Desde cedo me apercebi de que
estava perante uma oportunidade única: assistia ao desenvolvimento meteórico de
um jogador especial durante os anos menos responsáveis da minha vida. Mais,
unia-nos o inquebrantável vínculo de possuirmos a mesma nacionalidade. Não
havia volta a dar: teria, inevitavelmente, de acompanhar a carreira de
Cristiano Ronaldo da forma mais atenta que conseguisse. Como levo as resoluções
que tomo muito a sério, isso significou ver practicamente todos os seus jogos
no United e no Real. Justiça lhe seja feita, Ronaldo fez da minha decisão altamente
compensatória, dado que superou todos os pergaminhos que pensava que fosse
capaz de inscrever na história do futebol. E está a torná-la insustentável,
dado que parece determinado a prolongar o auge da sua carreira para idades sem
precedentes. Mas sobre esse garoto
conversaremos noutra altura.
O que vos queria fazer perceber é
que isso me proporcionou incontáveis minutos a observar quem o acompanhava e
acompanha dentro de campo. Dada a dimensão dos clubes, sempre coabitou com craques
por quem seria impossível ficar indiferente. Retendo-me nos médios, admirei a
classe suada de Xabi Alonso; aprendi com a tranquilidade cerebral de Carrick; impressionava-me
com o serviço cirúrgico de Scholes, tal como sucede agora com o do sniper
Kroos; deleito-me com a influência gigantesca que o pequeno feiticeiro Modric
consegue ter; e fascinava-me com a visão de jogo omnisciente do impassível
Ozil.
01/07/2013: Isco era contratado pelo Real ao Málaga [30M]
02/09/2013: Ozil era contratado pelo Arsenal ao Real [47M]
No verão de 2013, o Real tomava
uma decisão de venda do mais incompreensível que testemunhei. Ozil era um dos
melhores médios do mundo, talvez o melhor número 10 na altura. Olhos de mocho,
cabeça sempre levantada e facilidade em fazer o mais difícil, o último passe.
Era simples de compreender a relação privilegiada que mantinha dentro de campo
com Ronaldo, retratada em vários golos contra o Barcelona: a Ozil bastava que
alguém tivesse a inteligência de procurar a melhor solução sem bola; a Ronaldo
bastava que estivessem sempre atento às suas desmarcações. Tinham sido feitos
um para o outro. Ozil era um dos melhores assistentes da Europa e dava munições
ao Ronaldo como os EUA a Israel. Nunca uma decisão com a qual não poderia
discordar mais me viria a deixar tão grato. Para calçar as suas botas, tinha chegado Francisco Román Alarcón Suárez ao Real Madrid.
Isco tinha tudo para venerá-lo
desde o primeiro momento. Sempre tendo tido uma inclinação natural por médios,
ele era um médio criativo que não enganava. Exibia um toque de bola prodigioso.
No verão em que foi transferido, tinha saído de Israel como campeão europeu sub-21,
com exibições ao nível do metal da medalha. Já tinha sido distinguido como
melhor jogador jovem europeu. Tinha dado por ele numa campanha histórica do
Málaga na Liga dos Campeões, onde estiveram à porta das meias-finais. Um Málaga
com Antunes e Duda a titulares, que só sucumbiu por 3-2 em Dortmund, aos pés do
apaixonante Dortmund de Klopp, sofrendo aos 91’ e aos 93’ os últimos dois
golos. Percebam o dramatismo desta reviravolta fora de horas: o empate era
suficiente ao Málaga para seguir em frente. Isco esteve nos dois golos no
Signal Iduna Park – já agora, foi o Eliseu que marcou o segundo. Nos oitavos,
tinha já eliminado o Porto com um golaço decisivo na segunda mão. Ou seja, tudo coisas
que aprecio consideravelmente. No entanto, a devoção que o seu futebol me inspira
não foi imediata, apesar de sempre lhe ter reconhecido um potencial enorme. Nem
tão pouco tenho claro o momento em que essa transição se deu. Como em todas as
grandes paixões, as memórias anteriores parecem turvas e pertencentes a um
passado longínquo.
