segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Direito de Resposta


Caríssima Teolinda Gersão,

Li a sua carta. O ataque de riso subsequente quase me matou. Mas, mesmo assim, obrigado. Teria sido um prazer ter morrido depois de uma leitura tão interessante. Digo isto com toda a sinceridade. Numa altura em que meio mundo corre atrás de soluções mágicas para a crise da imprensa, a sua carta bacoca encapsulou com requinte todas as razões que conduzirão os órgãos de imprensa a uma morte lenta e incauta.

Mas falemos daquilo que tanto a preocupa. A praxe. A vil praxe. A ignóbil, corrupta e abjecta praxe. Não faço tenções de representar a classe dos “caloiros”. Não sou um caloiro. Nem sequer fiz parte da praxe. Mas acho que é correcto afirmar que as pessoas que constituem esse conjunto vasto e diverso de seres humanos não gostam de serem endereçadas como uma manada de animais irracionais nesse tom altivo de avó preocupada. Respondo apenas como uma pessoa normal, alguém sem uma sardinha a assar, apenas um cidadão preocupado.

Não irei oferecer argumentos a favor da praxe. É difícil encontrar um assunto que seja tão desinteressante quanto esse. Mas posso dizer que os seus argumentos são tão ridículos quanto o seu nome. Na sua visão, até os animais possuem um nível maior de protecção do que indivíduos que participam na praxe. Mesmo que a sua asserção tenha sido metafórica, a falsidade da ideia é gritante. Indivíduos que são praxados, ou, na linguagem técnica que a senhora rejubilou em usar, “caloiros”, possuem exactamente as mesmas protecções legais que qualquer outra pessoa. A lei não é suspensa no momento em que pessoas se vestem de preto e seguram colheres gigantes. A liberdade é um conceito estranho, não é? É a noção maluca de que, desde que não atentem contra a liberdade alheia, às vezes outras pessoas podem querer realizar actos com os quais não concordamos. Mesmo que esses actos consistam em abdicar parcialmente da liberdade individual.

Quanto a esta analogia intelectualmente devastadora – “Que fariam se um professor vos mandasse rastejar no chão? De certeza que não obedeciam, e o professor teria problemas, e apanharia com razão um processo em cima.” - é mesmo necessário explicar-lhe o quão ridículo qualquer actividade ritualística parece fora do seu contexto natural, especialmente para alguém que não está incluído nesse ritual? É por essa razão que não vemos cirurgiões a cantarem o hino nacional durante operações ou pessoas vestidas de Pai Natal durante a Páscoa. Não sei quando é que foi a última vez que a senhora saiu de casa, mas o mundo não funciona segundo a lógica de desenhos animados onde o certo, o errado, o bem e o mal são óbvios e lineares. E, caso não saiba, a aplicabilidade dos preceitos morais de contos de fadas na vida real é mais limitada do que a senhora parece pensar.

Como em qualquer outro contexto, por vezes abusos e exageros ocorrem. Mas isso não invalida a actividade praxística como um fenómeno cultural legítimo. De forma semelhante, a gestão de Isaltino Morais não invalidou o município de Oeiras, a eleição de António José Seguro não invalidou o Partido Socialista, e o bigode do Hitler não invalidou nem a Alemanha, nem a existência de pêlos faciais. O seu erro foi pensar que aquilo que falta às dezenas de milhares de pessoas que todos os anos participam proveitosamente das actividades praxísticas é acesso a senso comum, algo que, tendo em conta o tom condescendente que utilizou na carta, a senhora julga ter em quantidades infinitas. Não será a razão pura que acabará com a praxe, assim como não é a razão pura que explica e legitima inúmeros fenómenos sociais.

Agora, se me permite, serei eu a dar-lhe um pequeno conselho. Se a senhora quer falar sobre abusos desnecessários, não é necessário incomodar-se e escrever artigos de opinião idióticos. Tudo o que tem a fazer é olhar para o seu próprio Cartão do Cidadão, ler as palavras lá inscritas e questionar a crueldade demoníaca que é infligir a alguém o nome de “Teolinda Gersão”. Eu sei que não é tão prestigiante quanto publicar um artigo num jornal, mas pelo menos pouparia tempo, que é algo que, se fiz bem as contas, a senhora não tem de sobra.

Atenciosamente,

Leandro Silva

PS: Bem sei que gozar com o nome de alguém é infantil e ridículo, especialmente quando feito por um adulto, e, ainda pior, por um adulto chamado Leandro. Mas se há algo que me irrita, se há algo que põe o meu sangue a ferver como metal derretido é pseudo-pedagogia paternalista despejada sobre adultos vacinados. Juro. Essa merda há-de me levar para a cova.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Horror na Moda Lisboa


Dependendo de circunstâncias práticas e perspectivas filosóficas, a vida pode ter valores diferentes. A vida é boa, a vida é má, a vida é curta e a vida é difícil. Mas nenhuma outra experiência no âmbito da existência humana consegue proclamar, com tamanha certeza, que a vida é estranha, do que ir à Moda Lisboa. A minha definição original do Inferno na Terra envolvia bombardeamentos aéreos, fome generalizada, epidemias imparáveis e o som constante de metralhadoras automáticas. Essa definição mudou. Eu estive diante dos portões do Inferno, e vi a sua verdadeira forma: não tem fogo, não está localizado debaixo da terra e o seu nome é, garanto-vos, Moda Lisboa.

As coisas que eu vi e as coisas que eu testemunhei alteraram permanentemente a forma como eu interpreto a interacção humana. Não foi apenas uma coisa. Foi tudo. Foi como se eu tivesse ingerido LSD e depois tivesse sido teletransportado para uma escola secundária para adultos onde era Carnaval todos os dias. Um grupo de pessoas se juntou para sentarem-se em arquibancadas chiques para observar manequins de plástico a andarem como dinossauros bípedes vestidos com roupas que gritavam loucura como a actriz principal num filme do Hitchcock.

Aquilo que foi mais estranho é que a roupa – a razão pela qual todos lá estávamos - parecia ter a mesma importância que notícias de instabilidade política na Tanzânia. Durante o próprio desfile, não havia uma multidão coesa a formar um bloco de atenção colectiva. Eu arriscaria a dizer que nem metade daquelas pessoas estavam ali para ver os desfiles. A maioria dos presentes dedicaram o seu tempo a mexer em telemóveis, roer unhas, fumar cigarros electrónicos, tirar selfies e fazer festas em cães minúsculos carregados em bolsas.

Mas aqueles que assistiram verdadeiramente aos desfiles foram possuídos por descrença pura. Eu não sei se aquilo é arte, ou se alguém, algures, está a rir-se dos idiotas que levam aqueles trapos a sério. Aqueles que tentavam justificar a relevância artística das obras diziam: é moda. Não tem que fazer sentido. É conceptual. É algo que não deve ser interpretado. É algo que deve ser experienciado. A verdade é que, pelo aspecto da “obra” apresentada, a Chanel poderia usar o revestimento do estômago de fetos chineses abortados na roupa e aquelas pessoas iriam elogiá-los pelo uso audaz de “reciclagem biológica”. Tudo para manter viva a ilusão de que o julgamento da arte, e especialmente da moda, não está sujeito a qualquer tipo de objectividade.

A roupa não era simplesmente má, e eu não posso limitar esta crítica à asserção de que a roupa apresentada não fazia sentido. Porque fazia. Fazia muito sentido. O problema é que aquilo não era roupa. Era um pedaço de tecido desenhado por pessoas sem ideias que pensam que agir de forma aleatória é equivalente a ser artístico. Eu estava pasmo, mas apaziguado pela confirmação de que não estava sozinho na minha estupefacção. Reconheci no olhar daqueles que assistiam aos desfiles os contornos faciais daquilo que eu sentia: confusão, indiferença e choque.

E as pessoas. Se eu começar a descrever as pessoas presentes, terei dificuldades em parar de escrever. A Biologia e a Geografia podem colocar a origem do Homem em África, o nosso imaginário cultural pode ver no continente africano uma terra mística de primitivismo selvagem, mas é ali, ao longo da passarela, debaixo dos holofotes, à frente dos flashes e entre os espelhos, que é possível observar a expressão natural do Homem como um primata, um primo distante de chimpanzés, gorilas e orangotangos.

É provavelmente o lugar deste planeta com a maior concentração de purpurina por metro quadrado. Duvido se muitas daquelas pessoas tinham almas - ou já foram vendidas, ou estão a gritar desesperadas numa caverna recôndita dentro dos seus corpos. O Diabo aparece em todo lado, mas especialmente nos pequenos detalhes. Aquilo que se vê não é atenção ou zelo. É obsessão na sua forma mais pura. Eu consigo ver todas aquelas pessoas a passarem horas à frente de espelhos, cercados por montanhas de roupas, à procura de uma combinação milagrosa de compatibilidade estética. As escolhas não foram feitas com o objectivo de cativar, impressionar ou atrair. Elas foram feitas com a intenção clara de subjugar, intimidar e desprezar.

Os olhos são descritos como janelas para a alma, espelhos que reflectem as nossas intenções verdadeiras, mas aqui eles reflectem julgamento impiedoso. Os olhos perscrutam a sala em movimento horizontas (identificação do alvo) e em movimentos verticais (julgamento do alvo). O estatuto, as castas, as reputações – tudo aquilo que os sistemas sociopolíticos tentam anular têm aqui a sua expressão máxima. Entradas separadas para Pessoas Muito Importantes. Famosas chegam atrasados e são simplesmente transportados para início da fila. A hierarquia de lugares é real – quem se senta aonde, em que fila, ao lado de quem.

Eu dei por mim a sentir medo de cantos escuros e corredores vazios. Tudo parecia indicar que, dadas certas circunstâncias, alguém esfaquear-me-ia nas costas e abandonaria o meu corpo no beco das traseiras, apenas porque sim. Desconfiei de todos – os fotógrafos, os empregados de mesa, os seguranças, a socialite milenar de óculos escuros, os estudantes de moda vestidos com roupas ainda mais implausíveis do que aquelas pavoneadas na passarela, as mulheres ocupadas e sérias que escreviam mensagem nos telemóveis com a violência repetitiva de martelos pneumáticos.

