no geral, muito pouco contra coisas. Já contra pessoas, a conversa é outra. Essas são amiúde mais difíceis de suportar pacificamente.

O facebook é uma ferramenta de inegável utilidade. É uma plataforma muito interessante de partilha de artigos, música, imagens, vídeos, e conteúdos multimédia em geral que despertam a nossa atenção e que cada pessoa julga pertinente compartilhar com os seus contactos. Já todos descobrimos, através do facebook, conteúdos com os quais, de outra forma, não teríamos sido confrontados. Esta funcionalidade de partilha permite mostrar aquilo de que gostamos, aquilo que nos interessa e, eventualmente, conversar com alguém a quem aquilo também despertou a atenção. Nada de mal com isto, é uma forma saudável e eficaz de criar um banco de conteúdos público e diversificado.

Todas estas possibilidades vêm, contudo, com um preço. E é sobre esse preço que vos quero falar, sobre aquelas que creio serem as armas com que as redes sociais nos apetrecham e que representam perigosas tentações às quais poucos escapam.

A primeira dela é a sensação de alterar a nossa própria personalidade. As mudanças de personalidade ocorrem com frequência, com o tempo ou moldadas por circunstâncias. As grandes mudanças decorrem, por um lado, da genética e dos acontecimentos externos, e, por outro, da consequente e saudável confrontação connosco próprios.

Ora estas mudanças que as redes sociais difundem decorrem do processo oposto: fugindo ao que não gostamos em nós, construímos a nossa imagem como a de um ser próximo da perfeição. A acne dá lugar ao sépia, as inseguranças dão lugar aos likes alheios, e os fantasmas da intrínseca maldade humana são substituídos por likes próprios para cães atropelados. É essa a fantasia do mundo facebook: é habitado por pessoas lindas, cultas, preocupadas, gentis, sociáveis. Esses alter egos são em tudo semelhantes a nós; mas melhores. E, sobretudo, mais populares.

Isto traz-me a outra tentação de que falarei: a sensação de celebridade. O desejo de ser uma pessoa famosa não é novo, e os benefícios da fama são explícitos e aliciantes. Esta fama facebookiana não permite aceder a festas privadas ou ir para a cama com groupies. Permite, no entanto, a vivência da sensação de que as pessoas querem saber da nossa vida. Estão curiosas por saber onde fomos, o que comemos, o que dizemos, tal como as massas estão interessadas em acompanhar o quotidiano das grandes celebridades. A lendária Betty White disse que, antigamente, ver fotos de férias dos amigos era um tédio, e que agora é um passatempo.

Esta atração pela sensação de fama é, mais frequentemente, uma tentação à qual as mulheres são mais vulneráveis. Esquecem-se, no entanto, de um pormenor que é de tal forma relevante que é, na verdade, aquilo que faz o mundo girar: os homens são uns porcos. Assim sendo, o facebook tornou-se uma plataforma conspurcada de engate, que vai do mais subtil ao mais descarado, dependendo do desplante e do atrevimento do indivíduo. Esta nova dança de acasalamento não me irrita como outras coisas nesta rede social. Mas perturba-me sobremaneira, porque não raramente resulta, e isso é para mim um mistério; e as coisas que eu não consigo explicar perturbam-me por demais.

Os insondáveis caminhos para o acesso à cama de uma mulher são e continuarão a ser labirínticos. Há, no entanto, um conjunto de factores que explicam facilmente o escalar de uma atracção. A atracção entre dois seres não é estática, é gradual, é faseada, durem essas fases longos meses ou escassas horas. E para isso é preciso todos os sentidos funcionarem como um. Quando todos os sentidos humanos se fundirem num, num apenas, que faz com que queiramos aquela pessoa mais do que todas as outras, está construída a atracção. Para isso contribuem todo o tipo de factores, como o cheiro da pele, o tom de voz, o riso. No fundo, toda a percepção que a proximidade física proporciona.

