segunda-feira, 18 de abril de 2016

Ditadura das canetas

Ontem tive o prazer de me estrear no exercício do meu direito de voto enquanto sócio portista.
Quando entrei e me dirigi à minha mesa de voto, uma menina bonita recolheu o meu cartão, ditou o meu número de sócio ao colega e entregou-me o boletim. Acto contínuo, sorriu para mim e fez o alerta:
"Se quiser votar na lista candidata, pode colocar já o boletim na urna".
É uma nuance deliciosa destas eleições: os estatutos do F.C. Porto não prevêem votos em branco. Tudo isto porque o boletim não consiste na tradicional cruzinha. O boletim mais não é do que os nomes das pessoas que constituem o elenco da direcção. A opção do eleitor consiste apenas em colocar a lista imaculada na urna ou tornar o voto nulo, acrescentado ao boletim alguma inscrição.
De resto, habituado que estou à prática democrática, imaginava tudo aquilo feito com maior rigor, secretismo e profissionalismo. Nunca havendo votado em eleições desportivas, deduzi pelas institucionais que teria um local devidamente resguardado que acomodasse o meu direito ao secretismo, uma caneta presa a um cordel e a privacidade para tirar uma selfie com o boletim de forma a mostrar no facebook como cumpri o meu dever. Nada: apenas uma descuidada zona de mesas avulsas e o balcão de um bar, destinados aos judas manifestantes que não votam acriticamente.
Ora, quando me dirijo para a tal zona, constato que não tenho caneta. Aquilo que numa situação normal (assumindo como normalidade não haver canetas para ceder em local de eleições) me obrigaria a votar em branco, nestas circunstâncias obrigar-me-ia a atribuir o voto a Pinto da Costa. Tudo se iluminou: quem não leva caneta é obrigado a votar em Pinto da Costa. Foi aí que me apercebi deste maquiavélico plano, que consiste na segregação dos sócios contestatários. Quem vota na lista encabeçada por Pinto da Costa, não tem de fazer absolutamente mais nada senão depositar na urna o boletim no momento em que este lhe é entregue. Quem pretende não fazer parte do rebanho, tem a vida mais dificultada. Desde logo, terá de se dirigir a uma zona específica para traidores. Alinhados num balcão, de caneta em punho, como se estivessem a apostar na Placard, a rasurar nomes e redigir protestos. Dado o carácter despótico deste sufrágio, concluí logicamente que estaríamos a ser filmados, identificados e posteriormente a nossa traição será justamente punida. De resto, olhei imediatamente à volta à procura de locais de onde pudesse emanar gás que pusesse logo fim a esta manada. Não vi nada, mas joguei pelo seguro e coloquei a camisola por cima do nariz e da boca.
Pedi uma caneta emprestada ao senhor ao meu lado. Disse-me que com certeza, que só queria terminar de escrever algo. "As suas últimas palavras", pensei. Não sei se seriam, mas foram-no certamente para mim: quando me virei para lhe devolver a caneta, depois de rasurar os nomes da lista única, o senhor já lá não estava. Vou guardá-la como símbolo da resistência contra o autoritarismo, o sistema corrompido e a falta de esferográficas.
Quando se começou a especular acerca do F.C. Porto pós-Pinto da Costa, o plano parecia óbvio. Com uma estrutura oleada e consistente, o presidente iria apontar um príncipe herdeiro (provavelmente Antero), que daria continuidade ao projecto e asseguraria uma estável transição para uma nova era, alicerçada nos mesmos valores de sucesso e competência. As últimas épocas vieram assombrar a naturalidade desta rota, colocando os adeptos a questionar se será de todo benéfico prosseguir este caminho, já que o sucesso é miragem e a competência muito incerta.
Tudo isto porque houve uma clara inversão das prioridades: o sucesso desportivo não era só o objectivo do clube. Era a causa e a consequência de todo o trabalho da máquina. Não era só a estrutura que levava às vitórias, era o sucesso que alimentava a estrutura. Vitórias dão dinheiro, através de prémios e vendas, dão prestígio, dão adeptos satisfeitos, ambiente saudável, condições para a prolongação do êxito. Priorizar os ganhos pessoais não foi apenas um erro do ponto de vista da irresponsabilidade e do desprezo dos adeptos que os alimentam. Foi um plano mal pensado do ponto de vista pessoal. Não dá para continuar a sugar de uma vaca seca.
Enunciar os erros dos últimos anos seria redundante, porque estes não só são óbvios, como já foram inúmeras vezes repetidas por outros portistas frustrados. A escolha de um treinador inexperiente para liderar um longo e ambicioso projecto foi de uma atroz incompetência. Vinha com promessas de torres de vigilância, de aposta nos jovens e da adopção um tiki taka à portuguesa. O tiki taka de Lopetegui tinha idiossincrasias peculiares: era um tiki taka em que os centrais faziam passes longos, os jogadores sem bola não se movimentavam e a percentagem de posse de bola se sobrepunha a uma progressão sustentada no terreno. Estas características expunham desde logo uma evidência: ou Lopetegui não percebia as próprias ideias, ou as suas ideias eram péssimas. Confirmou-se que ambas eram verdade. As individualidades que constituíam o plantel da última época ajudaram a disfarçar ligeiramente os defeitos patentes. Quando uma equipa em crise e sem ideias de jogo tem de resolver as situações com Varelas, Osvaldos, Maxis, Ángels, Cissokhos, Suks e Chidozies, tudo fica demasiado exposto. E com essa exposição veio à tona a falta de planeamento nos bastidores, mas sobretudo da tal priorização de negócios ocultos e compadrio.
Nestas eleições, não foi (apenas) a popularidade de Pinto da Costa que foi a votos. O estatuto e respeito do presidente são inquestionáveis, de tal forma que foi por trás dessa respeitabilidade que muitas trafulhices foram sendo encobertas. A gratidão a Pinto da Costa é eterna e imutável, assim como permanecerá inalterada a reverência à sua liderança. O que foi a votos foi sobretudo a manutenção do status quo. E foram pesadas questões éticas e morais que se sobrepuseram, porventura, até às desportivas.
Pinto da Costa será sempre recordado como um dos melhores dirigentes da história do futebol mundial. Tem agora o seu derradeiro grande desafio: não deixar como última imagem um papel permissivo de fantoche mediador de negócios desportivamente ruinosos e de escudo protector de um grupo administrativo que se apropriou de uma estrutura virada para a vitória e a transformou num submundo de incompetência, jogos empresariais, lavagem de dinheiro e desculpas esfarrapadas. Se tudo se mantiver assim, não serão necessárias canetas para que Pinto da Costa saia pela inglória porta pequena, vítima de um nível de exigência e de uma fasquia que foi ele próprio a elevar.