Quando finalmente saí do recinto, percebi que o meu esfíncter tinha estado contraído durante todo aquele tempo. A minha respiração estava rasa. Tudo no meu corpo indicava que eu tinha acabado de passar por um evento potencialmente mortal. No quotidiano as pessoas tentam esconder as suas emoções verdadeiras e esforçam-se para reprimir qualquer instinto de julgamento. Mas ali o julgamento é realizado à descarada, com o conforto natural de turistas alemães numa praia nudista e com a intrepidez indiferente de uma prostituta a ler a TV Guia sentada numa cadeira de praia na berma da Via Norte enquanto espera por clientes. Neste país, que adora viver como um depravado hipócrita às escuras, isso é maravilhoso. Perturbador, mas maravilhoso. Pena que essa maravilha esteja tão apaixonada pela sua própria mediocridade. Mas posso dizer: mal posso esperar pelo próximo ano. Desta vez hei-de levar o meu chapéu de safari e os meus binóculos.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

A Retórica Bovina da Palha


“(Os governantes) são todos uns ignorantes e idiotas” – Mário Soares

É uma paisagem típica do Verão alentejano. Os arbustos secos sobre o solo árido. As planícies ocupadas por campos de milho. As casas isoladas no cimo dos montes. Os batalhões de sobreiros e os pelotões de oliveiras. Mas eles não estão sozinhos. Ela também está lá. A palha. Empilhada no reboque que é puxado por um tractor vagaroso. Atirada ao ar por crianças e espalhada pelo vento. Enrolada em fardos redondos e paralelepipédicos. Mastigada pelas bocas ruminantes do gado feliz. É exactamente ali que ela deve estar. É ali que ela pertence.

Abra-se um jornal, leia-se uma revista e veja-se um programa televisivo. Observe-se o parlamento, os noticiários, os fóruns de opinião e os debates políticos. Depois de estarmos devidamente apetrechados com um fato de protecção química e um tubo de oxigénio, leia-se as caixas de comentários. Não sei como é que ela chegou ali, mas sei que ela – a palha – migrou do seu tradicional posto agrícola para as bocas dos nossos agentes culturais, sociais e políticos, onde se instalou sem quaisquer intenções de sair no futuro. Brevemente, se nada se fizer, passará a dispor de estatuto de dialecto oficial.

Essa palha, depois de navegar pelo sistema digestivo da humanidade, passando pelo intestino grosso da cidadania e pelo recto da consciência social, origina o produto final da retórica humana – uma mistela podre, malcheirosa e desprovida de nutrientes. Uma espécie de epidemia assolou esta nação e causou uma regressão evolutiva que nos relegou para criaturas que comunicam através de chavões, grunhos e clichés.

Generaliza-se impunemente sobre os desejos íntimos das “pessoas”. Fazem-se interpretações míticas sobre o “futuro da nação”. Propõe-se, com uma seriedade cómica de académico a apresentar o resultado de décadas de investigação, que a solução está na “estratégia”. Decreta-se que aquilo que é necessário é “esperança”. Promete-se “mudança” pela bilionésima vez e, nós, como esposas submissas que atribuem as nódoas negras causadas pelos punhos do marido aos degraus das escadas, aceitamos tudo. Depois, numa bipolaridade promíscua, recebemos estas palavras vazias como declarações eternas de amor, e acreditamos cegamente quando nos dizem que a culpa não é nossa, que a culpa é “deles”, dos outros, dos maus, “daqueles que nos governam”, dos “mercados”, da “austeridade”.

Aceitamos a retórica e contentamo-nos com o alívio das piadinhas de costume. Os trocadilhos são produzidos com a eficiência monstruosa de uma fábrica chinesa. Qualquer coisa serve - utiliza-se a palavra “irrevogável” como arma de arremesso, chama-se isto de “piegas” e aquilo de “neoliberal”, reduzem-se os “submarinos” a argumentos desesperados e, quando tudo falha, pronuncia-se a sigla mágica – “PPP” – que garante a vitória em qualquer discussão, e permite que o arguente se deleite enquanto a união soprada do lábio inferior e superior produz a repetição triunfante do som da letra “p”.

No “Prós e Contras” observam-se debates que transformam as conversas bêbadas e inflamadas no tasco duvidoso da esquina na apologia de Sócrates. Os dois candidatos à liderança do único partido da oposição afirmaram, numa corrida entre uma tartaruga e uma tartaruga coxa, perante os olhos incrédulos de metade do país (aqueles que não tinham entrado em coma), que a solução para crise é o crescimento económico e que a solução para criar crescimento económico é fazer com que a economia cresça. Este fenómeno acontece repetidamente, e em nenhuma ocasião ocorreu aos jornalistas presentes nas proximidades questionar este exercício carnavalesco de lógica da batata. Expressões como “reindustrialização”, “qualificação”, "cadeias de valor" e “aumento de riqueza” são pronunciadas, e os cavaleiros da verdade, os paladinos da democracia, os guerreiros da cidadania dão-se por satisfeitos, crentes que, graças aos seus esforços altruístas, a liberdade abrilesca do povo continuará protegida dos abusos do poder corrupto.

No fundo do buraco, o cenário é ainda mais deprimente. Nas entrevistas conduzidas depois das partidas de futebol, os jogadores falam. Foi um jogo difícil, fomos prejudicados pela arbitragem, entramos bem na segunda parte, entramos mal na primeira parte, soubemos sofrer, merecíamos a vitória, lutamos pelo empate, o resultado é justo, o resultado é exagerado, o segundo cartão amarelo era desnecessário, foi penálti, não era fora-de-jogo, temos que trabalhar, o importante é a equipa, já estamos a pensar no próximo jogo, graças a Deus, graças ao apoio dos adeptos, é assim o futebol, às vezes perdemos, às vezes ganhamos, boa noite. O problema não está na repetição semanal das declarações nas quais jogadores de futebol vomitam a mesma massa amorfa de betão discursivo. O problema é que os canais de televisão insistem em realizar estas entrevistas e os espectadores insistem em assisti-las.

Não nego. O choque inicial é fútil e interesseiro: estas pessoas recebem mesmo dinheiro por isto? Mas depois, como alguém que prestou atenção às aulas de Formação Cívica, o choque transforma-se em genuína preocupação social. Enquanto o Putin continuar em Donetsk e o vírus da Ébola continuar no sovaco africano, é aqui que reside o núcleo da “crise de valores” da civilização ocidental (da qual fazemos parte, aos Domingos e feriados). Na evocação de banalidades. Na celebração do irrelevante. Na dramatização do inevitável. Na constatação do óbvio. Na institucionalização da linguagem. Na cauterização do significado. Na evisceração da complexidade. Na espiritualização do politicamente correcto. Estes fenómenos não são novos, mas agora, graças à difusão sifilítica nos “meios de comunicação” e nas “redes sociais”, o seu impacto é exponencialmente maior. Mas não nos preocupemos em demasia. Não pensemos. Afinal de contas, hoje em dia, quem é que tem tempo para tal coisa?

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Águas Passadas


"A maioria dos homens persegue o prazer com tanta impetuosidade que passa por ele sem vê-lo." - Soren Kierkegaard

Quão difícil era a vida. O silêncio imposto por fantasmas. A inexistência de cuidados médicos. A ameaça distante, mas presente, da fome. A frieza humana que era um pré-requisito para viver. Era a ditadura - esse horror tão básico e tão comum que é incompreensível para as almas da minha geração privilegiada. A minha mãe jura que o meu avô já foi um homem soturno e agressivo, e eu, confrontado com a amabilidade desarmante que o define nos dias de hoje, tenho dificuldades em acreditar, mas enquanto caminho sozinho pela casa vazia dos meus avós maternos, vejo os sinais desse passado.

As portas grossas, pesadas e ruidosas da casa possuem três fechaduras e duas travas de ferro. As fechaduras comportam chaves maiores do que as minhas mãos. O movimento rotativo das chaves abana toda a estrutura da porta à medida que o intrincado mecanismo de linguetas encerra a casa com o resguardo preventivo de um castelo medieval à espera das tochas e dos engaços de uma multidão enlouquecida. Na antiga sala de estar os sinais multiplicam-se. Nas fotografias a preto-e-branco de familiares mortos – de tuberculose, de desgosto, em acidentes de trabalho, de cirrose, na guerra, por motivos desconhecidos – não se observa um sorriso. A base metálica do ferro de engomar era aquecida por brasas cuja incandescência deixaram cicatrizes na ponta dos dedos da minha mãe. A lamparina a azeite que era a única fonte de luz numa casa onde viviam seis pessoas. Um pequeno armário expõe com frieza museológica os pertences íntimos do meu bisavô – um relógio de bolso (que ainda funciona), um garrafinha minúscula com água-de-colónia (que ainda perfuma) um canivete enferrujado (que não abre) e um par de óculos (com apenas uma lente).

Ando pelo corredor escuro que percorre a sala, a cozinha e os quartos. Toda a casa acumula em colecções dispersas os objectos dessa vida agreste: atiçador de brasas, canetas de tinta permanente, cartões-postal das colónias, gravuras religiosas e souvenires daqueles que fugiam para a França. Sou obrigado a desviar a minha cabeça para não magoar as pequenas andorinhas brancas de porcelana suspensas no ar. No final da tarde, sem os óculos, olho para elas, para o seu movimento delicado que dança em ciranda com o vento e com as cortinas, e imagino-as vivas, a voar em órbitas singelas. Entro nos quartos, agora vazios, e vejo as camas que ainda hoje são arrumadas com lençóis limpos todas as semanas. Sou obrigado a baixar novamente a cabeça. As molduras das portas são baixas, como eram as pessoas que ali dormiam.

Agora, no presente, olho à minha volta, para as caras que povoam a mesa da sala de jantar na casa de uma amiga. Conversa-se, pela quarta ou pela vigésima vez, sobre os méritos e os deméritos do novo iPhone. Sei o que quero dizer: não vejo nenhum melhoramento significativo entre o Nokia 3310 de 2002 e o iPhone 6 de 2014. Ambos são usados exactamente com o mesmo fim – comunicar através de palavras (e para assegurar as mães de que continuamos vivos e bem alimentados). O mundo não mudou entre um teclado com botões e um ecrã táctil. Mas nada faço; calo-me e ouço.

A experiência passada ensinou-me que estas intervenções são mal recebidas (até mesmo agora, relendo aquelas palavras, reprovo a minha pretensiosidade nostálgica), mas não consigo evitar que elas surjam na minha cabeça. Eu sou o que sou e não há nada a fazer. Não consigo evitá-lo - odiar aquela conversa, odiar os móveis da IKEA onde nos sentamos, odiar o apresentador eufórico que promete dinheiro na televisão ligada (para fazer ruído de fundo, não é?) durante o jantar. Não consigo evitar tudo isto e não consigo deixar de me interrogar: a vida do passado era difícil e por vezes cruel, mas pelo menos não duvidavam se aquilo que chamamos de cultura e inovação não são apenas fogos-de-artifício que explodem para nos distrair enquanto mãos nos separam de tudo que faz de nós humanos. E o pior vem depois. O pior é pensar - ao deparar-me com a última ronda de publicação de fotos privadas de celebridades - que estamos a abandonar, muito entusiasmados, o maravilhoso primitivismo animal, para abraçarmos, como uma turba alucinada, os enfeites brilhantes da masturbação digital.

