segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Depressões

Não quero entrar na celeuma que envolve as eventuais pressões sobre o Tribunal Constitucional, mas devo deixar um ponto que considero importante: a Constituição não nos foi dada por Cristo numa bandeja. Está longe da perfeição divina; é atemporal, radical e ambígua. O órgão que tem como função suprema defender este documento é intocável. A Constituição não o é. E mais do que não ser intocável, pode e deve ser discutida. Sendo as normas que nos regem enquanto comunidade, deve ser o assunto mais aberto à opinião pública sem que essa opinião, quando contrária, seja encarada como um atentado à democracia. Numa perspectiva contratualista, a Constituição deve, de facto, estabelecer os limites da acção estatal. Mas isso não parece ser considerado para os dois lados. A Constituição restringe o poder executivo por conceitos abstractos como igualdade, que geram discussões de sardinha de rabo na boca, e por políticas concretas, como a "gratuitidade" de certos serviços públicos. A constituição deve arbitrar a política, não fazê-la, e infelizmente tem funcionado como primeiro recurso da oposição que detém, essa sim, o poder legislativo.

Outra coisa que eu não entendo nestas acusações de pressões sobre o Tribunal Constitucional: se o órgão supremo da Justiça não consegue executá-la imparcialmente, e imune à opinião dos agentes políticos, o problema não está nas pressões. A separação de poderes, que tantas vezes é invocada nesta questão, não fica afectada com as considerações públicas dos políticos, acima de tudo porque essa posição das forças políticas relativamente a uma eventual decisão do TC é desde logo perceptível pelos espaços próprios de discussão, como o Parlamento. Nenhum político assumiu até agora uma posição nos media que não fosse por todos já conhecida. A própria declaração de Durão Barroso, pouco sagaz e compreensivelmente polémica sobretudo vindo de um compatriota, também não pode chocar quando considerarmos que é o líder de uma organização cujas directrizes foram já barradas pelo TC. Se assumir uma posição é pressionar, os pedidos de revisão são, desde logo, pressões declaradas. Já para não entrar por aqui, aqui, ou aqui.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Jotinhas

Se há poder verdadeiramente instalado em Portugal, esse poder é o partidário. Vivemos num regime constitucionalmente partidocrático e cujos resultados deveriam ser bem ponderados. A culpa da separação cada vez mais clara entre a classe política e a sociedade civil não se baseia apenas no cepticismo crescente da segunda em relação à primeira. De resto, esse cepticismo tem motivado até, em alguns sectores, alguma iniciativa política individual ou, se colectiva, apartidária. Mas os limites são deveras circunscritos. A melhor forma de fazer alguma coisa pelo bem público é a associação a um partido, isto considerando a centralização do poder em Portugal, e por isso desconsiderando a administração local como poder verdadeiramente relevante. Ainda que como independente, qualquer um que intente a ter voz parlamentar tem de escolher um alinhamento. Conscientes que estão os agentes políticos desta necessidade, criou-se nos partidos uma ascensão hierárquica quase maçónica.

Na sequência deste processo de promoção partidária, surgiram os jotinhas. Esta precoce espécie de diamantes governativos por lapidar ingressa nos partidos quando ainda é nova demais para cursos superiores ou para ter significativa experiência profissional. Nunca foi sua ideia adquiri-los: saberiam que o futuro era risonho em cargos públicos ou instituições municipais. Viveram sempre alimentados pela autêntica máquina de saquear os cidadãos em que se tornou o Estado. São dependentes desse saque e, como tal, serão sempre um obstáculo à reforma do mesmo, entretidos que estão a sugar esse delicioso seio.

Passos Coelho e Seguro são exemplos acabados dessa geração jotinha, que domina os partidos e consequentemente a política. Chegou a vez deles, que fizeram carreira sustentados pelos cidadãos, devolverem à comunidade as capacidades políticas adquiridas entrementes. O resultado, esse, é conhecido. Um primeiro-ministro com tanta sobriedade quanto covardia e incompetência; e o um líder da oposição que, de forma a não gastar muita tinta na sua óbvia depreciação, classificarei de insípido e perigoso. Com a primeira geração de políticos partidocráticos, Portugal enfrentou a bancarrota três vezes em menos de 40 anos. Com esta segunda geração, nunca sairá da bancarrota.