Que todo este processo se desenrole no mundo online é para mim inescrutável e altamente intrigante. Ela pôs like no meu artigo, logo daqui a uns dias tenho de retribuí-lo numa foto dela, para ela ver que estou interessado e atento, para que na festa da próxima semana, quando ela estiver bêbeda o suficiente para me querer, e eu estiver bêbedo o suficiente para falar com ela sem usar um teclado, tenho mais hipóteses de ter sucesso. É este o jogo de sedução moderno. Chamem-me antiquado, mas parece-me cinzento, confuso e entediante. Mais do que isso, é mecânico e artificial.
É, no entanto, uma inevitabilidade. As mulheres estão lá todas, como um catálogo de carros, um menu detalhado, que contém todas as informações, currículo, cilindrada, interesses artísticos, combustível, estados de espírito e, mais importante, fotos de vários ângulos e outfits, o que permite avaliar a qualidade do veículo e, se tudo falhar, servir como suporte visual a uma maratona masturbatória.

Por fim, quero referir uma perversidade oculta nisto tudo: o conceito de privacidade não foi deturpado. Está antes rapidamente a definhar-se. Ficamos chocados se alguém usa uma foto nossa, mas somos os primeiros a pô-las online. Se alguém nos aparecer no nosso local de trabalho, ou em qualquer outro sítio só para nos ver, não podemos culpar ninguém senão a nós próprios por essa informação ser de conhecimento geral. E quando eu falo da preocupação em certas informações não serem do conhecimento geral não falo em segredos. São informações que se podem dar casualmente numa conversa informal com um conhecido. Mas nós partilhamos tudo com os desconhecidos. Eles sabem dos nossos relacionamentos, da nossa família, dos nossos destinos turísticos, da nossa vida nocturna. Pessoas que só conhecemos de nome, ou nem isso, sabem coisas sobre a nossa vida que a nossa avó não sabe a não ser que pergunte. Isto tem de assustar qualquer mortal com o mínimo de auto-preservação.


Estamos num ponto sem retorno. Ninguém quer chegar a casa e perder o contacto com as pessoas. Ninguém quer abdicar da persona que criou, que é tão popular e apreciada. Ninguém quer voltar a ter de abordar uma rapariga pessoalmente de forma a mostrar interesse. Olhar nos olhos é íntimo e invasivo, e nunca as nossa tiradas hilariantes a que ela responde com tantos smiles de riso vão ter tanta piada improvisadas na hora como têm no facebook, com tempo para pensar e construir a frase da forma mais cool. Até que esta aparente fuga à solidão nos fará a todos mais solitários, num mundo em que as identidades se vão desvanecer, e em que nós próprios vamos deixar de saber quem somos: a pessoa sorridente, social e activa que aparece na foto e que comenta com joviais emoticons; ou a pessoa solitária que está de braço esticado a tirar uma foto sozinha e que vai passar as próximas horas na cama a fazer scroll pelo feed e a comer as bolachas de chocolate do Pingo Doce até enjoar delas para sempre.

domingo, 14 de junho de 2015

Os meus pêsames

Nunca me senti tão insignificante como na primeira ocasião em que me encontrei com a morte, durante o ensino secundário. Ainda não tinha dezoito anos, mas o meu melhor amigo desde a infância apareceu na entrada da escola com os olhos vermelhiços, com um jornal amachucado nas mãos, aberto na página dos obituários, entre os anúncios de prostitutas e os curandeiros místicos africanos que juravam deter o segredo de curas para todos os males da humanidade - mau-olhado, inveja, desemprego, drogas, álcool, amor e impotência.

- O que aconteceu?

O jornal veio parar às minhas mãos e reconheci numa das fotografias sorridentes de bilhete de identidade o primo do meu amigo. Numa tipografia gótica e discreta, a família desejava que Deus o tivesse e anunciava que o velório seria dali a três dias. Não era referida a causa de morte, nem tive eu o ímpeto de ceder à curiosidade mórbida e perguntar:

- Como morreu?

Enquanto procurava palavras reconfortantes, o meu amigo agarrou-se a mim num abraço violento, as suas unhas arrastavam-se pelo poliéster do meu casaco de inverno como se este fosse um quadro negro, produzindo um som insuportável que dava voz à agonia que naquele momento nenhum dos dois conseguiria descrever.

- Estás bem?

A pergunta saiu da minha boca antes de eu ter compreendido a sua inutilidade. Não era aquela a hora para a boa educação e para os bons costumes que me tinham sido impingidos pela família nas dezenas de funerais de desconhecidos nos quais eu tinha marcado presença. O meu amigo não me respondeu, continuava irracional, agarrado a mim, numa crise de histeria que contrastava com o estoicismo que eu tinha encontrado frequentemente nos outros.

