terça-feira, 11 de março de 2014

Um Ponto Filosófico de Situação Existencial


“Quem vive sob o domínio da sensação tenta realizar todas as possibilidades, mas estas não lhe proporcionam mais do que uma actualidade transitória. A ameaça do tédio é perpétua e consequentemente a busca de novidades conduz, em última instância, ao desespero” - Soren Kierkegaard

"Que ideia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas)."
- Alberto Caeiro

(Devido aos constrangimentos dos blogues com meio de expressão, as ideias aqui discutidas são apresentadas numa forma simples, reconhecendo que, no meio da minha ignorância técnica, sem o devido enquadramento filosófico, fundamentação teórica e exposição meticulosa das racionalizações subjacentes, muitas das afirmações e conceitos aqui inscritos poderão parecer redutores e facilmente contrapostos com objecções conhecidas.)

A história do sacrifício de Isaac é, ao mesmo tempo, a história mais interessante do Antigo Testamento, a lição mais interessante da filosofia ocidental e a pintura mais bela de Caravaggio. Deus ordena Abraão que sacrifique o seu filho Isaac. Abraão é assombrado por uma ordem divina tão cruel, mas, mesmo com uma imensidão de dúvida, leva Isaac para o cimo de uma montanha e amarra-o num altar sacrificial. No momento em que levanta a lâmina para acabar com a vida do seu próprio filho, Abraão é interrompido por um anjo, que comunica-lhe que Deus agora sabia que ele tinha fé.

O filósofo dinamarquês, Kierkegaard, argumentou que esta história representa a progressão final da atitude livre do homem para com a vida. De acordo com o autor existem três fases nessa progressão: a estética, a ética e a religiosa. O indivíduo tenta viver de acordo com os ditames da beleza e do prazer, mas sente as limitações intrínsecas da gratificação instantânea. O plano ético surge com a ansiedade sobre essas limitações e quando o indivíduo preocupa-se com as implicações morais das suas acções relativamente aos outros. A impossibilidade de aceitar o absolutismo moral do plano ético sem a existência de Deus leva o indivíduo a aceitar a fé da fase religiosa. Essa transição final é a história de Abraão e Isaac. O pai sabia que matar o seu filho era moralmente errado, explicitamente errado segundo a moral divina, mas, sendo comandado por Deus, realizou o sacrifício num acto supremo de fé.

A redoma protectora que os nossos pais instalam quando nascemos é imaterial. É um aquário maravilhoso de amor e boas intenções. Ela é a lente correctiva que nos permite ultrapassar a fragilidade da infância sem questionarmos o mundo que os nossos pais juram estar à nossa volta. Apenas é possível vê-la no passado, quando já estamos do outro lado, fora da sua alçada. Ao pensar na minha experiência dentro dela, eu vejo nitidamente um vidro cristalino que me acompanhava sempre, que impossibilitava o acesso à visão desconstruída do mundo nas suas partes constituintes e que transformava os progenitores na autoridade benevolente final.

A adolescência é a fase em que saímos dessa campânula parental. Aproximamo-nos inconscientemente da sua superfície e, suspeitando a sua presença, passamos para o outro lado e recebemos um choque existencial. Do outro lado a razão diz-nos que aquilo que fazia sentido é apenas um fenómeno auto-referencial, e aquilo que tinha significado é apenas um fenómeno aleatório. No entanto, ainda sentimos as emoções derivadas do sentido e do significado. O amor da nossa mãe não tem significado, mas ainda sentimos os seus efeitos. Esse conflito – a noção simultânea de que tudo importa e nada importa - tem um potencial destruidor. O concretizar do quotidiano estagna quando o infinito absorve o finito. Os nossos pais passam a ser os recipientes de uma enorme raiva devido ao seu papel como propagadores da Grande Mentira. É difícil pensar num emprego, ver um filme, ou estar com amigos, quando não sabemos qual é o nosso lugar no universo. Este é o problema básico do existencialismo filosófico.

Qualquer criança se depara com o dilema existencial quando recebe as respostas rebuscadas de adultos face às questões mais básicas: por que nascemos, de onde viemos e para onde vamos. Eu nunca ultrapassei este problema. Eu tenho uma experiência maior em lidar psicologicamente com o desespero que dele advém, mas não há nenhum trabalho literário, corrente filosófica ou dogma religioso que consiga eliminar ou resolver este problema. O ser humano sintetizou várias substâncias incapazes de produzir respostas, mas capazes de fazer com que a pergunta desapareça momentaneamente. No entanto, também este efeito meliorativo acaba por cessar. Existem pessoas capazes de ignorar este problema, vendo um imperativo existencial satisfatório na obtenção de prazer e no colmatar da dor. Eu adoraria conseguir viver satisfeito nesse hedonismo moderno ou no naturalismo humilde de Alberto Caeiro, mas, na minha experiência, o sofrimento mental superioriza-se sempre ao prazer físico e, apesar da sua genialidade no papel, Fernando Pessoa morreu de cirrose hepática aos quarenta e sete anos de idade, dificilmente sendo considerado um protótipo de uma vida bem vivida.