Sei que a defesa do passado é uma causa perdida. A nostalgia não passa de uma ilusão delicodoce. Sei que não possuo argumentos fortes. O uso básico da razão é suficiente para retirar a todas as palavras que escrevi a massa que as sustenta. Este é um caso emotivo. Eu penso o que penso, sinto o que sinto e sou o que sou. A razão diz-me que caminhamos em direcção a um ideal incerto de progresso e que, como tudo, este tem benefícios e malefícios. Mas não consigo deixar de sentir que estamos a caminhar de mãos dadas em direcção a um precipício. Com medo das emoções, contentamo-nos com o alívio proporcionado por sensações fugazes. Aterrorizados pelas possibilidades do silêncio, aceitamos um entorpecimento gratuito. O mundo já não gira: ele pisca, vibra e recebe wi-fi. Mas a verdade continua a mesma: hoje, como há dez mil anos, quando abandonamos o significado, a razão engole tudo. Os antigos sofriam e não sorriam nas fotos, mas pelo menos, durante o jantar, não tinham que testemunhar isto: os sorrisos ensaiados das caras obcecadas em gravar obsessivamente o quotidiano em fotos e vídeos. Desprezamos o passado. Idolatramos o futuro. O presente desaparece, perdido algures entre os terabytes dos discos rígidos, pens e clouds.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

O Fascismo da Pró-Actividade


"Can you believe it? Fifty miles from McDonald's. I didn't think there was anywhere in the world that was fifty miles from McDonald's." - Neil Gaiman

Nos meus piores momentos, admito, não tenho uma opinião positiva sobre a humanidade. Não é uma perspectiva detentora de raridade exótica. Os prazeres da misantropia provavelmente existem desde que dois homens decidiram partilhar a mesma caverna. O reconhecimento do inferno alheio é algo que qualquer pessoa, seja por dez minutos ou por dez anos, já sentiu. Não é necessário ir longe. Basta ligar qualquer televisão ou tentar discutir qualquer assunto político e perceber que, na sua larga maioria, os seres humanos não passam de algoritmos glorificados, programas que respondem de uma maneira tristemente previsível face à presença de certos estímulos.

Apenas por diversão, façam o seguinte. Defendam o desmatamento da Amazónia. Tentem argumentar que a ajuda externa destruiu a economia do continente africano. Afirmem que a aritmética garante que o corte de pensões é inevitável. Declarem que o Holocausto causou menos dor ao mundo do que qualquer álbum dos U2. Aquilo que responderão será o seguinte: a Amazónia é um património inviolável, mandar dinheiro para África é bom, cortar pensões a velhinhos é cruel e os U2 são o maior fenómeno musical do século XX.

Leio anúncios de emprego. O desespero. A tragédia. O horror. As minhas mãos ganham vida própria e insistem em tentar tapar os meus olhos. É um esforço inútil. Através das frestas entre os dedos, vejo que as minhas hipóteses de sobrevivência neste mundo moderno são ténues. Afinal de contas, querem pessoas com “cinco anos de experiência”, “fluência em alemão e francês”, “facilidade de comunicação”, “boa apresentação”, “espírito empreendedor”, “determinação”, “capacidade de liderança” e “espírito de equipa”. São todas exigências razoáveis. Aquilo que destrói a minha vontade de viver e que me impele a saltar para o fundo do precipício mais próximo é a “pró-actividade”, um atributo que, garantidamente, nove em cada dez empregadores não saberão definir.

Selecciono os anúncios de emprego. Vou às entrevistas. Na recepção estão algumas dezenas de pessoas da minha idade, vestidas com o seu melhor fato-de-ir-à-missa, a variarem a sua atenção entre os telemóveis silenciosos e os quadros pendurados na parede, para onde os seus olhos apontam com a incerteza de um passageiro desesperado por um lugar no último bote salva-vidas. Chega a minha vez. Entro na sala. Três homens de meia-idade estão sentados numa mesa em disposição paralela de júri. Parecem entediados. Sento-me na cadeira vazia. As perguntas de rotina aparecem. Pedem-me para descrever o meu percurso académico e profissional. Pedem-me para enumerar as razões que fazem com que eu seja o “candidato ideal” para esta vaga. Perguntam-me por que razão sou superior aos restantes candidatos. Respondo a todas as questões. Sorrio. Rio das pequenas piadas que contam. Resisto ao impulso de coçar o nariz. Mantenho a compostura. Perguntam-me se sou “pró-activo”. Perco a compostura.

Não, digo eu, não sou pró-activo. Também não sou um sociopata com superpoderes, que é aquilo que o vosso anúncio parece descrever. Não tenho a capacidade de prever o futuro. Não sei antecipar as dificuldades. Sou preguiçoso, indiferente e indisciplinado. Se me contratarem, vou passar o dia a navegar a Internet e a fingir que trabalho. Vou roubar cápsulas de café da máquina Nespresso que está na recepção. Tendo em conta o salário miserável que oferecem, até vou roubar rolos de papel-higiénico. Nem sequer tenho a certeza do nome desta empresa. Aliás, já me esqueci dos vossos nomes. Em certos dias, quando vier para o trabalho completamente bêbado, nem me lembrarei do meu próprio nome. Não sou motivado. Estou aqui apenas a contar os minutos até me qualificar para receber o subsídio de desemprego. Não trabalho bem em equipa. Não, não vou “dar tudo pela empresa”. Vocês fazem publicidade digital para pequenas empresas. Pelo amor de deus, não estamos nas trincheiras de Flandres. Não é preciso levar isto tão a sério. E, já agora, meus senhores, peço desculpa, mas eu aconselharia a esta empresa um sério investimento em rebuçados de mentol. Sem ofensa, mas os vossos hálitos cheiram a merda. Já fizeram todas as perguntas? Posso sair? Meus senhores, muito boa tarde. Cumprimentos às famílias.

Acordo. Estava a fantasiar. Percebo que passei demasiado tempo a fingir que estava a pensar numa resposta para a pergunta. Considera-se pró-activo, perguntam eles. Sim, respondo eu, sou “pró-activo”. Não somos todos?

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Roger

Roger Federer é um tipo simples. A esposa está esteticamente distante das super-modelos que normalmente abrilhantam as bancadas dos jogos dos cônjuges e namorados (ver, a título de exemplo, a mulher mais deslumbrante do mundo). Juntos têm dois pares de gémeos e é impossível, ao ver aquela família, não imaginar um lar agradável e harmonioso. O jogo do suíço é tão natural e relaxado quanto parece ser toda a sua vida. Como desportista, conquistou tudo; ao juntar a sua genuinidade humana, conquistou uma legião mundial de fãs. Roger é um homem inteligente, um gentleman cordato e ajuizado. Tem o ar confiante, discreto e ponderado que faz toda a gente afirmar sem reservas que lhe confiaria os filhos só de olhar para ele. No court e na rua, demonstra uma invejável compostura (excepção feita a estes deliciosos bloopers numa entrevista a Pedro Pinto, e estes, ainda mais irresistíveis, com Nadal, numa publicidade a um jogo de caridade). E, por referir o espanhol, os seus duelos históricos com Rafa são tão épicos que até os leigos do ténis apreciavam a rivalidade no seu apogeu, naquele contraste de estilos tão gritante.

Wimbledon é o meu torneio predilecto. Não sei dizer se é a graciosidade estética do verde da relva, se os tradicionais equipamentos brancos, se o ritmo frenético de jogo. É onde o ténis atinge o seu ponto mais legítimo. Foi para ser jogado em Wimbledon que o jogo foi inventado.

Djokovic, o seu oponente na final de ontem, é um adversário à parte. Tem uma regularidade e firmeza inéditas no circuito. Em qualquer que seja o terreno, qualquer que seja o adversário, a vitória de Djokovic é altamente expectável. Isso é ao mesmo tempo admirável e fastidioso. O seu jogo parece previsível, monótono, e no entanto é de uma eficiência notável; escolhe sempre o movimento certo no momento certo, e combina-o com execuções técnicas irrepreensíveis. Djokovic nunca perde o ponto, é preciso ser o adversário a ganhá-lo.

Federer não é desses aborrecimentos: limitar-se a responder é de uma simplicidade ultrajante. Roger quer fantasia, quer vertigem, quer tornar o impossível realizável à frente dos nossos incrédulos olhos. A recuperação do quarto set é um triunfo psicológico brutal, ao trepar o iceberg que é Djokovic com 5 jogos consecutivos de concentração, crença, perseverança e mestria. No quinto set, cedeu o jogo de serviço que não podia ceder. Não é assim que terminam os filmes.

Depois do pior ano da carreira, sem sequer atingir uma final de Grand Slam, Federer deixava-nos tristes. Nada temos a ver com o assunto, mas a queda de um génio põe-nos sempre comovidos. Esta final de Wimbledon era, para Roger no seu auge, o mínimo exigível. Para um Federer questionado pelas exibições medíocres, repleta de erros e de uma excruciante falta de confiança, foi mostrar que pode-se perder a forma, podem-se perder encontros, mas a capacidade de nos fazer contemplar o seu jogo com a admiração apenas destinada aos grandes artistas é algo que irá perdurar nos courts, e no nosso imaginário.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Crónica de uma Morte Anunciada

Escrevo-vos melancólico, desiludido por não ter conseguido abstrair-me da esperança supérflua que me acossou nos últimos dias e que tentei afugentar com o pragmatismo das probabilidades. Falo-vos com Bach nos ouvidos, ainda tonto das cervejas que tive de ir ingerindo para afogar a angústia da passagem dos minutos. Na obra The Well-Tempered Clavier, Bach apresenta-nos um conjunto de peças em todos os 24 tons, maiores e menores. É uma viagem entre sensações tão distintas que nos põe atordoados e indecisos, entre a palpitação do sofrimento e o vazio desconfortável da sua ausência.

