segunda-feira, 19 de junho de 2017

Apocalipse

"The planet isn't going anywhere. We are. Pack your shit, folks, we're going away."
George Carlin

A proximidade física é uma lupa emocional, tudo amplia nas mais colossais angústias. Acampei há uns anos perto da zona afectada. Num carro com duas amigas, percorremos uma estrada em noite escura à procura da vila mais próxima, ladeados por uma indefinida imensidão de árvores. Perante a descrição da carnificina na estrada da morte, fica difícil fechar os olhos e não ter pesadelos despertos de termos sido nós a atravessar os portões de Hades. Não é um experiência exclusivamente visual, ouvem-se urros alucinados como últimos suspiros e o crepitar do tsunami flamejante, um calor vulcânico derrete a pele e o odor é entre o porco assado, a putrefacção e a doçura, assim é o cheiro da carne humana. Acobardo-me ao lembrar-me de como Dante descreveu um dos círculos do seu Inferno,
"um areal cujo solo toda e qualquer planta rejeita"
há famílias abraçadas à espera de morrer,
"multidões de almas nuas que choravam miseravelmente"
um furacão traz o fogo e somos todos apanhados
 "sobre todo o areal, choviam grossos flocos de fogo, (...) assim tombava o fogo eterno, fazendo a areia arder, como a isca debaixo do fusil, redobrando o tormento."
Os locais garantem todos que foi uma questão de segundos entre a cortina de fogo no horizonte e o fim do mundo. Uma senhora tenta especificar quantos, dentro da percepção temporal que a agonia permite: quinze a vinte. Aldeias foram devoradas por indomáveis línguas de fogo, o seu sustento em gado e hortas dizimado e as chamas progrediram a sua rota voraz, indiferentes ao seu rasto sinistro.
A contemplação temorosa destes cataclismos só é comparável à destruição biblíca da humanidade. Há uma razão para o Deus do antigo Testamento ser tão cruel: Deus era a natureza, brutal e inexplicada. A natureza dá e tira-nos vida. Água e fogo dão-nos e tiram-nos tudo. Era esta a relação dos antigos com o Deus de Abraão, mas não tem de ser a nossa com a natureza. Porque esta não é vingativa e carente como Deus; é antes profundamente indiferente à nossa existência. Nenhuma dessas entidades deve ser venerada.
"Quando a natureza se zanga, é muito difícil o homem pará-la". As palavras são de Jaime Marta Soares, presidente da Liga dos Bombeiros. É a perspectiva de um homem que passou a vida a travar uma batalha de David e Golias contra a fúria titânica dos elementos naturais. Aos ouvidos da população, é um encolher de ombros digno de uma tribo da Amazónia que atire flechas à anaconda gigante a que nós chamamos comboio.
Não entendo que reverência é esta. Não entendo porque nos achamos demasiado pequenos para a natureza. Nunca me esquecerei da frase do filósofo Julian Baggini, que a propósito do tsunami que atingiu a costa do Japão em 2011 disse sobre Gaia, a deusa grega que personifica a Terra: "We should respect her as a fighter respects the strength and skills of an opponent, not as a pupil respects the knowledge and wisdom of her master."
Entendamo-nos: o homem é mais importante que a natureza. Sem consciências humanas no planeta, não há sequer ninguém para dizer se a natureza é boa ou má. Simplesmente é. Nesta salgalhada misturam-se dois conceitos muito distintos: domar a natureza e domar as suas leis. A natureza já mostrou não poder ser domesticada; mas foi ao estudarmos e gerirmos as suas leis que a ciência levou a humanidade a este patamar de progresso e segurança. No meio da sofreguidão de salvar o planeta da acção humana, não nos podemos esquecer de salvar a humanidade da acção planetária.
Acordo suado e assustado e sinto-me envergonhado com o medo. Ligo para os vários números de apoio. Creio ter sido a primeira vez que fui movido internamente para contribuir como posso para uma causa deste género. Não me gabo, pelo contrário, estou cheio de vergonha, porque fomos todos tarde demais e porque não sei se sou movido por empatia ou egoísmo. Acho que foi o meu pesadelo que me impeliu, não o pesadelo deles. Quando se fala em impotência, expressamo-nos postumamente, temos vontade de ajudar e não podemos. Sejamos optimistas e consideremos que é neste sentimento que começa a solução.
O número imparável de vítimas mortais pode atingir os três digitos. Ainda há dezenas de casas isoladas espalhadas pelo terreno de cujo os habitantes não se tem informação. É infrutífero, nestas alturas, dizerem-nos que é momento para usar da razão e não da emoção. Não queremos esperar mais pelos especialistas, por estudos, por merda nenhuma. São todos génios impotentes que querem proteger as florestas abolindo os guardas florestais juntos das populações e que combatem a desertificação do interior não oferencendo condições básicas a quem lá fica.
As pessoas querem respostas, mas nunca podem perdoar isto. O maior problema da dimensão do Estado em Portugal é esperarmos o retorno que nunca vem. Comunidades inteiras que contribuem com o suor em incontáveis e chorudos impostos e que depois têm de combater a natureza abandonados à sua sorte. ´
Há um grande plano de prevenção e combate aos incêndios florestais parado numa gaveta há mais de uma década à espera de um cataclismo que justificasse a canseira de o aplicar. Estamos a falar de um problema anual e previsível e estamos a falar de soluções tão simples e baratas como bunkers ou perímetros de segurança para estradas e localidades. Dinheiro, burocracia ou falta de vontade, seja qual for a justificação para o plano não ser devidamente aplicado, verdadeira ou oficial, é uma monumental vergonha para aqueles a quem depositamos o nosso bem-estar. Desengane-se quem acha que faz diferença se são os burros da PáF ou os ilusionistas da geringoça, se é o silêncio cadavérico de Cavaco ou os beijos molhados de Marcelo. O fogo continua a lavrar. Confiar no poder político a defesa do Portugal rural é permitir que continue a cheirar a carne humana. A sociedade civil sabe o que é preciso fazer. Façamos.

