sábado, 17 de maio de 2014

Heróis de Guerra

Ao intervalo, estava conformado: um Barça estragado, podre, cinzento, sem alma, que passou de nunca cruzar para exclusivamente cruzar, sem ideias, sem personalidade, um gigante transformado em pedra, com um treinador sem carisma nem capacidades, ia ser campeão. O Atlético perdera os seus dois melhores jogadores nos primeiros vinte minutos do jogo decisivo, e o Barcelona marcara na única ocasião que lograra criar.

Deus escreve, todavia, direito por linhas tortas. E esse Deus chama-se Simeone. O regresso dos balneários é paradigmático do carácter, competência e coração dos dois treinadores e, por extensão, da equipa. O batalhão colchonero colocou o champanhe no frigorífico, porque havia inevitavelmente de ser bebido, e entrou de gládio em riste. A guerra tinha de ser ganha, a competência estava lá. Com quarenta e cinco minutos de bravura, teriam o mundo a seus pés.

A ideia romântica de que o dinheiro não é tudo tinha sido cruelmente contrariada pelo final da Premier League. Mas Simeone sabe que a supremacia capitalista pode ser ultrapassada. Com qualidade técnica, claro. Mas sobretudo encarando o futebol como a guerra que ela é: um conjunto de batalhas, um xadrez de ideias, as cabeças de todos e o coração de todos unidos no mesmo intuito. Simeone é um Genghis Khan, um Átila, um Napoleão. Dotou aquele exército de arrojo, ousadia, tenacidade, dedicação. Concedeu-lhes uma grandeza que os outros tinham por estatuto; o Atlético teve-o por crença. Este Atlético é a infantaria de Nuno Alvares Pereira em Aljubarrota, e ficará para a história como a evidência máxima de que no futebol, como na vida, o suor também triunfa.

Não se trata aqui de justiça. Podíamos estar aqui todos a lamentarmo-nos que o Atlético morreu na praia, que este Barça era o campeão mais inexplicável de que há memória, que a vida é injusta. A vida não quer saber, e Simeone sabia que o karma não iria ganhar nada por ele. Pegou os escudeiros pelos colarinhos e convenceu-os, de início, que acabar a época com Messi e Ronaldo prostrados perante a sua grandiosidade era mais do que um sonho, era um desígnio. Esta milícia estava destinada à glória, comuns mortais que reservaram, com nada mais do que perícia e brio, um lugar no Olimpo.

Era demasiado cruel para os milhões que sofrem, mais do que pelo clube, pelo jogo, que Liverpool e Atlético acabassem ambas sem títulos, quando foram as equipas mais apaixonantes, mais vertiginosas, mais sedutoras, por jogarem o futebol mais ardente, mais inflamado. São equipas que contrariam as limitações com uma impetuosa e incontrolável vontade, e é impossível, no mínimo, não simpatizar com este tipo de grupo. Demos por nós a festejar os seus golos, e depois de todos escorregarmos com Gerrard, foi refrescante viver o clímax deste conto de fadas e sentir que, um pouco por todo o mundo, também todos saltamos com Godín.

(Uma última palavra para Tiago. Daqui a umas décadas, o mundo do futebol já se esqueceu dele. Há, no entanto, poucos jogadores destinados ao esquecimento com uma carreira tão gratificante. Brilhou no Benfica, foi campeão com Mourinho no Chelsea, formou em Lyon com Juninho e Diarra um extraordinário meio-campo, teve muitas dificuldades na Juventus mas termina a carreira a jogar o futebol mais refinado da sua vida num grande Atleti. Pagava do meu próprio dinheiro para o ver passear toda aquela classe com a nossa camisola, nos perfumados relvados do Brasil.)

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