sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Pai Nosso

Estou assombrado pelo espírito do Charlie que afinal ne sommes pas.
Estou perdido. Entre aqueles que não perceberam a piada ou aqueles que não a admitem. Entre os severamente ofendidos e os que ainda se estão a rir como se esta fosse a piada mais engraçada do mundo (nem sequer é original, o Bloco definitivamente não se lembrou dela, já foi mais do que usada em campanhas pró-homossexualidade).
"Não faz sentido a analogia". As palavras são de Manuel Barbosa, porta-voz da Conferência Episcopal. A incapacidade de decifrar piadas que recorrem a metáforas, ironia e outras figuras de estilo é amiúde um problema patológico, uma dislexia. Nada surpreendente: quer o senhor acredite realmente no seu pai espiritual, quer o faça por ser charlatão, terá com certeza uma doença. Ou é esquizofrénica ou é moral. "Penso que há um certo aproveitamento, num período em que na Igreja se está a viver um tempo forte de Quaresma, depois da Páscoa e o Ano de Misericórdia. Não sei se é coincidência ou se é propositado", lacrimeja Manuel Barbosa. Juntem a vossa gargalhada à minha.
O CDS também está chocado. De facto, não se faz: "utilizar imagens religiosas para alegadamente tirar um proveito político" é rasteiro. "Em política, como na vida, podemos discordar das ideias dos outros, mas não podemos ofender os sentimentos dos outros", chora Mota Soares. Baixem as armas: feriram o democrata-cristão. A dor na ferida católica começou a latejar, mas não pode ser assumida. Demagogia é o único analgésico. Não pode é ser hipócrita, caro Mota Soares. Não se esqueça que Passos Coelho, primeiro-ministro que o senhor serviu, é um conhecido ateu e decidiu encontrar a fé em plena campanha para as legislativas, quando disse não se separar da sua cruz. Até Ângelo Correia, seu pai político, que o conhece desde petiz, estranhou o repentino achar de tamanha fé e até ironizou. Ganhar votos através das crenças alheia é muito à lá política americana no século XX. Acusar o Bloco de fazer o inverso é muito pouco cristão. E se já se provou que a memória deste senhor é curta, relembre-se estas nojentas declarações deste mesmo senhor, de há onze anos: Mota Soares disse que vê "como absolutamente normal que as cerimónias oficiais incluam o benzer de uma ponte, de um edifício", já que (atenção, isto sim pode ferir susceptibilidades) "mesmo no Estado há espaço para o divino e é preciso não confundir laicidade com ateísmo".
Então há espaço para o divino na política ou não há espaço para o divino, caro democrata-cristão? Ofensivo não é haver uma inocente piada religiosa em campanha. Ofensivo é termos tido um ministro sem o alcance mental, democrático e de serviço público para entender que liberdade religiosa não é só para religiosos, é para ateus praticantes também. Que acha bem benzer pontes em cerimónias estatais, mas a pilinha casada, essa, só pode combinar com pipi, nem que seja o Estado a obrigar. A liberdade do contribuinte é importante, Sr. Mota Soares; mas sacudir a liberdade de expressão e a obrigação de laicidade do Estado para o lado, como meros inconvenientes, é meio caminho andado para o regresso de uma ditadura baseada em Fátima.
Na política portuguesa, nunca lutarei sempre do mesmo lado. A minha bússola política está sempre dividida entre a liberdade social do cidadão, defendida pelo Bloco, a liberdade do cidadão enquanto agente económico, defendida por...bem, absolutamente ninguém. Explorarei essa questão em segundas núpcias. Hoje, senti sobretudo que todas as partes descuraram um segmento importante da discussão. A questão dos paternalismos tem de ser debatida na sua plenitude e ofende-me que isso não esteja a ser feito. Porque eu tenho três pais: o meu progenitor de sangue; o pai de todos nós, que está no céu e que seja santificado o seu nome; e o Pai Natal, que há cinco anos me deu uma guitarra eléctrica e que por isso não gosto de o ver negligenciado.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Redenção de rabo ao léu

Joshua Milton Blahyi é um pastor evangélico liberiano. Caminha a lentos e pesados passos pelo lamaçal de um campo de refugiados do país. A acompanhá-lo está um jovem da terra, que vai expressando por questões a sua admiração por Joshua, pelo seu trabalho e coragem. Aproximam-se de uma barraca onde se senta uma senhora a descascar fruta. «É esta a senhora», apresenta o jovem. «É a Lovetta».