terça-feira, 23 de maio de 2017

Porque é que gostamos tanto dos vilões? - Um estudo socio-psico-antropológico

Confesso aqui um fascínio por Edmund Kemper. O leitor estará neste momento justificadamente confuso: ou não sabe quem é Edmund Kemper, ou sabe que é um assassino em série, violador, canibal, matricida, necrófilo, que matou os avós paternos com quinze anos e que está desde os vinte e cinco encarcerado num hospital prisional na Califórnia. Creio que é portanto adequado, para evitar juízos precipitados, o devido enquadramento do encanto que tenho pela personalidade deste homem sádico e perverso.
Kemper espalhou o terror nos campus universitários de Santa Cruz, na Califórnia, durante um período de onze meses no início dos anos 70. Tinha um método e um alvo predilecto: raparigas adolescentes a quem oferecia boleia para posteriormente violar, matar, mutilar e comer, pela ordem que lhe agradasse mais dessa vez. Para cumprir o seu desígnio, tinha duas características que faziam dele, durante os seus meses de matança, um assassino particularmente sinistro. Primeiro, tinha a dimensão intelectual: um Q.I. estimado em 145 e a frieza e naturalidade que só a verdadeira sociopatia consegue proporcionar permitiam-lhe ser educado, bem falante, e manipular as jovens inocentes com facilidade. A isto aliava a dimensão física: com mais de dois metros e cento e catorze quilos, subjugava muito facilmente as suas vítimas, mesmo às duas de cada vez.
Já havia sido preso ainda criança, por assassinar os avós paternos com quem vivia. Considerado posteriormente reabilitado e seguro para viver em sociedade, foi libertado com os vinte e um da maioridade. Cerca de dois anos mais tarde, começou a matança, que terminou com a morte da própria mãe, numa história com contornos mórbidos. Kemper fala frequentemente da progenitora como um grande factor de destabilização emocional. Descreve-a como abusadora e alcoólica. Diz que muitos dos seus crimes foram prepertados na sequência de violências discussões com ela. Acabou por matá-la com um golpe de martelo. Degolou-a, decapitou-a e, com a cabeça, divertiu-se num sem número de actos desprezíveis. De seguida, entregou-se às autoridades. Acusado de oito assassinatos, o Big Ed admitiu culpa em todos e pediu que o condenassem à morte. Estando a pena de morte suspensa no estado da Califórnia em 1973, foi condenado a prisão prepétua em novembro.
As histórias dos seus crimes são tenebrosas e perturbadoras. Desde a sua detenção, o seu caso tem sido amplamente explorado, por psicanalistas, jornalistas, investigadores e curiosos. Kemper não se coibe: fala da sua onda de crimes como quem explica a um amigo como é que se faz uma omolete. Não transparece arrependimento nem vaidade, não carrega remorso nem orgulho. É uma deslumbrante crueza e indiferença, mas não se trata de um alheamento total das desprezíveis circunstâncias dos seus actos. Ele sabe que o que fez é mau, reconhece a sua perversão, está tranquilo e conformado com a sua vida enjaulado. É considerado um recluso exemplar: ajuda na burocracia, é talentoso na cerâmica e um ávido leitor. Tem, aliás, um respeitável emprego: providencia a sua voz para livros auditivos feitos para invisuais, tendo já feito vários milhares de horas de gravações de centenas de obras.
As suas entrevistas na prisão são deliciosas. Somos surpreendidos por uma natural simpatia. Figura de bibliotecário, bigode e óculos característicos da década de 70, Kemper é eloquente, educado, persuasivo e coerente. Um grande contador de histórias, é homilético e entretém. Damos por nós, horrorizados, a querer beber uma cerveja com tão vil criatura.
Para quem permanece com a opinião de que é inadmissível admirar uma personalidade moralmente tão distorcida, alerto que eu me limito apenas a fazer a transferência para a vida real de um fenómeno que desde sempre existe na nossa relação com a ficção. Há uma tendência, mais ou menos tabu, para preferirmos os heróis em criança e os vilões em adulto. A quebra da ilusão de que existe um mundo a preto e branco faz-nos encarar vilões como cinzentos escuros, e simpatizar frequentemente com eles, seja pela sua personalidade ou pelas suas motivações. É certo que no ecrã não há quem sofra realmente. Mas usar o caso da crueldade dos vilões fictícios para estudar a vida real tem uma vantagem: dá-nos uma percepção ainda maior do contraste entre a personalidade imaculada do herói e o perfil complexo e profundo do sociopata. Este perfil seduz-nos e eu, que me confesso leigo em sociologia, psicologia e antropologia, mas que sou amante da especulação intelectual, tentarei explicar porquê.