É este o fenómeno que temos perante nós: um processo em que o Estado utiliza o pretexto da boa intenção dissimuladamente socialista para ir aumentando e ir-se auto-alimentando, criando esta bola de neve burocrática que vai consumindo toda a economia. O problema é que o povo alinha nisto. Dizer mal do inevitavelmente corrupto poder público e dizer mal das gananciosas privatizações é uma escandalosa contradição, e os seus apregoadores têm de ser chamados à razão.

Esta ditadura de partidos e jotinhas tem uma consequência gravíssima última: permite aos partidos impor ao País os seus próprios deputados, contra a vontade dos cidadãos votantes. A democracia representativa será sempre corrompida por uma pornográfica limitação de escolha, que leva o problema principal-agente a um nível ainda mais preocupante: um nível em que as escolhas já estão feitas por nós há muito tempo, e em que o processo democrático se limita a criar a ilusão de que nós é que temos culpa, por termos levado os políticos mais incompetentes aos patamares que estes ocupam, num ininterrupto ciclo de conformismo.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Chico Fininho

Tenho evitado escrever sobre o papa Chico desde a sua ascensão, por não querer cair na tentação, sendo eu crítico da longa data da Santa Sé, de prender quem tem cão e prender quem não o tem. Afianço-vos agora que é com algum cepticismo que vejo o papa Chico tornar-se no Obama do mundo religioso.

A associação do Sumo Pontífice ao presidente americano é óbvia já que são, em termos de popularidade, duas rockstars. Uma já em declínio, que nunca mais conseguiu produzir um álbum à altura daquele que compreendeu o período de campanha das eleições de 2008; o outro cada vez conquistando mais fãs, movendo mais groupies, granjeando os mais descrentes corações.

Tudo começou logo após a sua eleição. Decidiu permanecer na Casa de Santa Marta em vez de se mudar para a habitual residência do papa. Mais: viajou de autocarro com os restantes cardeais, em vez de recorrer ao carismático papamóvel. Que humildade, que simplicidade profunda. Entre tantos outros notáveis actos de boa-fé, afagou agora um homem desfigurado que a ele se dirigiu. Um santo, apregoa-se, um santo tal e qual o seu homónimo.

Recentemente, o Papa Chico iniciou um conjunto de inquéritos a nível mundial para averiguar o que pensam os seus seguidores acerca de questões fracturantes que, historicamente, colocaram a Igreja num dos extremos do eixo. Essas questões incluem a homossexualidade, o divórcio e a contracepção, três conceitos que, directamente de palavras bíblicas ou por interpretação institucional e pessoal, têm sido condenados pelos fiéis. Esta medida foi acolhida como um acto de coragem e tolerância sem precedentes na história do Vaticano. Não questiono as boas intenções do papa Chico por trás desta ideia, o senhor parece ser de facto um tipo de genuína boa índole. O que ainda não percebi é se ele está ciente da contradição em que se está a meter.

A crença num certo movimento religioso, e portanto nos seus princípios, está para além das opiniões ponderadas e pessoais dos elementos da seita. A crença é, na verdade, a antítese dessa ponderação racional. Questionar os dogmas católicos, enquanto principal representante dos mesmos, põe em perigo a sua credibilidade perante os humanos e, já agora, perante o Pai que já proferiu a sua opinião sobre os assuntos em questão com o intuito, julgo eu, de esta ser respeitada.

Partindo da premissa que os católicos acreditam que as regras bíblicas provêm de poder divino e devem ser linearmente respeitadas, questioná-las é, na prática, pôr em casa a sua deidade. O que é um sinal de saudável iluminismo; mas representa, para a significativa população católica, uma grave contradição. É acreditar em Deus, seguir a sua palavra mas, quando esta parece pouco ponderada e tolerante às luzes do novo século, fazer uma reunião de grupo para decidir se aquilo que Deus ensinou é mesmo para cumprir. Um acto que, para quem acredita nos poderes omnipresentes e castigadores de acção divina, é de um desassombro louvável.

A não ser que, e esta é a hipótese mais provável, o papa Chico saiba, num obscuro resquício da sua consciência, da farsa de que é líder. Que os humanos, mais do que aquele livro que ele jurou seguir e proteger, devem ser aqueles que decidem o seu destino, as suas normas, os seus direitos e deveres, as suas circunstâncias.