- Queres alguma coisa?

A ausência de preparação para aquela situação levava-me a uma incerteza tão ampla que eu queria oferecer ao meu amigo o mundo. Queria dar-lhe o colmatar de uma necessidade - sede, fome ou sono – mas nada parecia ser capaz de retirar o afligido do seu transe. Eu ofereceria qualquer coisa, a minha própria vida, até, qualquer coisa para conseguir sair daquele abraço, qualquer coisa para que o meu amigo parasse de sujar o meu casaco com as suas lágrimas, qualquer coisa para conseguir voltar aos tempos em que ninguém dependia de mim para exorcizar a sua dor. Os meus pensamentos teimavam em tirar-me daquela experiência real e dolorosa.

Aquilo era a vida a acontecer – na sua manifestação mais dramática – e eu estava absorto no meu egocentrismo, alheio ao sofrimento do meu amigo mais próximo. No final das aulas, quando a minha mãe veio buscar-me, sentia-me enganado e ressentido. Odiei-a naquele momento, a sua incompetência parental, a sua fraqueza, não consegui acreditar como é que ela tinha deixado aquilo acontecer, como é que, com todos os recursos da humanidade, eu, um rapaz de dezassete anos, tinha sido incumbido com a tarefa de amortecer o impacto da morte, como é que, depois de todos aqueles anos de vida, tinham-me deixado tão despreparado para lidar com o evento mais natural do mundo.

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Matar por atum

the droll noon
where squadrons of worms creep up like
stripteasers
to be raped by blackbirds

I go outside
and all up and down the street
the green armies shoot color
like an everlasting 4th of July,
and I too seem to swell inside,
a kind of unknown bursting, a
feeling, perhaps, that there isn’t any
enemy
anywhere

and I reach down into the box
and there is
nothing not even a
letter from the gas co. saying they will
shut it off
again.

not even a short note from my x-wife
bragging upon her present
happiness.

my hand searches the mailbox in a kind of
disbelief long after the mind has
given up.

there’s not even a dead fly
down in there.

I am a fool, I think, I should have known it
works like this.

I go inside as all the flowers leap to
please me.

anything? the woman
asks.

nothing, I answer, what’s for
breakfast?


Charles Bukowski


Conheço pessoas que não podem ouvir a palavra “sushi”. Poder, até podem. Eu é que não quero que a palavra chegue aos seus ouvidos. As duas delicadas sílabas nipónicas são proferidas, e o discurso racional desaparece. Seguem-se descrições de fatias gordurosas e reluzentes de peixe cru, enquanto os sonhadores tentam esconder a salivação (um bem-haja, Pavlov!), adoptam uma retórica extremista (“tenho de comer sushi pelo menos uma vez por semana”) e fazem juras incompreensíveis de amor eterno (“quero ser enterrada com peixe cru”).

Às vezes, nesses momentos, perco a calma. Consigo escondê-lo na maioria das ocasiões, mas já aconteceu ter de inventar uma desculpa e ir-me embora. Parece ridículo, eu sei, até mesmo absurdo, mas sou possuído por uma raiva incompreensível. Não estou a ser hiperbólico ou figurativo. É mesmo raiva, daquela que circula no sangue sob a forma de adrenalina, que provê de energia adolescentes zangados em concertos de metal e soldados desesperados em campos de guerra. Quero virar a mesa, gritar como um chimpanzé com rábia e gesticular como Hitler num comício político.

Sempre fui assim. É uma das sensações mais antigas que vagueiam pela minha memória: tentar conter a raiva. Na infância, a aflição era tanta que o canal lacrimal era inundado por uma monção asiática. Nessas situações, além da raiva, tinha de esconder também o choro. Os motivos que causam as crises são indirectos, mas compreensíveis. No exemplo introdutório, a minha ira não advém de alguma aversão primitiva a sushi. Eu associo a obsessão cosmopolita pelo sushi a outra coisa, algo que activa o meu cérebro reptílico e que não desejo partilhar com o vácuo infinito do precipício cibernético. Mas, sendo honesto e ambíguo, a culpa era minha. Ao não lidar com os problemas reais, a raiva acumulava-se e o resultado final não era digno: um homem adulto perdia a calma por causa da mera alusão a um tipo de comida.