Para entender o encanto que temos pelos vilões, é preciso, antes de mais, procurar perceber porque é que o mal nos é tão atraente. Incluo-nos a todos, não apenas os fãs de Edmund Kemper.
A primeira teoria óbvia é a do fruto proibido. De facto, a tendência generalizada para não agir de acordo com o código moral em vigor é um acto de rebeldia perante a visão do humano perfeito. O bem é louvado, o mal é cobiçado. Damos palmadas nas costas às boas pessoas, mas invejamos algo muito conveniente nas más: a sua liberdade de escolha.
Os vilões têm o seu próprio código de conduta, e nós condenamos-os por isso, quando subsconscientemente admiramos mais essa independência. Somos James Deens por natureza. Não gostamos de regras e vivemos algemados por elas. Tens de estar em casa a horas, não toques nisso, o banco fecha às três, está vermelho, usa preservativo, não calques a relva, deixa sair antes de entrar, sopra ao balão, não te sentes na estátua, o fumo passivo mata, tens de tirar senha, tudo o que sabe bem faz mal. A capacidade de lidar com estas frustrações é directamente proporcional à empatia e consideração que temos por nós e pelos outros. Quando despimos o ser humano dessa consideração, descobrimos um sádico sociopata. A sociopatia não se caracteriza pela preferência por ficar em casa quando nos convidam para sair ou pelo charme de pôr imagens no facebook a dar a entender que odeio pessoas. Sociopatas não têm facebook. São anormalmente individualistas, socialmente impiedosos e moralmente vazios. E livres. Todos queremos ser livres.
Outra parte do apelo moderno do mal é a associação de bondade e virtude com coisas entediantes como ser abstémio, casto e crédulo. Mark Twain, em Letters from the Earth, fala da contradição entre esta promessa religiosa de felicidade eterna e o prazer provocado pelo pecado: "(...) the human being's heaven has been thought out and constructed upon an absolute definite plan (...) this plan is, that it shall contain, in labored detail, each and every imaginable thing that is repulsive to a man, and not a single thing he likes." Muito se fala da importância bíblica na consolidação do código moral ocidental. Ao misturar o conceito de prazer com o de pecado, esta visão reprime-nos e incrimina-nos sem critério. Enche-nos de culpas e responsabilidades por qualquer tipo de prazer. Olhe-se para os pecados capitais: todos eles são condições indissociáveis do ser humano, e à volta das quais o mundo moderno foi construído. Confunde-se luxúria com promiscuidade, ira com descontrolo, gula com sofreguidão, inveja com ódio, preguiça com inutilidade, avareza com egocentrismo, vaidade com arrogância. Isto cria uma salgalhada moral que deixa a nossa perspectiva do que é o verdadeiro mal um pouco turva. Quando experimentamos qualquer um dos sentimentos acima citados, somos apenas humanos com desejos e ambições, não incorrigíveis pecadores.
Falemos de gajas, que é consabido ficarem malucas com um bom vilão, ou um vilão bom. Percebe-se porquê: são aventureiros, confiantes, excitantes, badass e garantem a fuga ao tédio do quotidiano conjugal.
Num mundo sem equilibrio e forças nem karma justiceiro, o mal é frequentemente poder. É saber o que se quer e consegui-lo. Biologicamente, é fácil explicar a atracção das mulheres por homens poderosos. Esse poder não é necessariamente financeiro ou profissional. É estar ao volante da vida, é a capacidade de controlo. Este interessante estudo da Universidade de Liverpool reuniu mais de duas mil mulheres para confirmar esta propensão: "Women really are drawn to men with the dark, brooding looks that suggest they are mad, bad or dangerous to know (...). But it is not the love of danger that attracts them but a primitive desire to find a mate who appears mentally strong, confident and physically attractive in order to have healthier children. Such men have facial features that display the 'Dark Triad' of personality traits - machiavellianism, narcissism and psychopathy".