Que a palavra de Deus nem sempre (ou nunca) é seguida da forma fiel que o seu carácter divino exigiria já é consabido. Que o principal representante da palavra de Deus seja o primeiro a promover um processo que a questiona pela raiz é a prova final de que, até dentro da Igreja, os dogmas podem ser ignorados quando estão em causa interesses térreos mais importantes. Entre os quais está, naturalmente, a popularidade do Chico.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

A culpa é do Baco

Antipatizo, por natureza, com qualquer tentativa de desculpabilização baseada no álcool consumido. Não porque o álcool não possa, de forma directa e inequívoca, levar a más decisões. Todos teremos, mais tarde ou mais cedo, o insuportável sentimento de vergonha na manhã seguinte a uma piela mais desacanhada. Porém, essa justificação tornou-se tal epidemia que, ao mínimo sinal de alegria, as pessoas começam a pensar fazer tudo aquilo que por vergonha social não se atreveram antes a fazer. À desinibição junta-se a certeza de que qualquer acto irreflectido, que em condições normais pudesse ser sujeito a inquisição moral pessoal ou alheia, é justificado como consequência do copo. A culpa nunca é minha, é do Dionísio. Muitas vezes esta justificativa aparece acompanhada de uma ainda mais incomodativa: a da memória. Mais uma vez, reforço: o álcool tem inegáveis efeitos na memória de curto prazo. Esse efeito, porém, só é suficientemente voraz em ebriedades tão profundas e incapacitantes que nem os actos mais horrendos podem ser cometidos, por falta de coordenação motora. Pormenores podem desaparecer com a urina que deixámos num beco na noite anterior; grandes actos de vexame muito raramente o são.
Quando o acto desculpabilizado é o consumo de drogas pesadas, e o autor da desculpa um importante detentor de um cargo público, esta minha posição é sublimemente suportada. Além das semelhanças físicas com o actor e comediante Larry Joe Campbell (que, apesar de completamente alheias ao assunto, tinham de ser mencionadas), o mayor de Toronto Rob Ford tem outro motivo para ser referido, ao admitir ter consumido crack quando já desempenhava o cargo. Posteriormente, ao tentar amenizar o seu erro, conseguiu piorá-lo: «Yes I have smoked crack cocaine. But no, do I, am I am addict? No. Have I tried it? Probably in one of my drunken stupors, probably approximately about a year ago».

Partindo da mais desapropriada desculpabilização política desde que Paulo Portas disse não saber do corte na TSU, aqui partilho um artigo do cracked.com, um site que merece ser também ele divulgado, pelo atractivo dos assuntos e o aprimorado humor da escrita: as cinco desculpas mais estúpidas alguma vez proferidas num escândalo político.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

O Natal é quando este homem quiser

Desafio o leitor a encontrar um cidadão português que anualmente não manifeste, enfadado e indignado, o seu descontentamento com a proliferação de enfeites de natal antecipados. Culpa-se a sede capitalista, culpam-se os gananciosos argentários que exploram os indefesos consumidores que, cegos pelos luzidios ornamentos, começam mais cedo a encher os sapatinhos dos seus entes queridos.

A Venezuela, baluarte da experiência socialista no sul das Américas, foi mais longe. Nicolás Maduro já recentemente mostrara ser um homem de inabalável crença e limitado intelecto ao afirmar que o seu falecido antecessor havia reencarnado na parede de uma estação de metro. O espírito de Chávez não é, porém, o único a surgir sem aviso. Também o espírito natalício foi evocado prematuramente pelo presidente, abusando desde já de um poder supremo que, se bem se recordam, já requereu e para o qual aguarda ainda aprovação. Mas ao contrário do que sucede no plutocrático mundo ocidental, em que esse espírito emerge compurscado pela febre do capital, celebrar-se-á antecipadamente por esses lados o nascimento do Salvador graças à grave crise económica e social que o país atravessa e à injecção de alegria que a época natalícia provoca na população.

