domingo, 23 de março de 2014

Acertar à primeira


“Se em tudo o mais forem idênticas as várias explicações de um fenómeno, a mais simples é a melhor" - Guilherme de Ockham

Ele tinha entrado na esquadra às duas e meia da manhã, chegado junto ao balcão da recepção e exigiu ser preso. O agente de serviço reconheceu o cheiro a álcool e ignorou as palavras, esperando poder voltar para as palavras cruzadas que o mantinham entretido durante o turno mortificante da madrugada:

- “Prenda-me.”

O homem tinha pelo menos cinquenta anos. Era uma daquelas pessoas abençoadas com a dádiva inexplicável de um envelhecimento generoso. A voz fraturada denunciava a sua verdadeira idade. O seu cabelo era castanho e estava penteado com brilhantina. A barba era grisalha e bem aparada. Ele vestia um fato preto completo feito à medida. Não tinha entornado uma única gota de álcool no casaco. A roupa parecia ter sido engomada naquele mesmo dia.

- “Prenda-me, caralho.”

Ele cheirava a água-de-colónia. A única razão que permitiu o agente identificar o cheiro a álcool foi o homem ter-se debruçado sobre o balcão. Ele não se tinha dirigido para o balcão a cambalear. As suas mãos não faziam movimentos desajeitados. Ele tinha-as pousado no balcão, completamente abertas, com as palmas na superfície. O seu piscar de olhos mantinha-se ágil e pouco frequente. A sua postura era ergonómica. As costas não se vergavam e o pescoço mantinha-se hirto. Ele não alternava o peso do corpo entre as duas pernas, como uma criança amuada faria numa situação de espera.

- “O senhor está bem?” – perguntou o agente.

O agente sentiu-se estúpido a fazer aquela pergunta, mas não sabia o que haveria de dizer. Ele estava no segundo ano de serviço. Não era a primeira vez que o agente tinha-se deparado com um indivíduo alcoolizado a realizar exigências absurdas, mas nunca tinha ouvido aquela exigência em particular. O homem não respondeu à pergunta, mas a sua inexpressividade impávida alterou-se para um sorriso lamentoso. Ele levantou os braços e esticou-os, com a parte interior exposta, para facilitar a colocação das algemas.

- “Prenda-me, se faz favor.”

O agente ficou confuso. Era como se o homem pensasse que o problema fosse a falta de boa educação no seu pedido.

- “Desculpe, meu senhor, mas eu não tenho legitimidade para o prender. O senhor não cometeu nenhum crime.”

O homem debruçou-se sobre o balcão e esbofeteou o agente com a mão direita. Ele colocou os braços atrás das costas e sentou-se no chão à espera da concretização do seu pedido. O agente ainda se manteve sentado durante alguns momentos. A estalada não tinha sido forte, mas ele não tinha qualquer alternativa. Levantou-se, gritou pelos dois colegas que estavam na sala ao lado, e algemou o homem. Apenas um dos agentes saiu da sala.

- “O que se passa?”
- “Este homem acabou de me agredir.”
- “O quê?”
- “Este gajo bateu-me, caralho. Ele entrou aqui e pediu para ser preso. Eu disse-lhe que não podia prendê-lo e ele bateu-me. O que fazemos?”
- “O que é que achas? Temos de prendê-lo. Não há outra alternativa.”

Os agentes processaram a papelada, comunicaram o evento ao tenente e levaram o homem para a cela colectiva da esquadra, onde já estavam um homem que tinha tentado roubar uma câmara a uma turista e um arrumador de carros que tinha arranhado um veículo.

- “Queres explicar-me o que se passou realmente?”
- “Não sei, pá, não consigo entender isto. Eu juro que foi mesmo como eu disse. O velho entrou aqui, sem qualquer agressividade, e exigiu ser preso.”
- “Ele está podre de bêbado.”
- “Eu sei, nota-se, mas o homem aguenta bem o álcool. Ele não arrastava palavras. Não parecia confuso. Nada.”
- “O que é que pode levar alguém a querer ser preso?”
- “Talvez o gajo matou alguém, arrependeu-se e veio aqui poupar-nos trabalho. Já viste se há alguma notificação de homicídio nos canais de comunicação?”
- “Não há nada. Já falei com as outras esquadras. A noite está calmíssima.”
- “Talvez isto é alguma espécie de activismo político. Talvez o gajo esteja a tentar passar alguma mensagem sobre a crise actual. Se calhar o gajo é famoso e chamou as estações de televisão antes vir aqui.”
- “Alguma coisa tem que ser. É melhor a gente telefonar ao Major. Este gajo ainda acaba por ser alguém importante e a gente é que fica aqui a segurar a granada. Ninguém aparece aqui e pede para ser preso. Não disseste que ele estava a usar um fato caro?”
- “Caríssimo! Aquilo era seda ou uma qualquer coisa assim. Tem mesmo que ser alguém importante. Ouve o que eu te digo. Isto vai dar merda. Mas é melhor não acordar o major. Ele entra às sete e meia. Quando ele chegar nós contamos tudo.”

Passaram quatro horas. Já tinha amanhecido, mas ainda faltava uma hora para o Major chegar. Os dois agentes continuavam a especular sobre os motivos misteriosos do homem.

- “Talvez morreu alguém. O gajo estava com roupa de funeral.”
- “É possível. Aposto que morreu-lhe a esposa. Agora ele está arrependido por tê-la tratado mal e veio aqui para se crucificar.”
- “Tem que haver alguma razão.”

O terceiro agente de serviço apareceu na sala da recepção. Ele tinha acabado de voltar das celas.

- “Quem é o homem de fato na cela colectiva?”
- “É um homem que chegou aqui de madrugada, pediu para ser preso e, depois de eu recusar, deu-me uma estalada.” – disse o primeiro agente.
- “Agora estamos aqui a tentar perceber as razões do homem” – disse o segundo agente.
- “Nós achamos que o gajo é alguém importante e que isto é uma alguma espécie de acto político” – disse o primeiro agente.
- “Ou ele matou alguém e arrependeu-se.” – disse o segundo agente.
- "Ou ele está farto de viver." - disse o primeiro agente.
- "Ou ele está desempregado há tanto tempo que não aguenta mais" - disse o segundo agente
- "Ou foi à falência e agora está arruinado" - disse o primeiro agente
- "Ou a mulher descobriu que ele tinha uma amante" - disse o segundo agente

O terceiro agente coçou a cabeça e disse:

- “Eu não sei, pá. Quando eu passei nas celas, ele estava a dormir, mas acabou por acordar com o barulho das chaves. Chamou-me e disse que não sabia o que estava a fazer ali. Tinha vomitado na cela toda. Já vos ocorreu que o gajo devia estar podre de bêbado? Vocês nunca fizeram coisas estúpidas enquanto estavam assim?"

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