Estas considerações pseudo-científicas que aqui expus ajudam a explicar uma parte da atração. Ainda assim, existem motivos externos que exploram esse fascínio. Personagens fictícias, que na vida real seriam considerados párias tóxicos, pervertidos e impiedosos, são adolados como figuras de culto. Perante isto, podemos colocar a questão: foi a construção de personagens complexas e estimulantes para representar a maldade responsável pela nossa atracção; ou é a nossa predisposição para respeitar secretamente a pitoresca mentalidade de um sociopata que nos atrai?
Efectivamente, para estudar este fenómeno temos, antes de mais, de encarar o facto de que os vilões em filmes e séries têm personalidades moldadas para serem apelativas, charmosas e humanas.
Na ficção, sobretudo na moderna, os vilões são talentosos, perspicazes, maduros e engraçados. As motivações para os seus actos cruéis são frequentemente explicadas de forma a provocar uma reacção empática e compreensiva. Tony Soprano é mafioso, adúltero, corrupto e assassino, mas abre as feridas da sua alma a uma psiquiatra. Tyler Durden, de Fight Club, é um sacana lunático a quem temos de perdoar tudo. Moriarti, arqui-inimigo de Sherlock Holmes, tem com ele uma deliciosa relação de yin-yangDarth Vader é o pináculo do lado negro da Força e é de tal forma humanizado que é pai do protagonista. E até figuras nas quais não pensamos como vilões, como Dexter ou Dr. House, são na verdade pessoas com condutas morais no mínimo controversas. Mas são de tal forma prodigiosos, independentes, audazes e cativantes que não podemos senão admirar.
Alguns personagens que ficaram para a história do cinema de terror (estou em pensar em Ghostface dos filmes Scream, Leatherface de Texas Chainsaw Massacre, Michael Myers do Halloween ou Jason Voorhees de Friday the 13th) não entram nesta categoria. São figuras ocultas e esotéricas. Não nos revemos na humanidade do seu lado negro; são antes a personificação dos nossos medos, da nossa vulnerabilidade, da nossa cobardia. São perigosos e temidos, mas não admirados.
É preciso também referir que na televisão, além da construção da personagem na própria narrativa, há que valorizar sempre o trabalho do actor que consegue transmitir a sociopatia com trejeitos, inteligência e um transbordante carisma. Heath Ledger criou um Joker tão niilista e anarquista, quanto pragmático e brilhante. Anthony Hopkins foi um Hannibal Lector intimidante, mas arguto e clarividente; e Christian Bale criou, em American Psycho, um serial killer charmoso, mulherengo e metrossexual.
Esta elaboração intrincada do perfil sedutor do antiherói foi decisivo para associarmos o lado obscuro da moral com inteligência, bom gosto, compostura e sofisticação.  N'A Laranja Mecânica, Alex Delarge, enquanto era "curado" pela famosa maquineta que prende as pálpebras, está sobretudo preocupado por estarem a passar Beethoven durante a tortura; é obcecado pelo compositor, ouve diaramente as suas peças e não quer associar algo tão belo a tamanho sofrimento. Verbal Kint, em The Usual Suspects, tem esta tirada genial para explicar o seu low profile: "The greatest trick the devil ever pulled was convincing the world he didn't exist". Por falar em Kevin Spacey, é ele quem interpreta o antagonista de Seven, metódico e sombrio, e, já agora, também faz de Frankie Underwood em House of Cards, o verdadeiro vilão do século XXI: maquiavélico, burocrático, manipulador e ambicioso. John Kramer, o Jigsaw, é um engenheiro civil que constrói jogos sádicos altamente criativos. Stringer Bell, em The Wire, está a tirar um curso de economia e protagoniza fantásticas cenas em que aplica os conceitos económicos ao seu negócio de tráfico. E nunca poderia referir The Wire sem falar de Omar, um homossexual cheio de pinta que assalta traficantes e que com um simples assobio põe toda a gente da rua a fugir.
A demoníaca atracção por personagens perniciosos extrapola, no entanto, o requinte deste tipo de maldade. A crueldade pura e grotesca também nos seduz com o seu canto hediondo. Temos uma atracção visceral pelo horror: abrandamos quando passamos por um acidente e nada melhor para chamar a atenção do espectador do que avisar que as imagens que se seguem podem ferir a nossa susceptibilidade.
Ramsey Bolton, de Game of Thrones, encarna este nosso lado sombrio e reprimido. Destituído de excrúpulos e dúvidas, retira o mais libertino prazer do sofrimento alheio. Ramsey é apenas o personagem mais degenerado e malévolo, mas a enxurrada de orgias, tripas e sangue estende-se naturalmente a toda a história. Se provas faltassem de que o horror atrai, eis que a série mais popular da década tem decapitações, línguas arrancadas, sexo incestuoso, pénis decepados, patricídios na retrete, cabeças a explodir, atentados e crianças queimadas vivas. Dêem-nos disto e nós comemos como piranhas esfomeadas. Esta indesculpável atracção pelos piores dos crimes não se limita ao seu enquadramento num universo fantasioso, mágico e utópico: desafio alguém a desmentir que passou todas as temporadas de Prison Break a torcer pela sobrevivência de um pedófilo assassino.