Julgo que não sou velho o suficiente para coçar a minha barba branca, dar mostras de sabedoria e catalogar aquilo que aprendi nestes vinte e cinco anos entre o céu e a terra. Mas se há algo que aprendi, algo cujo valor de aprendizagem é distintamente superior ao das outras milhares de pequenas lições, é a futilidade de perder a calma. Essa asserção parece óbvia, mas é muito fácil entrar num ciclo de dependência de emoções extremas. A raiva reforça a noção errónea de que estamos certos e que o mundo é um inimigo. E o ressentimento que se segue é delicodoce, como a melancolia.

Antes escolhia contê-la, cedia ao instinto. Raiva pessoal não é nada mais do que vergonha agressiva, e vergonha é, perdoem-me a redundância, vergonhosa (São Camões que me perdoe por esta prosa de folheto de auto-ajuda). Ela aparecia, derivada de coisas insignificantes e de coisas sérias, mas era controlada por anestesias proporcionadas pelos milagres farmacológicos da alquimia humana. Quando, por saturação ou por mera eventualidade, a canção se tornou realidade e as drogas deixaram de funcionar, passei a lidar com ela em lampejos vergonhosos de gritaria e masoquismo, um comportamento que só parou quando os limites estarrecedores da quase-morte foram atingidos.

Agora ela sai, como a fumaça de uma locomotiva da era industrial, de forma visível e controlada, numa série de chaminés solitárias (também aprendi que a raiva é tímida). Corro à noite, limpo a casa regularmente (o valor terapêutico é limitado; não quero limpar as vossas casas, mas obrigado pela oferta), faço voluntariado (muito nobre, eu sei, estou a subir as escadas para o céu), aprendo peças complicadas na guitarra, nado, tomo banhos de imersão, medito (muito profundo, eu sei, mas a ciência é inegável), conduzo sem destino (como um cliché sob quatro rodas).

Não sei porque possuo tamanha susceptibilidade inflamatória, mas já aceitei que ela não desaparecerá. Por vezes é útil. Permite-me terminar aquilo que começo, já que, no meu caso, a raiva é prima de segundo grau da obsessão. Mas noutras situações é apenas uma descarga mesquinha de alguém irreparavelmente inconformado com problemas irresolúveis. Agora aceito que certos problemas não têm solução. Aprendi que muitos dos meus problemas nem sequer existiam; eu, como muitos outros antes de mim, entrava em jardins sem saber que eram labirintos, pensando que sabia onde ficava a saída e que os idiotas do passado se tinham perdido devido à sua natureza idiótica.

Isto não é uma confissão declamada do topo da montanha. Não reivindico nenhum estatuto de sabedoria. Não habito um templo. Não possuo discípulos. O meu estado actual é apenas uma linha de suturas que pode a qualquer momento se transformar num remendo permeável. Há dias em que não sei como é que mudei tanto. Há dias em que não sei como consigo manter a calma. Os estímulos da raiva continuam absurdos. Às vezes basta acordar. Às vezes basta o contacto com algumas das modas mais insuportáveis dos nossos tempos, como a obsessão culinária, com os programas de televisão, os buffets de sushi e as hamburguerias gourmet. Mas há dias em que sinto que até tenho alguma razão. Isto foi longe demais. Se ouço mais uma pessoa a falar sobre a importância de ter a frigideira bem quente, ou sobre a necessidade imperativa de possuir um ralador de queijo, algo horrível acontecerá a essa pessoa, e envolverá a minha mão direita, uma frigideira e um ralador de queijo.

domingo, 19 de abril de 2015

Sobre a banalidade dos homens - II


“This is the day upon which we are reminded of what we are on the other three hundred and sixty-four.” - Mark Twain, sobre o primeiro de Abril

Rodrigo de Borja, conhecido profissionalmente como Papa Alexandre VI, teve um pontificado de onze anos, entre 1492 e 1503. Subornou cardeais para garantir a sua eleição. Atribuiu cargos importantes a membros da sua família e a membros da família da sua amante, Vanozza Catonei, com quem teve quatro filhos. Organizou os três casamentos da sua filha Lucrécia de acordo com necessidades políticas. Vendeu indulgências como se fossem commodities em mercados internacionais. Os rumores que circulam à volta do seu mito incluem palavras como incesto, homicídio, envenenamento e orgia.