Durante muito tempo, Isco foi a
maior vítima do seu talento e da sua originalidade. Capaz de ser exuberante
como poucos com bola, dava a sensação de que poderia jogar em qualquer posição
do meio-campo para a frente. Capaz de ser exuberante como poucos com bola, era
presa fácil para comentadores que gostam de ancorar a sua posição nas escolhas
irrefutáveis dos treinadores. Isco era suplente e isso significava que algo
estava errado. Dizia-se que tocava demasiado na bola. Que mastigava em demasia
o jogo de um Real em que a vertigem da BBC era lei. Que era espetacular mas
pouco eficaz. Ouvia tudo isto com vontade crescente de que acabasse no Barcelona,
pela injustiça do seu papel periférico.
Rezam as lendas de que Isco era o
típico míudo que levava a bola debaixo do braço e ficava o dia inteiro a jogar
com os amigos na rua. Não o imaginaria de outra forma e na verdade é a única
forma de justificar o seu infinito leque de recursos. Desenvolveu uma relação
umbilical com a redondinha e aproveitou o tempo que dispunha para criar um
reportório técnico que quase todos os outros jogadores só podem invejar.
Tal como Thiago, outro médio que tem o meu coração nos seus pés, decerto assistia maravilhado todos os fins-de-semana ao meio-campo do Barcelona, durante os anos cruciais da sua maturação futebolística. Preparava-se para incursar no futebol sénior a querer ser como o Xavi, o arquitecto que fazia implodir qualquer sistema defensivo edificado; como o Iniesta, a sustentável leveza de um jogador que tornava a vida dos oponentes insuportável; e a querer combinar com Busquets, o sonho em forma de trinco de qualquer médio que jogue à sua frente. Como qualquer um de nós sabe, não é fácil ter preferência entre Xavi e Iniesta. Tal como não dá para decidir entre pai e mãe. Teve o engenho de apreender o melhor dos dois, somando-lhe a confiança e ousadia de quem sabe já que a Espanha é capaz de vencer as maiores competições internacionais, e estando convicto da superioridade patente na forma como o fez, através da ditadura do passe e da inteligência na tomada de decisão.
Tal como Thiago, outro médio que tem o meu coração nos seus pés, decerto assistia maravilhado todos os fins-de-semana ao meio-campo do Barcelona, durante os anos cruciais da sua maturação futebolística. Preparava-se para incursar no futebol sénior a querer ser como o Xavi, o arquitecto que fazia implodir qualquer sistema defensivo edificado; como o Iniesta, a sustentável leveza de um jogador que tornava a vida dos oponentes insuportável; e a querer combinar com Busquets, o sonho em forma de trinco de qualquer médio que jogue à sua frente. Como qualquer um de nós sabe, não é fácil ter preferência entre Xavi e Iniesta. Tal como não dá para decidir entre pai e mãe. Teve o engenho de apreender o melhor dos dois, somando-lhe a confiança e ousadia de quem sabe já que a Espanha é capaz de vencer as maiores competições internacionais, e estando convicto da superioridade patente na forma como o fez, através da ditadura do passe e da inteligência na tomada de decisão.
Desde que foi contratado, na
época 13/14, até à época passada, 16/17, a história repetia-se recorrentemente.
Era uma espécie de suplente de luxo, o primeiro a entrar. O primeiro a passar
para a titularidade quando a rotação de plantel se impunha. Na primeira época,
a entrada dele na final da Liga dos Campeões de Lisboa foi importante para
saber como lidar com um Atlético recuado e em vantagem, estando também nos dois
golos com que o Real, sem Ronaldo, venceu a Copa do Rei, na final contra o
Barcelona, sentenciada com a mítica galopada de Bale pela linha lateral perante
a incrédula supervisão de Bartra. Sempre foi conseguindo ser importante, mas
nunca lhe era concedida a regularidade que merecia. A BBC era o projecto do
Real. Além de que, no meio-campo, Modric e Kroos tornaram-se intocáveis com
todo o mérito.