Lovetta tem a poderosa tranquilidade das mulheres africanas, como uma majestosa leoa. Não aparenta qualquer agrado com estas visitas. Mas é boa anfitriã: entra na barraca que tem como lar e vai buscar duas cadeiras de plástico onde sentar os convidados. Senta-se também perante eles, com o mesmo ar de indiferença. Ao grupo junta-se uma jovem, filha de Lovetta, camisola às riscas, postura tímida, o olho direito visivelmente danificado.
Há dezasseis anos atrás, Joshua não era um pacífico ministro religioso. Era o General Butt Naked, um sanguinário líder de guerra, canibal, violador e um dos mais prolíferos assassinos que a história alguma vez registou. A alcunha é inusitada e roça o cómico, assim como a sua origem: Blahyi lutava completamente nu. Dizia que se movimentava mais rápido sem roupa e que conseguia desta forma activar mais rapidamente os seus poderes espirituais que ele sempre teve. Outrora satânicos, agora cristãos.
A guerra civil liberiana foi um caos destruidor de mortes avulsas e anarquia. No meio deste cenário apocalíptico, o General Butt Naked começou a tornar-se um mito. Os ataques do seu "exército" começavam a ser contados com os mais vis detalhes. O General recrutava crianças para serem seus soldados, esfaqueava mulheres grávidas na barriga, dilacerava e comia os corpos de civis inocentes. Quando instado a estimar as mortes de que foi responsável, declarou com frieza: "Se tivesse de calcular, diria que nunca menos de vinte mil".
O General é agora pastor e está sentado perante duas das suas vítimas do passado. Joshua fala de como encontrou Deus e em como procura o perdão das pessoas que magoou. Lovetta mantém a compostura e não pára de comer fruta enquanto o pastor fala. Ao terminar, Joshua pede-lhe que conte exactamente o que se passou. Lovetta cede a um pouco de fragilidade quando refere essa malfadada manhã de sábado, há dezasseis anos. A filha tinha pouco mais de um ano e estava ao seu colo. Lovetta relata como começou a sentir a agitação nas ruas, gritos, pessoas a correr. Ouvia que o General Butt Naked estava a caminho. O marido estava a dormir. Sem aviso, o General entrou em sua casa. Ao tentar atingi-la, acerta com o cano da sua arma em cheio no olho direito da bebé, cegando-o. A mãe não larga a criança e procura refugiar-se no quarto onde dorme o marido. O General persegue-as e, ao ver o homem, mata-o a sangue frio. A imagem que guarda do homem integralmente nu, armado em ambas as mãos, ávido de morte e sexo, a persegui-la com o perturbador olhar dos maníacos iria assombrá-la para sempre.
O General Butt Naked tem agora roupa, mas parece mais despido que nunca. O silêncio que se segue é mais doloroso que as palavras. As lágrimas começam a formar-se nos olhos da filha de Lovetta. Do olho cego, escorre a primeira. Joshua não tem palavras para quebrar a taciturnidade. A maçã de Adão treme e fica difícil dizer que o seu olhar é de culpa ou de pena. A expressão de Lovetta permanece impávida, mas os seus olhos transpiram ressentimento, medo, uma dor adormecida.
Partilham todos, no entanto, uma ilusão: a ilusão de irmandade, de um Pai partilhado. Juntos, dão as mãos e rezam, agradecendo a Deus a oportunidade de reconciliação e a capacidade de perdão.
Vivemos todos em contra-relógio, pelejando o tarde demais, prevenindo ou corrigindo o arrependimento. Não é preciso religião para mudar a vida, mas dificilmente haverá conforto mais fácil de obter. Bem-aventurados são aqueles que encontraram na religião um sentido: enquanto tentamos viver procurando ramos que nos impeçam de cair desesperadamente num precipício de vazio e solidão, os religiosos encontraram-nos na ilusão. Um mundo onde os ramos não se partem e eles levitam sem o peso da dor, da auto-responsabilização e da falta de objectivo maior. Em que o amor pela divindade é tal que se torna maior que o amor-próprio, mais importante que a vida, mais forte que a dor. Uma ilusão tão ofuscante que é capaz de perdoar o mais atroz criminoso. Se a inveja não fosse um pecado, certamente os invejaria.