Os contrastes dicotómicos são o que dá o especial sabor da vida. Não pode haver uma classificação categórica de positivo e negativo neste pólos. É a viagem entre um e outro que nos embala no conforto. É o facto de perdermos que nos faz festejar as vitórias. Acaba por calhar a todos e desta vez fomos nós. Não há, no entanto, que ignorar que isto não é sorteio, e que cada um constrói a sua sorte. E a selecção menosprezou de tal forma aquilo de que era responsável que fica a lamentar o insucesso com os factores rotineiros, entre arbitragens e fado, aos quais acrescentou o insustentável clima tropical.

As razões do nosso fracasso são explícitas, e é o facto de estarem à frente do nosso nariz que torna tão frustrante não terem sido atempadamente remendadas. Apresentámo-nos no Brasil com um grupo que só ao mais esperançoso (e/ou ingénuo) português não suscitou o mais profundo cepticismo. Entre jogadores inerentemente inúteis, entre outros cujas temporadas foram fustigadas por problemas físicos constantes, atenuados por meia-dúzia em boa forma física e futebolística, que acabaram por assistir sentados aos restantes a (tentar) jogar, haveria pouco espaço para infundadas expectativas.

A preparação roçou o amador, e não me refiro apenas à preparação física, uma questão tão pornográfica que até a a minha mãe conseguiu constatar. Quando Paulo Bento diz que, num clima propício a lesões musculares, nada fazia prever a lesão de um jogador que passou a época a mancar, só pode estar a gozar com a nossa cara, na nossa cara.

Mas o que é verdadeiramente preocupante é a inexistência de estratégia colectiva numa equipa que, para o mal ou para o bem, joga junta há tantos anos, orientada pelo mesmo treinador. Tudo parecia esboçado, improvisado em cima do joelho, ora por iniciativa dos jogadores mais criativos, ora por tentativas desesperadas de avançar no terreno por linhas demasiado tortas para serem viáveis a longo prazo: passes longos, precipitados, aleatórios, impacientes. Admito que não tenha faltado coração, mas não houve pernas, nem uma cabeça colectiva. Essa imaginação conjunta não é milagrosa, é fruto do trabalho de um seleccionador que terá gasto demasiado do seu tempo livre a deliciar-se e a ignorar a regressão futebolística dos seus pupilos predilectos em vez de buscar alternativas individuais e colectivas ao seu pré-definido plantel de escolhas. A coragem elogiada ao nosso treinador é precisamente o oposto: é cobardia, medo da mudança, de renovar uma selecção claramente necessitada dessa reestruturação. Nunca irei entender a tolerância dos meios de comunicação com as opções incompetentes deste treinador, que continua a apostar em jogadores que vão acumulando desempenhos desastrosos: Meireles, Veloso, Postiga, o indescritível João Pereira... Não pretendo criticar a quente, mas estes já não são jogadores com qualidade para jogar numa selecção de topo, mas continuam porque são todos uma grande família, e voltarão mais cedo do Brasil com um ambiente de grande irmandade.

Repito: hoje sofremos tanto porque um dia festejámos. Mas o que me tira o sono, como todos os problemas da vida, não é a preocupação do presente, mas a falta de solução de futuro. Não porque a geração que se avizinha, não tendo por certo um Cristiano Ronaldo para a sustentar e credibilizar, não tenha potencial para se revelar bem superior àquela que acaba estendida e suada num relvado brasileiro; mas porque os problemas que levaram ao insucesso da selecção são estruturais e essa estrutura ameaça seriamente manter-se incorrigível. Esperemos que a aprendizagem, o que distingue o inteligente confiante do burro teimoso, tenha servido para que o nosso descalabro do Brasil continue a ser a excepção.

domingo, 22 de junho de 2014

O Desespero e o Plano Nacional de Leitura


“The cradle rocks above an abyss, and common sense tells us that our existence is but a brief crack of light between two eternities of darkness.” – Vladimir Nabokov

A proposição de que os seres humanos lêem cada vez menos baseia-se demasiadas vezes nos encantos traiçoeiros da intuição humana em vez do poder incontornável dos factos. A afirmação é utilizada frequentemente como base de confirmação para o declínio da sociedade ocidental moderna. As mentes mais pessimistas facilmente extraem desse cenário o sopro das trombetas do apocalipse. Mas essa afirmação tem uma fraqueza estrutural: já foi proclamada demasiadas vezes sem que as suas previsões calamitosas se confirmassem. É um adágio tão antigo como a espécie humana: uma geração berra, exasperada, sobre a depravação cataclísmica da geração seguinte.

É demasiado cedo para serem extrapoladas conclusões ambiciosas sobre os efeitos a longo-prazo das mudanças drásticas nos hábitos de leitura na sociedade, mas o que sabemos é que os factos confirmam a tendência geral. Os jornais e as revistas sangram leitores como porcos indefesos no matadouro. Em 1978, oito por cento dos americanos afirmavam não ter lido um livro durante o período de um ano. Em 2014, esse número aumentou para vinte e três por cento. Não me parece absurdo assumir uma tendência análoga na sociedade europeia.

O Fado das Palavras Mortalmente Feridas é chorado com aparente unanimidade. As excepções são os sociólogos de sempre que, entusiasmados com a instantaneidade da cibernética, proclamam uma revolução na leitura. Afinal de contas, dizem eles, lemos mais tweets e posts e legendas e notas de rodapé. Até pode ser verdade que pessoas que nunca pegaram num jornal agora consomem mais notícias em formato escrito graças à conversão da imprensa à Internet. Mas esse facto não invalida a tendência, da mesma forma que a cedência à masturbação por parte de um padre não implica a quebra do voto de castidade.

E isso não vai mudar com uma apologia à leitura que tem demasiados problemas. A alma iluminada que discorre sobre a glória incomparável da leitura de livros utiliza uma atitude de superioridade irritante e ofensiva. Ele, o leitor, um oráculo supremo de sabedoria requintada que lamenta o adensar das trevas da corrupção. O outro, o não-leitor, um poço infinito de ignorância abjecta que trará inadvertidamente a destruição social. Acontece que a superioridade intelectual de alguém que lê livros comparativamente a alguém que prefere a televisão é uma verdade auto-evidente, mas isso não pressupõe uma superioridade moral.

A abordagem pedagógica utilizada pelas instituições públicas também tem deficiências. Esta abordagem utiliza uma mistura perigosa de preceitos científicos com uma atitude romântica. Afirmam que os benefícios da leitura para a cognição são inegáveis. Juram que a ciência até provou que a leitura de romances tem efeitos positivos em termos de inteligência emocional, um atributo essencial para o sucesso no mercado de trabalho. O pacote é finalizado com um conhecido embrulho didáctico: falam dos encantos da imaginação e do prazer das estórias. Esta abordagem nunca terá sucesso. Ninguém gosta de condescendência autoritária. Além disso, nenhuma criança alimentada à base de açúcar alguma vez ficará convencida do charme das ervilhas.

A minha defesa da leitura utilizaria uma abordagem diferente. Não seria uma apologia dos méritos da educação académica e da importância do sucesso laboral. Não seria uma apologia da maravilha imaginativa e dos prazeres do alheamento à realidade. A leitura não é importante apenas porque nos ajuda a viver funcionalmente em sociedade, mas porque a linguagem é a única forma significativa que temos de compreender a realidade. Quanto mais abrangentes forem os hábitos de leitura, quanto mais proficiente for a expressão oral e verbal, maior é a exactidão e a complexidade do significado que as palavras carregam.

Considerem bem a frase de Nabokov. A informação que dela extraímos é simples: a vida é curta. Mas quando pensamos nessa informação, não inferimos nada de extraordinário. É um cliché. É algo que repetimos numa tentativa desesperada de instigar em nós próprios a consciência das suas implicações preocupantes, que nem sempre fazemos as coisas que queremos fazer por não reconhecermos a efemeridade do tempo. Apenas identificamos um facto adquirido representado por uma frase banal que poderia habitar num autocolante promocional, numa tatuagem bêbada nas costas, ou numa t-shirt barata.

Agora, quando lemos a frase brilhante de Nabokov, as implicações dessa informação ganham uma aplicabilidade avassaladora. A frase captura a urgência de viver. Transmite-nos o choque abismal do improvável, a passagem avassaladora do tempo, a grandeza titânica do universo e a nossa insignificância gloriosa. O cliché surge e é desfeito pelo vento, como uma declaração de amor adolescente inscrita na areia. A frase enregela o estômago, torce o coração e urge ao cérebro que materialize o desespero em acções que reflictam os nossos desejos mais íntimos. O cliché transforma-nos em escravos ignorantes da gratificação instantânea. A frase lembra-nos que vivemos num berço a baloiçar sobre o abismo, mas que não devemos temer as profundezas e a escuridão.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Cuadrado

É um fenómeno recorrente que certos indivíduos deixem de apreciar tanto um artista musical quando este passa a ser mais reconhecido pela generalidade do público. Não sofrendo desta síndrome, admito que quem a tenha valorize o egoísmo de estar sozinho na admiração dessa arte, e que essa sensação de descoberta e de isolamento contribua para que o artista seja ainda mais estimado. 

Existe também uma indefinida e frustrante sensação de impotência quando alguma manifestação artística que nós achamos de insuspeita e inatacável qualidade não provoca nos outros o entusiasmo que nós acharíamos adequado. Acontece com música, com filmes, com séries, com livros, mas também (e talvez sobretudo pela paixão que acarreta) no futebol.

Cuadrado é um caso de estudo neste tipo de fenómeno. Felizmente partilho com um amigo a paixão pelo jogo do colombiano da Fiorentina, e essa partilha foi fulcral para que eu não duvidasse da minha sanidade mental, pois durante muito tempo sentia-me só da apreciação dos seus predicados futebolísticos. Nos monótonos jogos da Série A de Domingo à tarde, Cuadrado é um oásis de mestria, de vigor, de felicidade, de futebol em estado puro. Eu e esse meu amigo dizê-mo-lo há muito: está aqui uma pérola, um dos jogadores mais talentosos do mundo. É estupendamente veloz, tem agilidade, jogo de cintura, destreza, vivacidade. Mas, mais do que isso, é um atleta surpreendentemente astuto. Com o seu género reguila e desfraldado, tinha tudo para ser um jogador egoísta e com poucas noções colectivas. Ele, no entanto, desengana preconceitos; a sua imprevisibilidade é a sua inteligência, a sua perspicaz visão de jogo. É abnegado, é filantropo; não descansa à sombra do talento, sabe que só triunfará com a equipa. São virtudes raras num jogador da sua posição e do seu estilo. Se Deus tivesse uma forma geométrica, era Cuadrado.