Para efeitos de simplificação radical, eu vejo o mundo em duas visões. As duas visões são quase diametralmente opostas, aparentemente irreconciliáveis. Na visão do pessimismo o mundo é uma sopa aleatória de moléculas, onde as nossas vidas são apenas ilusões desprovidas de significado, sem qualquer desígnio aparente. A nossa existência é uma eventualidade irrelevante do cosmos. Os grandes conceitos da humanidade – felicidade, amor, altruísmo – são apenas mecanismos evolutivos expressos em variações bioquímicas no cérebro com o objectivo de sustentar a manutenção de um sistema de organização de matéria. A moral, a ética e a lei são apenas linhas imaginárias na areia da praia universal. A vida, alegria, sofrimento e morte são tão significativas quanto a transformação estelar de hidrogénio em hélio, erupções vulcânicas, a sobreposição de sedimentos rochosos ou a trajectória errante de cometas e meteoros. O conceito de deus não tem qualquer lugar nesta visão. O absolutismo nesta visão é visceralmente incapacitante. No fundo deste poço, não é possível sair da cama.

Na outra visão o mundo é um colosso de ordem onde as nossas vidas são a procura significativa de felicidade, regidas pelo certo e errado, com o desígnio supremo de honrar Deus através da prática do amor. A nossa existência é a expressão do acto da Criação de uma entidade perpétua cuja natureza não compreendemos na totalidade. Os grandes conceitos da humanidade – felicidade, amor, altruísmo - são razões absolutas para viver. A moral, a ética e a lei representam o quadro orientador da operacionalidade dessas razões absolutas. O mundo orgânico dispõe, na sua essência, de uma supremacia existencial sobre o mundo inorgânico. Existe mais significado no núcleo de uma ameba unicelular do que em todas as galáxias e buracos negros deste universo. O conceito de Deus é inseparável desta visão. O absolutismo nesta visão é impossível, pois a lista de argumentos contrários é demasiado extensa para ser completamente ignorada. Sobre as especificidades características atribuídas à entidade divina – omnisciência, omnipotência, omnipresença – não me pronuncio, apesar de existirem diversos argumentos a favor e contra. A minha concepção de Deus admite apenas a entidade criadora em si, e, ao assumir que a sua existência se dá num plano incompreensível para a mente humana, fora do tempo e do espaço, não me pronuncio sobre os seus atributos, por tal não ser possível.

Depois de ter passado muito tempo preso na ideia de que eu tinha que escolher uma destas visões, a minha solução foi aceitar as duas visões. Não consiste em fundi-las dialecticamente, mas em aceitar a sua possibilidade e as suas respectivas eventualidades ao mesmo tempo. Envolve alguma resignação, algo que ainda não está completamente assente no meu espírito, mas é a única forma de conseguir viver fora das paredes almofadadas da cela de um hospital psiquiátrico. Existem forças no universo que são simplesmente demasiado poderosas para serem convertidas sistematicamente em palavras. O infinito indiferente não destrói o finito quotidiano apenas porque não compreendemos tudo. A vida vale a pena viver e poderá não ter qualquer significado. O amor é uma expressão do infinito cósmico e é um subproduto evolutivo de uma realidade finita. Isto foi o que Kierkegaard chamou de ironia. A capacidade de viver com a presença simultânea de duas noções opostas.

Eu sei que esta visão é logicamente imperfeita. Não afirmo possuir toda a verdade, nem tenho a certeza de possuir alguma verdade. Tendo em conta o pouco que sabemos da nossa realidade extraordinariamente complexa, seria ilusório e arrogante afirmar que atingi a verdade num plano existencial superior. Apesar de tudo isto, eu não aceito o agnosticismo. Eu não penso que estas verdades são incognoscíveis. No seu estado actual, os nossos pobres cérebros humanos são incapazes de compreender aquilo que não está relacionado directamente consigo mesmo e com a metodologia de organização sensorial das suas formas limitadas de percepção. É na computadorização exponencial do futuro e nas descobertas vertiginosas da física quântica que residem a esperança iluminada do esclarecimento.

Tenho apenas uma certeza – algo existe. Algo ao invés de nada. Eu não sei porque nascemos, mas sei que nascemos. Eu não sei de onde viemos, mas sei que estamos aqui. Eu não sei para onde vamos, mas sei que quero ir. Estaria a mentir se dissesse que me sinto completamente seguro na minha posição filosófica e que não tenho momentos de desespero que tendem mais para a visão do pessimismo do que para o optimismo. Mas, na maior parte das noites, quando pouso a cabeça na almofada, estou extremamente grato por estar aqui. Há uma imagem mental a que recorro quando estas dúvidas são mais fortes e as preocupações da minha vida parecem irrelevantes neste universo indefinível. Nos documentários da vida animal existe a cena clássica – a passagem migratória das zebras num rio povoado por crocodilos. Inevitavelmente, uma das zebras é atacada e tenta fugir desesperadamente do poderoso réptil. A sua repulsa por essa violência é tamanha que chegamos a observar situações em que o animal tem um dos membros preso nas mandíbulas, mas continua a tentar libertar-se e chegar à segurança da margem. Esse desespero instintivo, essa recusa brutal da morte em todas das coisas vivas, é a minha canção de embalar, as notas reconfortantes que me levam a fechar os olhos com a esperança de viver e a vontade de voltar a abri-los no dia seguinte.

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