Já se desconfiava há muito, desde a crise resultante da sucessão, da falta de argúcia do líder da Venezuela. Contudo, havia que dar o natural benefício da dúvida: quem sucedesse a Chávez não poderia ser pior. A vida, essa, ri-se destas presunções, e brinda os venezuelanos com uma peça de um ainda mais elevado quilate, e de uma sabedoria ainda mais brilhante do que os enfeites adornantes do seu pinheiro que, com certeza, já enchem o seu lar de um necessariamente extemporâneo espírito natalício.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Dreamer

A figura de John Lennon está envolta num misticismo ímpar no moderno mundo artístico. Muitos outros músicos foram encarados como estando espiritualmente acima dos pífios mortais: Elvis Presley e os obsessivos mitos da sua sobrevivência são um exemplo incontornável. Mas nenhum se aproximou tanto do estatuto de Jesus Cristo do mundo moderno como o Beatle.

A figura física ajudou. As semelhanças com a imagem que os frescos renascentistas disseminaram como sendo do nazareno são impossíveis de ignorar. Está lá tudo: os longos cabelos castanhos, o olhar firme mas terno, o corpo delgado. Até arranjou uma mulher de outras terras para reforçar a já inevitável associação. Mas estas semelhanças nunca seriam suficientes para esta profana comparação se Lennon nunca tivesse composto aquela mensagem de paz, de forma cantada, e não pregada, mas não por isso menos popular. A Imagine, apesar de renegar a mensagem religiosa (ou pelo menos as consequências negativas que dela advêm), tem com o discurso cristão de harmonia e perdão denominadores comuns incontornáveis.

Outro factor indispensável à sua canonização foi o assassinato. Armado de um revólver na mão direita e de Salinger na esquerda, Mark David Chapman viu na raiva juvenil de Holden Caufield a inspiração para abater um ícone das raízes pacíficas da sua geração. Esta martirização foi exactamente o que faltava na consagração de Lennon como venerado semi-deus.

Mas a realidade é bem mais vil do que a nossa propensão para santificar ídolos nos permite conceber. John Lennon, que fez o mundo utopizar um primaveril mundo de concórdia, batia na mulher. Nas mulheres, para ser mais preciso. A sua primeira mulher Cynthia, mãe do seu filho Julian, e a sua musa Yoko Ono foram ambas vítimas de violência doméstica. E já que referimos o rebento, é pretinente acrescentar que, numa entrevista dada já após a morte do progenitor, este confessou que Paul McCartney sempre foi mais um pai para ele que o próprio Lennon. Não podemos condenar o petiz; além da brutalidade física que o ícone da paz reservava para as companheiras, brindava regularmente Julian com insultos frutos do ressentimento provocado pela sua concepção, que obrigara Lennon a assentar raízes numa altura da sua vida em que a rotina de casado não se enquadrava no seu documentado narcisismo.

Outras contradições valem a pena serem referidas. A opulência financeira, que publicamente condenava, era contrariada pela vida de milionário que ostentava (um pouco ao estilo Floribella, portanto). Repudiava religião, mas era um homem altamente espiritual. Fazia meditação, mas só atingia a paz de espírito abusando fisica e psicologicamente da sua família.

Não é meu intento, ao partilhar estes factos, denegrir de forma gratuita a figura de Lennon. Admiro de resto, inevitavelmente, o artista. Além de inspirado compositor, tem um timbre de voz que parece reflectir a extravagância e multiplicidade do seu carácter: tanto nos encantou com a brandura de Across the Universe como com a deliciosa aspereza de Yer Blues, passando pelo tom mecânico da psicadélica I am the Walrus e a voz descontraída e compassada em Come Together.

Quero, ao partilhar estes sórdidos pormenores da vida pessoal de Lennon, exemplificar que é perigoso desumanizar os ídolos. Já nem quero referir as eventuais consequências de conceptualizarmos a existência de seres humanos perfeitos, e do que isso faz ao frágil ego de uma população consciente dos seus pecados. Apenas me insurjo contra a injustiça em si.

Lennon é colocado lado a lado com Malcolm X, Mandela, Ghandi ou Martin Luther King como personalidades que lutaram com as suas armas contra a desigualdade, a guerra e a discórdia. John Lennon merece figurar nos anais da história como um dos músicos mais inovadores e influentes do século XX. Mas nunca como um candidato póstumo a Nobel da Paz. Exceptuando, talvez, no lugar de Obama em 2009. Verdade seja dita: Lennon surrava nas companheiras, mas nunca bombardeou um país.