Os adeptos do Real brindavam-no
com o carinho de incontáveis ovações que pediam mais minutos. A Isco restava
apenas o conforto de olhar para o resto do banco e ver que com ele estavam sentados
outros craques, titulares em quase todas as equipas do mundo, como James,
Asensio, Kovacic e Morata. Ironicamente, foi por causa disso que tudo mudou. Na
época de 16/17, o plantel do Real era surreal, talvez como nunca tenha
acontecido na história do futebol. Não sei se Zidane dormiria confortável com a
multiplicidade ridícula das opções que tinha à disposição ou se teria
insónias pela dificuldade das opções que teria de tomar. Com dois jogadores de
qualidade para cada posição, dava-se ao luxo de apresentar uma equipa A e uma
equipa B, consoante a dificuldade que atribuía à equipa adversária.
O que é que passou a acontecer?
Macumba. Isco passava a ser titular de forma regular e não passava a ser
suplente independentemente do que apresentasse. Jogava com amigos com quem
cresceu dentro do mundo do futebol, Asensio e Morata. Combinava com outro médio
criativo de excelência, James. Tinha as costas protegidas por Kovacic, capaz de
desempenhar qualquer função no meio-campo. Não tinha de subordinar o seu jogo aos
caprichos da BBC. O que se via quando a equipa B do Real jogava era difícil de
acreditar, porque não foram raras as ocasiões em que golearam, bem como pareciam
colectivamente funcionar melhor do que os titulares. Isco era o epicentro de
tudo, a medida de todas as coisas. Antes valia a pena perder 90 minutos para
vê-lo durante breves segundos pincelar uma cor nunca antes vista. Agora, a nova
paleta era colorida e estava à vista de qualquer daltónico.
Confiante como nunca, divertia-se
com os colegas e banalizava quem quer que lhe aparecesse pela frente.
Organizava, criava, marcava. Pisava todos os centímetros do meio-campo
ofensivo. Graças às possibilidades a que pode recorrer quando tem a bola
controlada, era quase impossível desarmá-lo. Nenhum jogo representa melhor o
que estou a tentar transmitir do que quando o Real Madrid jogou para a La Liga,
contra o Gijon, a 15/04/17. A jornada anterior à recepção ao Barcelona, onde
Messi aos 92’ paralisou o Bernabéu e fez depois de estendal humano. Ainda que
aí já gozasse de outro estatuto, a equipa que entrou em campo nesse dia foi
dentro da rotação descrita, com Isco no 11. O que se passou fica directamente
relacionado com o desfecho da competição: golo absurdo a dar o 1-1; uma jogada
individual apenas ao alcance de prodígios, que por pouco não finalizou; e golo
da vitória à entrada da área aos 90’, a assumir a responsabilidade do momento,
num jogo em que o Real simplesmente não se podia dar ao luxo de não ganhar, se
queria ser campeão.
Já não havia como o ignorar a favor das hierarquias instituídas. Bale
confrontava-se com os problemas físicos que marcaram as suas últimas duas
épocas de branco vestido. Mas desta vez Isco não passou a jogar em vez de Bale:
o Real mudou de sistema para o acomodar. Modric e Kroos são practicamente
perfeitos, controlam magistralmente o meio-campo, mas carecem de criatividade
no último terço. Ronaldo e Bale inspiram-se com metros para correr, mas o ar
torna-se mais rarefeito em espaços curtos. Isco somava valências que faltavam
ao sistema colectivo, que o tornavam mais completo e capaz de contornar
qualquer estrutura defensiva e forma de defender. A largura da equipa passou a
estar quase totalmente dedicada a Marcelo, a alegria de jogar, e a Carvajal, a
fúria. Ronaldo e Benzema aproximaram-se em campo e estreitaram ainda mais a sua
relação natural. Kroos e Modric continuaram a garantir que a bola era propriedade
madrilena. Isco, no seu habitat natural, a vagabundo, com a permissão de
procurar qualquer lugar do campo, o seu jardim, estava finalmente onde queria.