Quando Jorge Bergoglio se transformou no Papa Francisco, ele decidiu morar na casa de hóspedes do Vaticano, rejeitando o luxo do tradicional apartamento papal. Lavou os pés a doze detidos de prisões romanas. Abdicou dos tradicionais ornamentos dourados que embelezavam decadentemente a figura papal. Trocou o trono extravagante do Bispo de Roma por uma cadeira respeitável. Substituiu os tradicionais sapatos vermelhos de couro por um par de sapatos banais. O seu ascetismo foi aplaudido. Até alguns ateus de serviço se juntaram à salva. Outras pessoas, no entanto, criticaram a santíssima decisão, assim como a torrente ingénua de elogios que se seguiu.

Afirmaram que não era suficiente - o Papa não tinha montado uma tenda humilde na Praça de São Pedro. Os museus do Vaticano estão cheios de tesouros avaliados em milhares de milhões de euros enquanto nações inteiras passam fome. A instituição católica continua tingida por uma opacidade tenebrosa que oculta escândalos chocantes. É natural que existam discordâncias, mesmo nas coisas mais simples. Afinal, unanimidades absolutas só no Comité Central do PCP. Mas uma pergunta impõe-se: o que é que podemos concluir sobre a natureza humana quando mesmo actos deste género são criticados?

Nada de mais, para ser sincero. É perigoso extrair conclusões abrangentes de pedaços avulsos de informação. Mas aceitando esse perigo, poder-se-ia arriscar e concluir que um certo cinismo irónico venceu, instalando-se como o tom preponderante do nosso discurso cultural.

É um mundo onde as nossas almas se retraem com náuseas cada vez que se fala de honra e moral e certo e errado, como se essas questões fossem simples e o debate já estivesse resolvido. Assume-se que nascemos livres e puros, que a bondade é intrínseca no coração humano, e que a única coisa que resta é a busca da felicidade e a procura pelo prazer. Aqueles que ousam pregar do púlpito, mesmo do púlpito secular, são ostracizados pelo relativismo céptico de quem se julga o detentor inquestionável da sabedoria.

É certo que o Papa não realizou nenhum acto extraordinário na sua decisão de recusar a mansão papal. O mundo não mudou porque ele decidiu rejeitar a ostentação que tradicionalmente cobria o sucessor de São Pedro. Mas esta questão tem implicações mais graves e mais subtis.

Esqueça-se o Papa Francisco e considere-se o Jorge Bergoglio. É um homem. Come e dorme. Olha-se ao espelho. Arrota. Bate com o dedo mindinho nos móveis. Usa papel higiénico. Tem erecções. Ele provavelmente até acorda da mesma forma que nós. Abre os olhos, mas não quer sair da cama. Fecha os olhos, e cede àquele impulso misantropo de pequena duração que nos faz duvidar do valor da existência fora do conforto enrodilhado de cobertores quentes. Depois, num gesto corajoso, masoquista e banal, arranca as cobertas, pousa os pés no chão frio de madeira envernizada e luta para manter os olhos abertos.

Esta pequena batalha – acordar – é partilhada por todos. É superficialmente insignificante. Mas quantos de nós, se estivéssemos na posição do Papa, teríamos abdicado do que ele abdicou? Acordar pode ser uma batalha pequena, mas é uma batalha que seria ganha com maior facilidade no conforto do apartamento papal. Qualquer um de nós, uma grande maioria, provavelmente, teria muita dificuldade em recusar todos aqueles símbolos de poder. Mesmo sendo o representante máximo de uma religião que prega a humildade, aproveitaríamos a oportunidade suprema de sermos algo próximo de mestres do universo, alguém que vive num palácio, veste-se de seda, adorna-se com ouro e influencia o mundo com apenas meia dúzia de palavras. E sejamos honestos. Um homem que é voluntariamente abstinente precisa de todos os outros prazeres que a humanidade tem para oferecer. Ao retirar-se o sexo da equação, o mínimo que podem fazer pelo homem é cobri-lo com ouro e oferecer-lhe um palácio onde se serve lagosta todos os dias.