Agora que brilha no maior palco de todos, é normal que o mundo o reconheça. Estou felicíssimo por ele, porque mais do que talento, que é ingénito, Cuadrado teve a humildade de aprender a usá-lo. Merece que a carreira dele seja impulsionada por um Mundial fenomenal que ameaça fazer. Mas este meu contentamento não me impedirá, depois de anos a pregar as indubitáveis virtudes deste génio, de correr à cabeçada quem agora, depois da Copa, se dirigir a mim e perguntar "Conheces o Cuadrado, da Colômbia? O tipo joga muito".

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Insensatez


“Longa é a arte, tão breve a vida” - António Carlos Jobim

António Carlos Jobim e Vinícius de Moraes formaram uma das parcerias musicais mais brilhantes de toda a história. As canções que surgiram nas suas cordas vocais e nos seus dedos definiram uma era. Ambos são ícones da cultura brasileira. Ambos tiveram vidas pessoais caóticas. Ambos tiveram mortes que denunciaram a natureza nociva dos seus hábitos. A história deles é a história da humanidade – grandes homens que são, em tantas ocasiões, pessoas terríveis; homens bons que são, em tantas ocasiões, pessoas infelizes; e homens felizes que são, em tantas ocasiões, pessoas insatisfeitas.

Eu comecei a ouvir a música de Tom Jobim em 1996, numa altura em que os seus pulmões geniais já não desfrutavam dos prazeres do oxigénio. A notícia da sua morte só chegou em 1997, três anos depois da passagem do grande maestro para o Outro Lado. António Carlos Jobim morreu aos sessenta e sete anos, em 1994, num país estrangeiro, de paragem cardíaca, devido aos constrangimentos dolorosos do cancro, depois de uma vida onde assegurou o seu lugar no panteão dos imortais e depois da existência típica de relações pessoais instáveis e alcoolismo contínuo. Quando o seu maior amigo e parceiro, Vinícius de Moraes, morreu em 1980, em circunstâncias semelhantes, Tom Jobim não foi ao funeral. Mais tarde afirmaria: “Foi a morte de Vinícius que me deu a convicção de que não somos imortais”.

A minha primeira concepção da morte era a de um assassinato. As parcas explicações proporcionadas por familiares tinham-me deixado com a impressão macabra de que Jesus Cristo matava pessoas e levava-as para o céu. A ideia não era tão soturna quanto a descrição dá a entender num primeiro impacto. Eu não via qualquer malícia no acto. Não associava o acto a violência, mas apenas a uma injustiça cósmica que me fazia desconfiar das estátuas ensanguentadas do Rei dos Judeus. Ainda hoje aquelas figuras de gesso sombrias, com os seus olhos suplicantes, abdominais perfeitos e braços musculados, parecem estar prestes a ganhar vida.

A minha segunda concepção da morte veio com o primeiro funeral. Os meus seis anos impossibilitavam qualquer compreensão abrangente das funcionalidades práticas do fenómeno mortuário, mas o desespero abismal que ficava nos vivos, contrastado com a permanência estática das pedras tumulares e com a rigidez fria do cadáver, começava a incrustar na minha cabeça as noções confusas da tragédia da irreconciliabilidade. Eu sabia que havia aspectos da morte que podiam ser reconhecidos e explicados, mas que a sua mera existência nunca seria aceite. As semanas que seguiram o funeral foram espaços de tempo drenados da alegria quotidiana que define a vida das crianças em famílias felizes, e eu nunca mais voltei a pensar na vida como um circo diário de gratificação.

Dezassete anos depois, dia sim, dia não, passo pela Basílica da Estrela, vejo mais um carro funerário e, resignado, penso: lá vai mais um pobre coitado (ou cabrão sortudo, dependendo das crenças que mantinha e das particularidades da vida que deixou para trás). Raramente sei quem é o defunto da ocasião. Às vezes morre uma figura de relevo, um antigo Secretário de Estado ou um poeta menor, e o Diário de Notícias comunica que o funeral será ali. Noutras ocasiões morre um desgraçado qualquer na Segunda Circular ou na CREL, num desses lugares que povoam o imaginário do relatório do trânsito matinal. Uma pequena multidão negra costuma formar-se junto à entrada da Basílica e, nos dias de pouco trânsito, é possível ouvir as notas desvanecidas das melodias fúnebres tocadas no órgão.

Agora a morte tem várias concepções. É um fenómeno biológico, uma eventualidade absoluta e uma desgraça inescapável. É um monstro debaixo da cama, uma notícia irrelevante, o desconhecido na escuridão e um risco a ser medido. Ela vem em várias formas - bombas que caem, balas que voam, ossos que partem, carros que batem, aviões que caem, órgãos que falham e tecidos que rasgam. Eu sei todas essas coisas sobre a morte, mas aquilo que eu não sei é em que medida a vida – uma vida bem-vivida – é o resultado do desfrutar efémero da actualidade ou da luta ingrata pela eternidade. Interrogo-me se o louvor derradeiro da vida dos nossos antepassados caçadores-colectores está no prazer ténue que extraíram do saciar primitivo de vontades, ou se está imortalidade dos bisontes pintados nas paredes das cavernas.

Todos os homens vivem segundo os preceitos da moralidade, da ambição e da felicidade. Mas a tentativa de combinar as três dimensões ainda parece ser o reduto de super-homens. Eu quero ser bom, grande e feliz, mas as acções conducentes a cada um destes atributos entram invariavelmente em conflito. É uma batalha com três frentes em que o avanço numa delas significa o recuo automático em outras. Aquilo que nos faz felizes nem sempre é aquilo que nos traz significado. Em demasiadas ocasiões, aquilo que é necessário para a ambição não é aquilo que é certo.

Essa tentativa de combinar as três dimensões pode ser a definição mais aproximada daquilo que significa ser adulto. Provavelmente estas dúvidas são apenas o resultado da tendência humana de pensar que uma alternativa teria sido sempre superior. Haverá sempre uma incerteza intrínseca na concretização de escolhas. Os acordes da obra de Tom Jobim ajudam-me a reconciliar a ideia de que homens nascem e homens morrem e eu nunca irei compreender as razões. Mas eu tenho a certeza que, independentemente das minhas escolhas, nunca irei ser aquela pessoa que, quando confrontada com a morte, decide não ir ao funeral.

domingo, 15 de junho de 2014

Febril

O recente livro Conservadorismo, do João Pereira Coutinho, tem uma falha gravíssima. Entre o tradicionalismo burkeano e o thatcherismo, o autor esquece-se de referir uma matriz conservadora de grande relevo académico: o Bentismo. Esta corrente, que deu os seus primeiros passos com Scolari, mas que atingiu a sua dimensão máxima com Paulo Bento e adquiriu daí o seu nome, é mais do que uma atitude de conservação de valores. É uma total estagnação e uma indiferença a todos os factores externos às suas convicções e preconceitos.

A não convocação do Quaresma foi unanimemente a decisão mais polémica, sobretudo em detrimento de três jogadores duvidosos: um que não jogou quase toda a temporada por grave lesão, um jovem de qualidade mas sem estaleca para estas andanças e um parceiro de equipa do Harry Potter que veio de uma época degradante. Nem as supostas atitudes de insurreição podem justificar: Quaresma está claramente mais maduro e assim se iria apresentar num Mundial que fez tudo para participar; e não consigo não me lembrar de um Paulo Bento tresloucado à volta do árbitro do infame jogo com a França em 2000.

Abstive-me de comentar publicamente a convocatória após o seu anúncio por achar difícil encontrar palavras para qualificar o meu estado de alma, algures entre a resignação de que esta geração está perto do declínio e a raiva de não haver quem a renove. Está repleta de jogadores que atravessaram problemas físicos, jogadores envelhecidos e longe do seu auge. Tem um banco que qualifico de imprestável, para não ser demasiado cruel. É custoso acreditar logicamente nas chances deste grupo.

No entanto, a febre do mundial traz uma irracionalidade que é simultaneamente uma bênção e uma maldição. Amanhã vão entrar os do costume e é pelos do costume que eu irei sofrer. Infelizmente, creio que bastante.


(Tive de ver o que valia a Croácia do meio-campo de sonho contra o Brasil anfitrião, o bastante entretido futebol dos mexicanos, a laranja mecânica a cilindrar uma das melhores selecções da história com duas lendas a um nível abissal, o Chile a entrar fortíssimo com a classe de Valdívia mas a não valer para o susto por culpa própria, uma Colômbia interessantíssima que com o Radamel poderia assustar ainda mais, a Costa Rica a chocar o mundo humilhando um Uruguai privado do seu maior astro, um extraordinário Inglaterra-Itália recheado de craques, o simpático Japão a sucumbir ao físico dos elefantes, a Suíça a ganhar dramaticamente com o herói Behrami em esplendor e o Palacios a ajudar a lógica a imperar contra uma França que pode dar muito mais. Hoje ainda aí vem o Messi e amanhã entram as quinas em campo. E querem que um gajo estude para os exames do mestrado.)

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Rotos e Nus

Apesar do disfarce, toda a gente teve consciência de que alguma coisa teria de mudar, que o rumo que o partido levava até então iria redundar numa escassa vitória nas legislativas, embaraçosa para o partido, perigosa para a governabilidade. Não foi, como Assis logrou dizer sem denunciar sequer um leve sorriso, uma vitória de Seguro; foi, sim, uma vitória apesar de Seguro. A contradição entre o dia das eleições, em que o PS festejava efusivamente uma vitória curta contra o grupo de governantes mais contestado da democracia e o entusiasmo com que abraçaram a expectativa de Costa avançar para a liderança foi deliciosa.

Ninguém sai limpo deste processo. Por se ter seguido a uma vitória, ainda que escassa, quando houve um timing mais adequado anteriormente para avançar, António Costa consporcou-se no processo de candidatura, perdendo um pouco a aura sebastianista que vinha alimentando. Seguro não ganhará, mas sonha em reforçar a sua liderança partidária, num processo eleitoral confuso e inadequado saído do seu brilhante encéfalo, e com a argúcia dos grandes estadistas, preparar-se-á para ser um primeiro-ministro sem capacidades e sem poder parlamentar, que seria chacinado pelos seus iludidos eleitores quando estes se apercebessem do obsceno vazio intelectual deste indivíduo alienado.