Desde o início de 2017 que Isco
faz parte da elite do futebol, como o seu talento sempre prometera. Foi
decisivo na conquista do campeonato do ano passado, marcando ou assistindo
recorrentemente em momentos decisivos. A última jornada foi simbólica: bastava
apenas aos blancos empatar, mas aos 2’ o marcador já tinha mudado e o destino
do jogo estava decidido. Golo de Ronaldo, assistência de Isco. A lógica a
impor-se implacável e imediatamente. O jogo era contra o Málaga, no La
Rosaleda. Os adeptos que viram em primeira mão o menino mágico aparecer,
assistiam agora com o resto do mundo a inevitável consequência do seu génio bem
enquadrado.
O Real Madrid vencia o campeonato
pela primeira vez desde 2011/12, a segunda temporada de Mourinho na capital
espanhola. Na Liga dos Campeões, disputou pela primeira vez a final enquanto
titular, e fê-lo como se o tivesse feito a vida toda, ajudando a equipa a
vencer a terceira orelhuda nas quatro épocas com a sua presença no plantel.
Para os duros que tiveram a
resiliência de espírito suficiente para chegar até aqui, prometo que as minhas
palavras não vos tomam muito mais tempo. Apenas quero brevemente mencionar dois
recitais de futebol-magia que ele já proporcionou esta época. O primeiro, logo
no segundo grande jogo da época, já após a conquista da Supertaça Europeia,
frente ao United de Mourinho, onde jogou, fez jogar e marcou. O Real Madrid
deslocava-se a Camp Nou para disputar a primeira mão da Supertaça Espanhola e
superiorizou-se categoricamente, como nunca havia acontecido nesta década.
Ninguém me tira da cabeça a ideia de que o Isco foi determinante para mudar a
relação de força entre as duas equipas, da única forma possível: metendo os
adeptos blaugrana a bater com a cabeça nas paredes por não ter sido o seu clube
a ter a visão para o contratar.
O segundo, contra a Itália, com
quem a Espanha tinha saído de cena no Éder 2016, para a fase de grupos da
qualificação do Mundial. Isco humilhou sem piedade Verratti - passando por ele
por cima, por baixo e pelos lados - e monopolizou o futebol da La Roja,
coroando o show com os dois primeiros golos do 3-0. Não me espantaria se,
somente este jogo, tivesse esvaziado qualquer ambição que Verratti teria em se transferir para o Barcelona. Ambos os jogos estarão linkados no final, na
qualidade de bibliografia obrigatória.
A 15 de Abril, os perversos
deuses do futebol agraciaram-me com mais uma celebração da nação portista em
pleno Estádio da Luz. O Real jogava pouco depois e apenas acordei para esse
facto quando recebi a notificação do primeiro golo. Prontamente, avancei de que
o golo teria sido do Ronaldo, ele que sempre teve uma fértil contribuição em me
dar alegrias futebolísticas, tão necessárias naquela altura. Imediatamente me
informaram que não tinha sido convocado.
Pelo que pronta e instintivamente
retorqui: foi o Isco! Foi o Isco! Tinha sido. Livre à entrada da área executado
sem mácula. Fiquei a distrair-me com o seu talento, que voltou a ser
instrumental no 2-0, numa assistência com a parte exterior do pé a desprezar a
facilidade do momento. Como todos os grandes amores o fazem, teve o condão de
aligeirar um momento negativo.
Obrigado, MagIsco. Que nunca
ninguém te tire a bola.
[cenas que não sabia bem como
enquadrar; encarem-no como uma espécie de b-side
Medida do talento do Isco: cueca
a Iniesta e a Messi na mesma jogada. Eu procuro pormenores destes como Newton
procurava significados ocultos na Bíblia.
Ver o Isco jogar dá-me vontade de
lhe chamar patanisca, reagrupar o Trio Mocotó, e cantar-lhe o “Ôba, lá vem ela”
do Jorge Ben.
Com o seu toque pródigo, opera
uma transformação genital instantânea que faz os homens conceber como é que é
ficar molhado com um toque de bola.
O que Isco faz com Marcelo quando
combinam está entre o bullying e o bowling, uma vez que fazem constantemente
pinos cair.]
Bibliografia obrigatória:
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