Os tempos são outros. O mundo de hoje nunca toleraria a devassidão que reis e papas desfrutaram no passado. Mas criticar o Papa Francisco desta forma não é um exercício de cepticismo saudável. Não há nenhuma grande hipocrisia escondida no papado. A hipocrisia é criticar este Papa por fazer coisas que poucos fariam. Não que ele seja assim tão exemplar, ou assim tão bom e puro, mas, nós, na esmagadora maioria, não somos nem exemplares, nem bons, nem puros. O problema aqui não é reconhecermos a superioridade moral do Papa. É não reconhecermos que, na maioria dos casos, o nosso pontificado estaria mais próximo de Alexandre VI do que de Francisco. E certamente que não teríamos lavado os pés de ninguém. Nem sequer os nossos.

terça-feira, 17 de março de 2015

Sobre a banalidade dos homens


“Galileu escrevia muito bem. Li-o em traduções medíocres. Disse, diante dos inquisidores, que isto não se movia: gozava, ao dar-lhes razão, inteligente como era: porque isto, de facto, não se move.” - Sebastião Alba

Há erros que deixam de existir depois da morte. Pais alcoólatras se transformam em santos, filhos ingratos em anjos, terroristas em mártires, homens banais em mitos. Esse esmalte purificador é uma das vantagens inegáveis do passado. Depois de tempo suficiente, até o mal deixa saudade. As memórias ganham contornos mágicos que nos garantem que o presente é sempre pior e que o futuro nunca será melhor.

Os museus estão entupidos com exemplos. Os retratos pintados de reis eternizam a imagem sagrada de líderes serenos e magnânimos. As esculturas de filósofos gregos criam ideais de sabedoria e tenacidade que nunca conseguiremos atingir. As fotografias a preto e branco de estrelas de rock falecidas lembram-nos que nunca teremos tanto estilo como aqueles que possuem a sorte de serem eternamente jovens. Raramente lembramo-nos da violência, da crueldade, da loucura ou da imoralidade desses vultos do passado.

Nem é necessário argumentar, bastam as imagens. Contraste-se a serenidade magnânima dos reis do passado com o escárnio jocoso com que olhamos para o bigode farfalhudo de D. Duarte Pio; a serenidade tenaz dos filósofos do Antigo com a ironia com que avaliamos a utilidade da filosofia no mundo moderno; a rebeldia estilosa que Jimi Hendrix levou para a cova com o declínio biológico que Bob Dylan tem a sorte de usufruir; a evocação respeitosa de Che Guevara com a comicidade involuntária de Fidel Castro e os seus fatos de treino.

Consideremos o nosso caso nacional. Enquanto Mário Soares definha à frente das câmeras, a memória de Sá Carneiro recebe um elogio fúnebre eterno. Sá Carneiro é o pai espiritual da social-democracia portuguesa e, se não tivesse morrido, o país seria diferente. Era um político inigualável, um estadista exímio, um homem à frente do seu tempo, um conciliador de vontades, capaz de unir gregos e troianos, portuenses e lisboetas, sal e açúcar. Era o único homem que poderia ter carregado este naco de terra nas suas próprias costas em direcção ao progresso que a nossa constituição comunista tanto exalta. Sá Carneiro é o melhor político que alguma vez existiu em Portugal. Com comendas de tal ordem, facilmente se conclui que o maior erro político de Mário Soares foi não ter morrido tragicamente num acidente de avião. Se queres fazer obra, morre.

No presente, a glorificação do banal assume outra forma. Pasmamo-nos com os excessos alucinados do culto norte-coreano de deificação política, mas, ignorantes da nossa retumbante estupidez, não conseguimos ver que fazemos a mesma coisa. Numa versão aguada, é certo, mas que funciona segundo a mesma lógica.

Rejeita-se a responsabilidade e deposita-se toda a esperança numa figura mítica, num milagre dos céus ou num acaso da sorte que obrigue o universo a reconhecer legitimidade dos nossos desejos. Com isso, descobre-se no desamparo a solução para todos os problemas. Quando aquilo que é necessário são realismo e homens mortais que reconhecem as suas limitações, aquilo que pedimos são promessas e semi-deuses. Não nos espantemos então com a constituição moral e a competência técnica da nossa classe política: quando clamamos por homens que pensam que são o Messias, os únicos que levantam o braço são os estúpidos, os ignorantes, os loucos, ou os ambiciosos o suficiente para afirmar que são o filho de Deus.