Enquanto isto, o PSD esfrega as mãos e apresenta uma vergonhosa falta de brio e uma memória tão curta que é só não choca por já sabermos que na política os escrúpulos são mito:
Juro da dívida dispara com demissão de Portas - 2 de Julho de 2013

terça-feira, 10 de junho de 2014

A Incapacidade da Incompreensão


"Na minha consciência não encontro uma razão para me demitir" - António José Seguro

O milagre da vida é um motivo óbvio de estupefacção. Entre duzentos e seiscentos milhões de espermatozóides são libertados numa única ejaculação, dos quais, na cruel maioria dos casos, apenas um atingirá o objectivo glorioso da fusão sagrada com o óvulo. As probabilidades que são extraídas destes números devem chocar as sensibilidades daqueles que se julgam azarados e provocar lampejos eufóricos de comemoração em qualquer ser humano racional.

No entanto, nenhuma outra manifestação miraculosa da vida causa tanta estupefacção quanto a existência de António José Seguro. Esse espanto não advém das probabilidades perturbantes que envolvem gâmetas e gónadas, mas da incapacidade em compreender como é que, depois de consumada a sua existência, esta conseguiu chegar tão longe. O secretário-geral socialista tem o aspecto de alguém que morreria tragicamente num evento absurdo, alguém que é assolado diariamente por infortúnios e desgraças, alguém que tropeça nas bermas acidentadas, escorrega nos átrios molhados, tranca o carro com as chaves lá dentro, deixa a torneira aberta, atropela o gato do vizinho, pisa em cocó de cão e passa uma tarde inteira a perseguir uma nota de cinco euros a ser puxada por um anzol.

Não é nada de novo. A banalidade perversa na classe política é um facto estabelecido da vida portuguesa. É apenas o reflexo infeliz das nossas exigências. É por essa mesma razão que quando um agente político chama a atenção pela sua mediocridade, ficamos embasbacados como alguém que acabou de encontrar uma agulha enferrujada num vasto abismo de sucata. Nesse mundo as trajetórias são curtas e inglórias. A admiração é invariavelmente substituída pelo desprezo. As ascensões meteóricas são acompanhadas de quedas aparatosas. Aquilo que normalmente ocorre é que o agente da mediocridade reconhece as suas limitações e aceita as vicissitudes levianas da carreira política quando a luz do holofote fica demasiado brilhante e começa a queimar.

Mas o líder socialista é alguém que vive eternamente insatisfeito. Ele não se limita a desafiar as probabilidades incertas da corrida da fertilização. Ele é alguém que passou décadas a rastejar pelos canos de esgoto do aparelho partidário com o objectivo de ser coroado como a ratazana entre ratazanas. Uma combinação improvável de eventos levou a que António José Seguro fosse eleito para o cargo de Primeiro-Ministro-à-Espera. Depois de uma prestação onde, ao contrário de José Sócrates, não conseguiu dissimular a sua mediocridade, o secretário-geral socialista tem sido reconhecido universalmente como uma fraude ambulante. Mas como um jogador embriagado pelo rodopio dos dados, ele não resistiu ao encanto místico da sorte e decidiu bater o pé, cruzar os braços, fazer birra e acorrentar-se ao trono, à espera que o destino providencie uma combinação mais feliz de cartas.

A razão pela qual chegamos aqui é muito simples. Na nossa cultura a honestidade é considerada falta de educação. Não me refiro àquela honestidade virtuosa que transborda da alma das legiões de homens que juram escolher sempre o certo em detrimento do errado. Refiro-me à honestidade corriqueira, aquela que diz a um amigo que a sua poesia é horrível, que diz a um colega que o seu hálito cheira mal e que revela que, por mais que tentem, por maior que seja a sua perseverança, certas pessoas simplesmente não possuem a capacidade de realizar grandes actos. É por essa razão que, sem fazer qualquer reivindicação de “frontalidade”, “honestidade” ou “coragem” (palavras irreparavelmente profanadas pelo discurso político nacional), inscrevo nestas páginas virtuais, sem quaisquer ferramentas estilísticas, as razões óbvias para o insucesso deste miserável traste carreirista.

Um político necessita de carisma. Esse carisma é um modo de estar confiante que transmite segurança. Quando o político não dispõe desse carisma, ele deve ser excepcional num âmbito diferente. Ele deve ser conhecido pelo seu pragmatismo implacável, pela sua habilidade de conciliação, pela sua coragem inabalável, ou pela sua inteligência superior. Ele deve ter um percurso académico e profissional que forneça garantias de competência. António José Seguro não possui nenhum desses atributos. Ele fica visivelmente nervoso durante intervenções públicas. Esse nervosismo causa um desconforto que transmite insegurança. Ele não é inteligente. O seu discurso superficial é desprovido de qualquer implicação prática. O seu currículo académico e profissional é duvidoso. O seu percurso é o testemunho de alguém que passou uma vida inteira encostado aos facilitismos da carreira partidária.

E o pior de tudo é que António José Seguro é ingénuo. É a tragédia dos estúpidos e dos ignorantes: são incapazes de compreender a sua estupidez e ignorância. A sua ingenuidade leva-o a considerar este imbróglio noveleiro como uma injustiça causada pela ambição desmedida de António Costa. Na realidade, isto é apenas o inevitável. Este mundo pode ser imperfeito, mas tem a capacidade de compreender quando o partidarismo foi longe demais e quando é necessário libertar os anticorpos para erradicar um vírus que, apesar de estúpido, é potencialmente letal. António José Seguro declara-se incapaz de encontrar razões para se demitir. Se ele quisesse realmente encontrar razões, bastaria olhar-se ao espelho. Se ele procurar na sua consciência, não encontrará nada. Por definição, o vácuo é exactamente isso: nada.

Egrégios

“Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e dói não sei porquê.”

                                Luís Vaz de Camões

Hoje estava um óptimo dia para sair de casa, mas decidi-me, por ociosidade, por manter-me fiel ao pijama. Não foi uma decisão per si, mais do que a consequência de uma embaraçosa apatia. Os feriados são sempre aguardados por mim com grande expectativa e entusiasmo, e acabam sempre por defraudar. Revelam-se deprimentes e melancólicos. Muitos são os dias não feriados em que cumpro esta rotina de acordar tarde e deixar as horas passar apenas com o que o meu lar tem para oferecer. Em dias feriados, parece inexplicavelmente insuficiente e, no entanto, sair de casa não se afigura um melhor plano. Lá fora paira uma taciturnidade pouco convidativa, pelo que não parece estar mais divertido do que aqui.

Quando o feriado serve para festejar a Portugalidade, é inevitável este desânimo ser ainda mais acentuado. Senti-lo hoje, porém, é uma homenagem ao pathos lusitano. Celebro este dia comendo um reconfortante caldo verde, assistindo aos Capitães de Abril e condoendo-me ao som da Amália. Não o faço por masoquismo, faço-o porque amo este incorrigível país e não quero desrespeitar, no seu dia, o seu hereditário sofrimento.

Somos o povo que menos razões e, simultaneamente, mais razões tem para carpir. Não temos conflitos armados, regiões separatistas, tensões étnicas, catástrofes naturais de grande dimensão, climas agrestes, perigosos animais selvagens, doenças epidémicas, falta de liberdades ou crimalidade relevante. Conseguimos, no entanto, estragar estas benesses com ressabianço combinado com uma eterna insatisfação com o estado das coisas, com o sistema, com esta merda que é sempre a mesma, sem nos apercebermos que estas míticas entidades mais não são do que o resultado inevitável dos nossos vícios colectivos.

Camões, que detém um terço do passe deste feriado, engrandeceu um povo que com arrojo tudo conquistou, e por imprudência tudo perdeu. Quinhentos anos depois, temos uma classe política infantil, sindicalistas ignorantes, uma justiça disparatada, uma burocracia insustentável e um seleccionador que não leva o Quaresma ao Mundial. Está visto que é sina.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Anticonstitucionalissimamente

Não tenho o menor know-how jurídico, mas consigo constatar que deixou de se discutir política para se discutir legalidades. Na legislatura de Sócrates, era Cavaco quem fazia sentir o poder do seu veto em questões em que a legitimidade da sua intervenção é duvidosa, como esta ou esta, deixando passar em claro medidas ruinosas para a economia; nesta parece ser o Tribunal Constitucional a travar os cortes avulsos deste precipitado governo. A função pública, protegida que está pelo sistema e pela própria jurisprudência, vai acabar por cair desamparada, em vez de descer paulatinamente as escadas imperativas da reforma.

A incompetência deste Executivo parece-me, por isso, evidente. Faz-me confusão, isso sim, é que a oposição se preocupe mais em verificar a constitucionalidade de uma decisão governativa em vez de a analisar politicamente e, em caso de discordância, explicar o porquê e apresentar soluções. Quando uma proposta é rejeitada indeliberadamente, ainda para mais baseada em princípios ambíguos, já não se discute se uma solução é viável e positiva politicamente e passa-se a discutir se esta vai contra os dogmas inquestionáveis. A Constituição, como já o disse em tempos, é encarada com uma deidade que não merece. Não a Constituição enquanto entidade, mas sim a nossa em específico, escandalosamente necessitada de uma legítima actualização.

Dito isto, tenho de observar que as figuras a que o Governo se está a prestar desde o acórdão são lamentáveis. Esta incursão pública contra o TC e seus elementos é ir contra a separação de poderes que tanto evocam. É eticamente reprovável e politicamente pouco inteligente. Entendo que o governo se sinta de mãos atadas, num contexto excepcional, ao ser limitado por interpretações judiciais que dificilmente não têm preconceito político. Mas a verdade também é que o TC, por linhas muito tortas, já travou algumas autênticas irreflexões do Executivo. Se a emenda acabará por ser pior do que o soneto, o tempo o dirá.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Ódio Intestinal

“Na gíria popular o futebol português funciona como aquele fenómeno fisiológico conhecido como ânus, onde temos duas nádegas que se enfrentam uma frente à outra, imponentes, não saindo de lá, dizendo uma à outra eu estou aqui e sou melhor que tu." - Bruno de Carvalho

Um aviso: esta pequena crónica com que vos presenteio é exclusivamente um ataque pessoal e odiento à figura de Bruno de Carvalho, mas longe de mim querer com isto atacar a substância da analogia que engendrou. Muita coisa se passará no futebol português; faço por ignorar o espectáculo de bastidores, concentrando-me na actividade artística, essa sim relevante. Para os dirigentes, o jogo é um meio, não um fim. Muitos deles nem percebem muito daquilo, a praia deles é mais o negócio, por cima ou por baixo da mesa. São paradigmáticos dos hábitos lusitanos corruptos e de compadrio.  É, portanto, pertinente comparar este putrefacto ambiente à zona glútea.

Mas Bruno de Carvalho conseguiria, com o seu misto de impertinência e sobranceria, estragar a mais engenhosa das metáforas. O seu semblante presunçoso e o seu humor pseudo-sarcástico sugam toda a eventual validade das suas infelizes declarações.

