quinta-feira, 27 de março de 2014

As Faces de Cristo


“The greatest hazard of all, losing one’s self, can occur very quietly in the world, as if it were nothing at all. No other loss can occur so quietly; any other loss - an arm, a leg, five dollars, a wife, etc. - is sure to be noticed.” - Soren Kierkegaard

Durante a minha jornada pela Europa, eu visitei diversos museus importantes - o National Gallery em Londres, a Galeria Uffizi em Florença, o Museu do Vaticano, o Louvre em Paris, Rijksmuseum em Amesterdão. Nessa peregrinação maravilhosa eu tive diversas epifanias ligeiras sobre a natureza da existência, observei in loco os hábitos alimentares das diversas raças europeias e cheguei a uma conclusão muito importante: eu queria fazer aquilo para sempre.

A dádiva de viajar proporciona uma rara sensação de esperança eufórica que é impossível de ser recriada no quotidiano sedentário da humanidade neolítica. Existe uma liberdade indescritível em poder escolher rumos infinitos por este continente glorioso. A distância da tecnologia traz uma claridade mental que apenas pode ser descrita como um estado primitivo de paz nirvânica. A ansiedade ligeira que vive alojada no núcleo incandescente dos nossos cérebros - que eu nem sequer sabia que existia - desaparece, e traduz-se numa concretização inesperada da capacidade de viver no momento.

Uma multitude de atributos – vaidade, orgulho, ambição, raiva, inveja – desaparecem da balança mental, e o seu peso deixa de se fazer sentir na racionalização mental e na ponderação accional. O poder da viagem é tão grande que as minhas descrições desse fenómeno transformam-me num guru budista irritante que vê no asceticismo uma quimioterapia espiritual e que secretamente deseja que toda a humanidade fizesse cessar o sustento doentio do produto interno bruto. A flacidez das almofadas deixa de importar, a inutilidade do colchão deixa de irritar, a alimentação ganha uma dinâmica utilitária e deixamos de ser tão exigentes com a higiene de uma casa de banho.

Mas um aspecto recorrente que me pareceu peculiarmente interessante foi outro. Os museus expunham inúmeros quadros onde a figura proeminente era Jesus Cristo: o recém-nascido abençoado, o bebé nos braços da mãe, o adulto iluminado, o mártir crucificado, o homem morto, o ídolo ressuscitado. A tipologia que mais me impressionava era a representação de Jesus como um homem, virado para a frente, a olhar directamente na nossa direcção.

Em muitos quadros, o olhar era passivo e espectral, como se o homem soubesse que a sua permanência neste mundo não iria durar muito mais tempo. Em outros, ele parecia desgastado e severo, como um mineiro a descer no elevador da mina, que sabe que nada de bom o espera nas profundezas. Em casos raros, ele mostrava expressões faciais completamente ausentes da escala emocional humana, em que as suas características levavam-nos a crer que Jesus Cristo sabia de algo que nós nunca seríamos capazes de compreender. Mas o que todos aqueles quadros tinham em comum é que nenhum deles cedia à tentação de retratar Jesus Cristo como um idiota feliz retirado directamente da propaganda norte-coreana.

No entanto, nenhum daqueles quadros representa a verdade. Nenhum daqueles pintores, por mais talentosos que fossem, foi uma alma iluminada com acesso a um canal directo para o divino. As particularidades das obras, neste caso a face de Jesus Cristo, contam-nos mais sobre as intenções esperançosas do artista, do que sobre as intenções verdadeiras do filho de deus. No momento da criação aqueles olhos olhavam directamente para o pintor, que se via forçado a ver na tela branca um espelho indirecto. O resultado disso é que não se vislumbra uma réstia de compaixão naqueles olhos. Mas também não se vislumbra qualquer sinal de julgamento. O instinto do julgamento é uma ferramenta automática das tendências mais desprezíveis da consciência humana. É uma das bases primordiais dos nossos sistemas socioculturais. A negação desse instinto é uma das mensagens da estória cristã e um objectivo valoroso de todo um movimento artístico.

As figuras daqueles quadros não fazem brotar sentimentos de culpa, antes intensificam aquilo que o contemplador já sentia antes do confronto. E, infelizmente, na maior parte das ocasiões, essa intensificação incide sobre sentimentos negativos. Mas nesses quadros, Jesus não demonstrava o desapontamento paternal resultante de um julgamento. Era pior. Era um desapontamento que ele parecia tentar não deixar transparecer. Era a desilusão tão humana que ele tinha em si mesmo. Era a desilusão dos pintores, a nossa desilusão colectiva na humanidade, a nossa desilusão individual em nós próprios. Isso é algo que, julgo eu, é recorrente no ser humano. Nós somos os nossos piores juízes. Nós gostamos de nos sentirmos mal sobre nós próprios.

Isso foi, em parte, o que permitiu a rápida disseminação da Cristandade pelo mundo. A interpretação da religião cristã tende a confirmar os nossos piores medos. O medo de que somos todos potenciais demónios a vaguear na terra, e que a bondade está restrita aos mártires, anjos e santos. Essa tendência leva-nos a projectar deuses perfeitos que vivem em reinos inacessíveis, e faz-nos esquecer que o desapego ao julgamento, especialmente sobre nós próprios, é o ideal mais nobre a que a alma humana pode aspirar. No Livro de Génesis, quando Deus afirma que criou o Homem à sua imagem, essa não é a expressão omnipotente da sua bondade infinita na Criação. É apenas o Homem a ver-se, desapontado, ao espelho, e a decidir, desesperado, criar uma mentira que consiga fazê-lo esquecer, mesmo que momentaneamente, que a vida é injusta, a morte é certa e o julgamento, tanto humano como divino, é uma tragédia inevitável.

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