Os partidos no poder desempenham dois papéis alternadamente. No governo, esbarram contra a realidade; na oposição, prometem diamantes e galáxias. O eleitorado adapta-se: àqueles que apoiam, exigem reciprocidade, preferencialmente manifestada em recompensas materiais; àqueles a quem se opõem, exigem perfeição, sabendo e ignorando que esta não existe. Nos interlúdios, perdemo-nos na eclosão mediática de “escândalos” que a imprensa encontra, eventos com o valor de uma moeda de cinco cêntimos perdida no chão; tem valor, mas não é suficiente para me fazer parar. Ignoramos a doença, mas ficamos ultrajados com os sintomas. Confrontados com a complexidade inerente a qualquer problema, contentamo-nos com o fatalismo de costume, cedendo à generalização desinformada de que os políticos são todos os iguais.

É como ver babuínos a atirar fezes uns aos outros: até seria engraçado, se não fosse tão tristemente previsível. O apelo desaparece rapidamente, passando do fascinante para o engraçado, do engraçado para o patético, e do patético para a repulsivo. O resultado final é o mesmo. Ficamos todos um pouco mais sujos, um pouco mais cansados e muito menos respeitáveis, sabendo que nada mudou e que ninguém aprendeu nada, confundindo o alívio nos intestinos com um sentimento de realização. E continuamos aqui, com merda a pingar da testa, à espera que alguém, Sá Carneiro ou D. Sebastião ou António Costa, tanto faz, retorne, num dia qualquer, ou numa manhã de nevoeiro, cheio de jet-lag, para salvar esta nação cheia de pessoas à espera de serem salvas.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Fiscais

O nosso primeiro-ministro é um líder político cujo discurso e actuação sempre se pautaram pelo rigor financeiro e pelos apelos ao sentido cívico e de responsabilidade. Quando se descobrem registos de que o seu passado não é assim tão isento de falhas, é natural que palavras como hipocrisia e falsidade pululem pelas vozes da opinião pública.

Eu vou tentar que este texto não possa ser confundido com uma apologia ao comportamento de um primeiro-ministro que já em muitas ocasiões demonstrou pouca habilidade política, nomeadamente a gerir situações com esta. Também eu tenho muitas interrogações em relação a este caso, assim como certezas de que algumas coisas foram mal manejadas, e as tentativas de desculpabilização e de absolvição roçam o ridículo. O homem estava tão desesperado que foi pagar uma multa prescrita. A quem e como é que falta averiguar.

No entanto, o meu problema com este caso é bem mais político do que ético. A fuga ao fisco é uma tradição que não pode ser esquecida, e muito menos condenada por quem a ajudou a propagar. Não peço ao cidadão que ignore o facto de termos um primeiro-ministro com um passado fiscal incumpridor e, sobretudo, obscuro. Deve haver escrutínio, deve haver rigor. Rogo apenas a que haja coerência de ideias, quer no elogio, quer na crítica. E não o faço exclusivamente a quem, como podem julgar, tem na fuga aos impostos um hábito. É importante porque não só os incumpridores fiscais pecam por falta de coerência ao opinar sobre este caso.

Para haver coerência, naturalmente terá de haver uma referência, um padrão opinativo. Isso não existe no cidadão comum. O cidadão quer políticos honestos, mas condena quem mostra honestamente que andámos a viver em regabofe e que é preciso pôr um travão. O cidadão reclama serviços públicos de alcance global, mas ataca a tirania do Governo quando este cobra os impostos que permitem ao Estado cobrir essas despesas. Um dia alongar-me-ei sobre as inconsistências argumentativas do povo português. Para já, alerto para a sua existência, e para o quão precipitado é avaliar o comportamento ético de alguém pelo seu passado de descontos para a segurança social.

Outra coisa: Passos Coelho não é um baluarte da honestidade. Mas o que é preciso não olvidar é que, como o primeiro-ministro se esconde por trás dos erros do seu antecessor, não podemos esconder atrás dele as falhas os nossos enganos colectivos - sociais e políticos - que foram decorrendo ao longo das décadas de democracia.