Poderão sentir um ligeiro rancor quando me refiro ao presidente do Sporting. Devo referir que nada tem a ver com o facto de os leões terem ficado este ano, pela primeira vez desde que me nasceu o meu primeiro pêlo nas axilas, à frente do meu Porto. Com ele, foi ódio à primeira vista. Tem um aspecto arrogante, pedante e desdenhoso que me enoja. O timbre escabroso da sua voz é perturbador. Esboça sempre um sorriso desaforado que inspira violência. É um narciso egocêntrico, que nas vitórias faz questão de festejar com os todos jogadores focados pelas câmaras, esbracejar efusivamente, para que não se esqueçam que a vitória também foi dele.

Há todavia um aspecto que me enoja por demais: este seu devaneio quimérico de que ele detém a verdade, um paladino da frontalidade e da coragem, um baluarte inabalável da verdade e da justiça, um Marinho e Pinto dos meandros futebolísticos. Os portugueses adoram estes messias correctores de costumes. Há um problema óbvio nesta genuinidade: corremos o risco de cair em contradições. Declarações com esta, estaesta e sobretudo esta, carregadas de irresponsabilidade, além de mostrarem uma lamentável puerilidade e ignorância, são precisamente o que está de errado com a classe de dirigentes. Casos de violência entre adeptos ou erros gritantes de arbitragem têm, num grande número de ocasiões, origem em atitudes institucionais com estas. Bruno de Carvalho consegue a proeza de agir como as pessoas que critica, ao critica-las.

E se todas estas razões não fossem suficientes para o odiar, ficamos agora a saber mais duas, todas relacionados com o seu aparelho digestivo: Bruno de Carvalho acha que o ânus é um fenómeno fisiológico e que as suas nádegas estão em constante disputa sobre qual das duas é a melhor. É caso para o mandar à trampa.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Aurora Dourada

É com prazer que assisto ao ressurgimento de um fenómeno anual de rara beleza: a proliferação, ao primeiro sinal do sol de Verão, de um sem-número de mulheres apetecíveis pelas ruas.

Permitam-me que abra um parágrafo anexo, para que possa fundamentar o adjectivo usado: a língua portuguesa é rica em sinónimos inúteis, mas parca em vocábulos essenciais. A nível sexual, é tão púdica quanto o seu povo. O acto de acasalar tem no grotescamente mecânico "fazer sexo" a sua expressão mais aceite, se não quisermos recorrer ao ultraromântico "fazer amor". Ainda há que "vá para a cama" com alguém mesmo que essa cama seja um quarto-de-banho público, e quem "durma" com alguém mesmo que no final invente uma desculpa para sair e acabe por dormir sozinho. A língua portuguesa não nos permite referirmo-nos ao sexo com a dignidade de não recorrer a palavrões. Neste contexto, surge a dificuldade de definir estas mulheres que surgem com a calidez. Não são necessariamente bonitas, no sentido casto do termo. São aquilo a que os anglo-saxónicos chamam apropriadamente de hot. É sexual, é primitivo, os nossos instintos são despertados a cada esquina, não nos apaixonamos por nenhuma, apenas as desejamos a todas.

Não ignoro alguns factores óbvios por trás deste fenómeno. O vestuário é crucial: os calções e as saias são curtos e reveladores e os decotes são abundantes, colocando os objectos do nosso desejo no limiar entre a revelação e a fantasia (o grau adequado de liberdade). E até os óculos de sol, indispensáveis na fase do ano que agora principia, cobrem muitas vezes falhas faciais que afastariam um segundo olhar.

O Verão, todavia, dá mais a uma mulher do que a oportunidade de exibir as curvas. Este fenómeno que descrevo trata-se do surgimento de uma aura à volta de todas as beldades, uma sinergia de peles mais douradas, perfumes mais doces e, como consequência, uma confiança altiva que consegue apelar aos instintos de forma ainda mais aguda que os aspectos referidos anteriormente. É no Verão que o forte espírito da mulher se funde com o corpo e passa a emanar por cada poro a delicada e feroz essência feminina. Desaparecem as olheiras, o corrimento nasal, a cinzentude dérmica, e tudo dá lugar a uma formosa plenitude.

O calor ajuda as senhoras a disseminarem uma sexualidade interior que hiberna no Inverno, num processo que imagino semelhante ao da evaporação. Um bloco sólido de confiança e sensualidade que, aos primeiros raios de sol, e até à queda das primeiras folhas caducas, se vaporiza e invade a cidade de uma palpável luxúria. Como se o sol não bastasse para pôr todos os homens mais joviais, as senhoras ainda nos brindam com a sua silhueta, com o seu andar, com o seu sorriso estival. Não é uma exibição gratuita para olhares concupiscentes; apreciemos antes estas graciosas figuras com o espírito artístico com que elas merecem ser contempladas. Fica aqui um desmedido obrigado às mulheres por conservarem e aprimorarem a sua aparência, mesmo sabendo que não o fazem por nós.

sábado, 17 de maio de 2014

Heróis de Guerra

Ao intervalo, estava conformado: um Barça estragado, podre, cinzento, sem alma, que passou de nunca cruzar para exclusivamente cruzar, sem ideias, sem personalidade, um gigante transformado em pedra, com um treinador sem carisma nem capacidades, ia ser campeão. O Atlético perdera os seus dois melhores jogadores nos primeiros vinte minutos do jogo decisivo, e o Barcelona marcara na única ocasião que lograra criar.

Deus escreve, todavia, direito por linhas tortas. E esse Deus chama-se Simeone. O regresso dos balneários é paradigmático do carácter, competência e coração dos dois treinadores e, por extensão, da equipa. O batalhão colchonero colocou o champanhe no frigorífico, porque havia inevitavelmente de ser bebido, e entrou de gládio em riste. A guerra tinha de ser ganha, a competência estava lá. Com quarenta e cinco minutos de bravura, teriam o mundo a seus pés.

A ideia romântica de que o dinheiro não é tudo tinha sido cruelmente contrariada pelo final da Premier League. Mas Simeone sabe que a supremacia capitalista pode ser ultrapassada. Com qualidade técnica, claro. Mas sobretudo encarando o futebol como a guerra que ela é: um conjunto de batalhas, um xadrez de ideias, as cabeças de todos e o coração de todos unidos no mesmo intuito. Simeone é um Genghis Khan, um Átila, um Napoleão. Dotou aquele exército de arrojo, ousadia, tenacidade, dedicação. Concedeu-lhes uma grandeza que os outros tinham por estatuto; o Atlético teve-o por crença. Este Atlético é a infantaria de Nuno Alvares Pereira em Aljubarrota, e ficará para a história como a evidência máxima de que no futebol, como na vida, o suor também triunfa.

Não se trata aqui de justiça. Podíamos estar aqui todos a lamentarmo-nos que o Atlético morreu na praia, que este Barça era o campeão mais inexplicável de que há memória, que a vida é injusta. A vida não quer saber, e Simeone sabia que o karma não iria ganhar nada por ele. Pegou os escudeiros pelos colarinhos e convenceu-os, de início, que acabar a época com Messi e Ronaldo prostrados perante a sua grandiosidade era mais do que um sonho, era um desígnio. Esta milícia estava destinada à glória, comuns mortais que reservaram, com nada mais do que perícia e brio, um lugar no Olimpo.

Era demasiado cruel para os milhões que sofrem, mais do que pelo clube, pelo jogo, que Liverpool e Atlético acabassem ambas sem títulos, quando foram as equipas mais apaixonantes, mais vertiginosas, mais sedutoras, por jogarem o futebol mais ardente, mais inflamado. São equipas que contrariam as limitações com uma impetuosa e incontrolável vontade, e é impossível, no mínimo, não simpatizar com este tipo de grupo. Demos por nós a festejar os seus golos, e depois de todos escorregarmos com Gerrard, foi refrescante viver o clímax deste conto de fadas e sentir que, um pouco por todo o mundo, também todos saltamos com Godín.

(Uma última palavra para Tiago. Daqui a umas décadas, o mundo do futebol já se esqueceu dele. Há, no entanto, poucos jogadores destinados ao esquecimento com uma carreira tão gratificante. Brilhou no Benfica, foi campeão com Mourinho no Chelsea, formou em Lyon com Juninho e Diarra um extraordinário meio-campo, teve muitas dificuldades na Juventus mas termina a carreira a jogar o futebol mais refinado da sua vida num grande Atleti. Pagava do meu próprio dinheiro para o ver passear toda aquela classe com a nossa camisola, nos perfumados relvados do Brasil.)

sexta-feira, 4 de abril de 2014

O Segredo


“So we beat on, boats against the current, borne back ceaselessly into the past.” – F. Scott Fitzgerald

Quando ouvi o anúncio do lançamento de mais uma versão cinematográfica do The Great Gatsby, eu já sabia a resposta. Não iria ver. Por diversas razões: uma questão de nojo, quando deparei-me com a sobre-estilização de Baz Luhrmann; uma questão de princípio, por ter preconceitos quase fundamentalistas sobre a adaptação fílmica de certas obras literárias; e uma questão de pragmatismo - não consigo entender como qualquer ser humano lê a frase final do romance, que exponho na epígrafe, e pensa que é possível capturar isso com uma câmara.

O escritor corre um risco sério com este tipo de frase: a hipótese da pretensiosidade. Corre-se o risco de se parecer moralista sem oferecer conteúdo palpável. Quando executado com destreza e cautela, o resultado final são os mandamentos universais da humanidade - frases apreciadas mesmo por aqueles que nunca abriram o livro de onde foram retiradas. Quando executado com arrogância e desleixo, o resultado final são obras de auto-ajuda e livros do Paulo Coelho. Mas, verdade seja dita, eu tenho uma fraqueza terrível por esse tipo de obra.

Não por achar o seu conteúdo particularmente relevante para a Angústia Humana, mas porque a sua visualização permite-me experienciar o tipo de ódio pulsante do qual eu necessito com o mesmo ímpeto que um arrumador de carros necessita de heroína. Todas essas obras afirmam possuírem a receita sagrada, a solução instantânea, o pó de perlimpimpim, a poção encantada e a panaceia universal. Para mim começou com “O Segredo”. Esta peça audaz afirmava que o pensamento positivo não era apenas um mantra motivacional. Era um fenómeno neurológico com resultados tangíveis. De acordo com os autores, um pensamento positivo emite uma frequência para o universo, e, se essa frequência for positiva, o universo corresponderá igualmente com frequências positivas.

