segunda-feira, 3 de março de 2014

O Templo Suburbano


Com o furor que se instalou depois do deflagrar de armas químicas no conflito sírio, não entendo por que razão ainda não se produziu um chiqueiro comparável relativamente ao crime contra a humanidade que é a aerosfera das lojas modernas de roupa. Pelo menos na Síria estamos a falar de uma substância que causa uma morte quase instantânea, enquanto nas lojas de roupa estamos a lidar com gases tóxicos cujo objectivo parece ser o de infligir o máximo de sofrimento injustificado sem acabar com a vítima.

A morte é um fenómeno que ainda experienciei e que não tenho qualquer intenção em experienciar, mas julgo pelo menos ter a certeza de que este representa o fim de percepções sensoriais terrenas como o olfacto. Nas lojas de roupa dos centros comerciais não temos a hipótese de desfrutar desse alívio agridoce. As Zaras e as Mangos insistem em disseminar versões diferentes de um gás tóxico que pode ser descrito como um perfume de avó francesa com um toque de antraz. O ar é de tal forma espesso que este aproxima-se perigosamente do estado sólido. Não sei decifrar o motivo para este atentado contínuo. Eu quero comprar uma camisa nova, mas a impossibilidade de me manter dentro de uma loja durante mais que dois minutos seguidos dificulta a selecção, experimentação e pagamento de uma peça de roupa.

Infelizmente, este nem sequer é o pior atributo dos centros comerciais. Aos Domingos, estes templos pós-modernos atraem hordas suburbanas de pessoas que apreciam desmesuradamente o acto de vaguear sem rumo por corredores labirínticos de lojas. Durante a temporada fria, o aquecimento do recinto parece atraí-los, como répteis de sangue-frio a realizarem a termorregulação homeostática ao sol. Qualquer passeio por uma cidade portuguesa de pequena-média dimensão transmite o clima de uma geografia pós-apocalíptica. No entanto, o mundo não acabou. Simplesmente migrou temporariamente para os centros comerciais. É por essa razão que tendo a evitar estes espaços com a mesma aversão que me leva a evitar a costa da Somália e o deserto do Chade. Sartre já dizia que o inferno são os outros, mas ele nem sequer podia imaginar a danação misantrópica que o esperaria num centro comercial.

Não julgo ter alguma perspectiva nova sobre o fenómeno do consumismo, nem quero compor qualquer diatribe sobre os perigos da alienação individual causada pelo malvado sistema capitalista. Não é isto que me preocupa. É a incapacidade humana de simplesmente estar. É a mesma razão que leva alguém a preferir automaticamente a televisão a um livro. A razão pela qual se pensa que a verdadeira ameaça à democracia está nos mercados financeiros, ao invés da tendência assustadora da abstenção. É esse motivo que leva alguém a não querer estar informado. É o que origina a incapacidade de finalizar uma viagem de carro antes de responder a uma mensagem escrita. É a força motriz da propagação de redes de internet sem fio, com objectivo final de transformar o mundo num inferno conectado em banda larga.

Os centros comerciais vivem dessa deficiência moderna. Eles preenchem o vazio que surge das deambulações hiperactivas de um reduzido limiar de atenção. O chocante é que, além do simples acto de compra, nenhuma função, actividade ou prática significativa pode ser desempenhada nessas catedrais. Eu não tenho nenhuma recordação importante de algum momento passado num centro comercial. Apesar disso, é ali que, cada vez mais, congregamos e comungamos à procura de nada em particular. Toda a estrutura é desenhada de forma a alimentar essa procura fútil. Os estímulos são sobrecarregados. A ideia é atenuar ao máximo os efeitos da imaginação. O ar é quente e perfumado. O sistema de som transmite constantemente música insuportável. As luzes são intensas e variadas. As cascatas cospem água. Os anúncios no altifalante fazem promessas babilónicas. Todos parecem confortáveis. A multidão percorre o espaço alegremente como cavalos mecânicos a girar num carrossel abandonado.

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