A nível de exemplo e de integridade, este caso é um escândalo lamentável e evitável. Mas o diagnóstico que Passos sempre fez do sistema fiscal é correcto e certeiro. Não se deixem enganar pelas suas fugas ao fisco: há oncologistas que fumam.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

O Predador Alemão


Como qualquer outra presa racional, analiso o nível da ameaça. O predador é temível, dizem. Adapta-se facilmente à mudança. Organiza-se em bandos que trabalham de forma eficiente e produtiva. Escuto rumores desconcertantes sobre o seu passado. Parece que outrora, liderados por um homem louco, mataram muita gente. E, pelo que dizem, estão a tentar acabar connosco. Não tenho a certeza se ouvi bem, mas acho que lhes chamam “alemães”.

No entanto, devo confessar: quando vi o predador ao vivo, não encontrei sinais ameaçadores.

Normalmente andam em grupos de quatro: dois adultos, homem e mulher (presumivelmente um casal), e duas crianças (presumivelmente a prole). Falam numa língua ríspida e desagradável, é certo, mas sorriem constantemente. O cabelo dos filhotes era anormalmente loiro (quase branco). O vestuário que usavam possuía uma combinação de cores arrojada (amarelo-torrado, rosa-salmão, vermelho-vivo), mais extravagante do que os indígenas lusitanos ousariam vestir.

O gesto mais assustador que testemunhei foi quando o macho adulto levantou os braços subitamente para tirar uma fotografia (com uma câmera “Leica”, julgo eu) à Basílica da Estrela. Quando correram para apanhar o eléctrico, não vislumbrei atributos físicos fora do normal. Temi que estivessem a aproveitar o espaço fechado do eléctrico para matar presas com maior facilidade. Mas tudo o que aconteceu foi que a fêmea adulta pagou pelos bilhetes enquanto o resto da família se sentou nos bancos. Não sei explicar, mas quando o eléctrico partiu, ainda sorriam. Para ter a certeza, verificarei na minha enciclopédia, mas penso que observei a subespécie alemã de “turistas”.

Acabei por concluir que aqueles espécimes eram excepções, versões mais mansas das criaturas sanguinárias que habitam no centro da Europa. Afinal de contas, por onde quer que se ande, para onde quer que se olhe, abundam vozes desesperadas a avisar dos perigos que eles trazem. Roubam-nos crescimento, dizem. Desviam crescimento também. Eles nada dão, só emprestam, e em condições que são meramente “favoráveis”.

Há quem diga que até já são os alemães que mandam em Portugal. Nada acontece sem a sua aprovação. Há quem jure que quando os portugueses votaram para eleger o governo, há quase quatro anos, havia alemães disfarçados em todos os locais de voto, incumbidos com a missão de cumprir a vontade da líder germânica, designada pelos compatriotas como “Merkel”.

Mas depois fiquei ainda mais confuso.

A “BMW”, uma empresa alemã, é a quarta marca de carros mais vendida em Portugal. E, segundo fontes anónimas, vendem carros caríssimos. O que é estranho, tendo em conta a gritante pobreza da nação lusitana. São os alemães que nos obrigam a conduzir carros de elevada qualidade, só pode ser isso. Mas há mais: descobri que a Alemanha (o habitat natural dos “alemães”) é um dos maiores investidores estrangeiros em Portugal. Pensei que se tratava de um erro. Mas é verdade. A “Leica”, a marca da câmera fotográfica carregada pelo macho adulto que observei, é uma empresa alemã, e noventa por cento das suas câmeras fotográficas são produzidas em Portugal. A Autoeuropa, outra empresa alemã, é responsável por dez por cento das exportações portuguesas.

Depois percebi. É um truque. É que estes alemães, enfim, querem estimular a nossa dependência. Não sei exactamente porquê, mas as razões são irrelevantes. Tenho a certeza que não podemos confiar neles. Tantas vozes em uníssono não podem estar erradas. O Mário Soares, a nossa estrela mais brilhante, a nossa fonte inesgotável de lucidez neste poço escuro de ignorância, não pode estar errado. Alguém tem de fazer alguma coisa. Isto tem de parar. Basta de investimento a longo-prazo, basta de turistas ricos e felizes, bastas de carros potentes, basta de maquinaria industrial de elevada qualidade. Basta.