Ou seja, se pensarmos num Ferrari vermelho na nossa garagem, em rios de dinheiro a correrem na nossa direcção e numa supermodelo estoniana na nossa cama, o universo acabará por providenciar esses desejos. Como é óbvio, a absurdidade desta asserção é tão evidente que a sua mera enunciação deveria acarretar pena de morte automática. Mas isso não evitou que “O Segredo” se transformasse num livro que vendeu vinte milhões de cópias e num documentário com receitas de sessenta e cinco milhões de dólares. Tudo isso com um certificado de recomendação da Oprah Winfrey, o mais próximo que o século XXI tem de um selo de aprovação da Santa Inquisição. Entre 2007 e 2011, “O Segredo” foi o livro mais vendido em Portugal.

No entanto, essa obra é uma aberração particularmente aberrante. A maioria das obras deste género possui apenas asserções inofensivas que não ofendem a mais humilde das inteligências. Mas existe um atributo comum entre todas estas obras que me parece fulcral: a importância de se saber o que se quer. Se o indivíduo tem esta informação, o resto passa a ser uma questão de perseverança. O meu problema é que eu não sei o quero, tampouco sei para onde quero ir. Qualquer que seja o desejo, a possibilidade ou o cenário, eu sou capaz de conceber mil razões positivas e mil objecções negativas. Na minha consciência não existe um debate frutífero sobre as valências e os riscos.

E a razão para esse combate mental interminável é que não possuo a capacidade de auto-ilusão. Aqueles que conseguem concretizar os seus sonhos devem necessariamente possuir a capacidade de, consciente ou inconscientemente, ignorar tudo aquilo que pode correr mal. E, como liricamente nos diz Fitzgerald, o passado é um colete-de-forças pesado. Por mais que a perseverança e o pensamento positivo ajudem, o verdadeiro triunfo surge apenas quando somos bem-sucedidos na tarefa hercúlea de nos iludirmos e esquecermos a vergonha dos erros do passado e, ao contrário do que muitos afirmam, não existe nenhum segredo para nisso.

quinta-feira, 27 de março de 2014

As Faces de Cristo


“The greatest hazard of all, losing one’s self, can occur very quietly in the world, as if it were nothing at all. No other loss can occur so quietly; any other loss - an arm, a leg, five dollars, a wife, etc. - is sure to be noticed.” - Soren Kierkegaard

Durante a minha jornada pela Europa, eu visitei diversos museus importantes - o National Gallery em Londres, a Galeria Uffizi em Florença, o Museu do Vaticano, o Louvre em Paris, Rijksmuseum em Amesterdão. Nessa peregrinação maravilhosa eu tive diversas epifanias ligeiras sobre a natureza da existência, observei in loco os hábitos alimentares das diversas raças europeias e cheguei a uma conclusão muito importante: eu queria fazer aquilo para sempre.

A dádiva de viajar proporciona uma rara sensação de esperança eufórica que é impossível de ser recriada no quotidiano sedentário da humanidade neolítica. Existe uma liberdade indescritível em poder escolher rumos infinitos por este continente glorioso. A distância da tecnologia traz uma claridade mental que apenas pode ser descrita como um estado primitivo de paz nirvânica. A ansiedade ligeira que vive alojada no núcleo incandescente dos nossos cérebros - que eu nem sequer sabia que existia - desaparece, e traduz-se numa concretização inesperada da capacidade de viver no momento.

Uma multitude de atributos – vaidade, orgulho, ambição, raiva, inveja – desaparecem da balança mental, e o seu peso deixa de se fazer sentir na racionalização mental e na ponderação accional. O poder da viagem é tão grande que as minhas descrições desse fenómeno transformam-me num guru budista irritante que vê no asceticismo uma quimioterapia espiritual e que secretamente deseja que toda a humanidade fizesse cessar o sustento doentio do produto interno bruto. A flacidez das almofadas deixa de importar, a inutilidade do colchão deixa de irritar, a alimentação ganha uma dinâmica utilitária e deixamos de ser tão exigentes com a higiene de uma casa de banho.

Mas um aspecto recorrente que me pareceu peculiarmente interessante foi outro. Os museus expunham inúmeros quadros onde a figura proeminente era Jesus Cristo: o recém-nascido abençoado, o bebé nos braços da mãe, o adulto iluminado, o mártir crucificado, o homem morto, o ídolo ressuscitado. A tipologia que mais me impressionava era a representação de Jesus como um homem, virado para a frente, a olhar directamente na nossa direcção.

Em muitos quadros, o olhar era passivo e espectral, como se o homem soubesse que a sua permanência neste mundo não iria durar muito mais tempo. Em outros, ele parecia desgastado e severo, como um mineiro a descer no elevador da mina, que sabe que nada de bom o espera nas profundezas. Em casos raros, ele mostrava expressões faciais completamente ausentes da escala emocional humana, em que as suas características levavam-nos a crer que Jesus Cristo sabia de algo que nós nunca seríamos capazes de compreender. Mas o que todos aqueles quadros tinham em comum é que nenhum deles cedia à tentação de retratar Jesus Cristo como um idiota feliz retirado directamente da propaganda norte-coreana.

No entanto, nenhum daqueles quadros representa a verdade. Nenhum daqueles pintores, por mais talentosos que fossem, foi uma alma iluminada com acesso a um canal directo para o divino. As particularidades das obras, neste caso a face de Jesus Cristo, contam-nos mais sobre as intenções esperançosas do artista, do que sobre as intenções verdadeiras do filho de deus. No momento da criação aqueles olhos olhavam directamente para o pintor, que se via forçado a ver na tela branca um espelho indirecto. O resultado disso é que não se vislumbra uma réstia de compaixão naqueles olhos. Mas também não se vislumbra qualquer sinal de julgamento. O instinto do julgamento é uma ferramenta automática das tendências mais desprezíveis da consciência humana. É uma das bases primordiais dos nossos sistemas socioculturais. A negação desse instinto é uma das mensagens da estória cristã e um objectivo valoroso de todo um movimento artístico.

As figuras daqueles quadros não fazem brotar sentimentos de culpa, antes intensificam aquilo que o contemplador já sentia antes do confronto. E, infelizmente, na maior parte das ocasiões, essa intensificação incide sobre sentimentos negativos. Mas nesses quadros, Jesus não demonstrava o desapontamento paternal resultante de um julgamento. Era pior. Era um desapontamento que ele parecia tentar não deixar transparecer. Era a desilusão tão humana que ele tinha em si mesmo. Era a desilusão dos pintores, a nossa desilusão colectiva na humanidade, a nossa desilusão individual em nós próprios. Isso é algo que, julgo eu, é recorrente no ser humano. Nós somos os nossos piores juízes. Nós gostamos de nos sentirmos mal sobre nós próprios.

Isso foi, em parte, o que permitiu a rápida disseminação da Cristandade pelo mundo. A interpretação da religião cristã tende a confirmar os nossos piores medos. O medo de que somos todos potenciais demónios a vaguear na terra, e que a bondade está restrita aos mártires, anjos e santos. Essa tendência leva-nos a projectar deuses perfeitos que vivem em reinos inacessíveis, e faz-nos esquecer que o desapego ao julgamento, especialmente sobre nós próprios, é o ideal mais nobre a que a alma humana pode aspirar. No Livro de Génesis, quando Deus afirma que criou o Homem à sua imagem, essa não é a expressão omnipotente da sua bondade infinita na Criação. É apenas o Homem a ver-se, desapontado, ao espelho, e a decidir, desesperado, criar uma mentira que consiga fazê-lo esquecer, mesmo que momentaneamente, que a vida é injusta, a morte é certa e o julgamento, tanto humano como divino, é uma tragédia inevitável.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Sósias

Uma das maiores particularidades que nos distingue enquanto indivíduos será sempre a nossa capacidade de percepcionar parecenças entre as pessoas. Todos nós já estivemos na posição de partilhar com um grupo de amigos que duas pessoas são, aos nossos olhos, a cara chapada um do outro, para sermos confrontados, como resposta, com confusão e indignação. Pouco haverá de mais frustrante do que alguém nos dizer que duas pessoas, que nós vemos como gémeos separados à nascença, nada têm a ver uma com a outra.

Estas semelhanças não são efectivamente, na maioria dos casos, de detecção instantânea. Por pertencerem a contextos distintos, não damos por ela até que o nosso cérebro acenda uma lâmpada e ilumine a inevitável associação, que sempre esteve à frente dos nossos olhos. Reparem, por exemplo, como o actor Adrien Brody, d’O Pianista, é igualzinho ao actor português Miguel Guilherme. No outro dia, o tenista João Sousa eliminou o cotadíssimo Gilles Simon, que é inegavelmente semelhante ao actor Joaquin Phoenix.

Alguns de vocês já protestarão por esta altura, por impulso, sem atentar devidamente aos traços faciais dos pares que enuncio. Cada um vê com os olhos que tem, e nunca com outros. Mas não neguem, por favor, que o actor Kit Harigton, conhecido por Jon Snow de Game of Thrones, é a reencarnação do Jim Morrison, vocalista dos The Doors. Nem que o Pedro Martins, treinador do Marítimo, é o irmão campónio do nosso primeiro-ministro.

Já que estamos no futebol, digam lá se o Chicarito do United não tem parecenças com o Bruno Mars. Não recusem de imediato, considerem e vejam mais além. Tal como têm o Walcott, jogador do Arsenal, e o automobilista Lewis Hamilton. O Tymoschuck é, sem tirar nem pôr, o Kurt Cobain, assim como o Ricardo, jogador do Porto, é a versão humanizada do papagaio Zazu, do Rei Leão. E o Khedira é muito parecido com a versão Ali G do Sasha Baron Cohen.

Se o leitor vai lendo estas linhas abanando a cabeça em jeito de discordância, um desafio: visite a página da wikipédia do poeta Edgar Allan Poe e veja se consegue ignorar que a foto tem de ser, na verdade, do actor Bill Murray caracterizado.

Naturalmente, já estou habituado a carregar o ónus de abrir os olhos à população. Para já, esta é composta apenas pelos meus escassos leitores. Àqueles que discordaram das minhas associações estéticas, fica o conselho de serem mais minuciosos na observação. Aos outros, agora que a minha palavra é suficiente, e desprovido que estou de provas visuais do que vou afirmar, garanto que uma das minhas tias-avós alemãs é igual ao Mick Jagger e que a minha mãe, quando sorri, é tão parecida com a Janis Joplin que já lhe pedi que cantasse a “Piece of my Heart” para tirar as teimas. Não é ela.