Preferirmos o vilão não faz de nós piores pessoas. É apenas uma confrontação com, e natural fascínio por, personificações do lado negro que nos sussura tentatações e que fazemos de tudo para ocultar. Se a isto juntarmos o trabalho da ficção de maquilhar essa dimensão depravada da humanidade, associando-a a um conjunto de qualidades, é perfeitamente plausível uma maior indentificação de humanos imperfeitos como nós com o vilão indigno e incorrecto do que com o herói virtuoso e impoluto.
Se elaborei todo este trabalho académico de modo a justificar a minha admiração pela mente deturpada de Edmund Kemper? Provavelmente. Fui bem sucedido? Provavelmente não. Mas é reconfortante saber que não estou sozinho nisto.

domingo, 14 de maio de 2017

Salva a dor

Antes de mais, há questões oportunas a colocar: será Malato a apresentar o Eurovisão Lisboa 2018? E se sim, onde se esconderá então, envergonhado, este nosso empertigado patriotismo?
Teria Salvador ganho sem o man bun, o olhar impoluto e os esdrúxulos trejeitos de artista, que o meu pai sagazmente classificou de canguru epilético?
Se Salvador soltar o cabelo, este fica para trás ou transformará a sua cara na de um lhasa apso?
Deverei considerar-me homofóbico por sentir repulsa pelos dois gregos a esfregarem-se molhados e em tronco nu?
Questões que aqui planto para germinarem.
De resto, já tudo se disse ad nauseam sobre o Salvador. Há quem não tenha espaço no peito para tamanho fascínio. Há quem genuinamente não goste da música, uma opinião tão legítima como o seu contrário. Há indiferença, há invenja, há vaidade. Há quem critique a parolice do orgulho lusitano e há quem diga que é tudo política. A irmã do Markl até escreveu um texto a criticar comentários anti-Salvador nas redes sociais. Coitada, perdida vinte e quatro horas online, não pode comentar o mundo que não seja o digitado.
Aqui deixo a minha humilde e irrelevante consideração: estou-me positivamente cagando para o festival. Tenho uma paixão vulcânica pela arte de criar música, mas tenho um gosto diferente. E é precisamente esse contraste que me fez, a mim e a muitos, apreciar particularmente a vitória do Salvador. Dificilmente se poderá ser anti-Festival da Canção e anti-Salvador, a não ser que se seja anti-música, algo que me parece humanamente impossível. Ao contrário do Salvador, não tenho problemas com fogos de artifício nem efeitos especiais. Algumas das minhas bandas favoritas dão concertos extravagantes e pirotécnicos. O problema é mesmo a música.
Perdido num turbilhão de batidas cefaleicas, efeitos ofuscantes, arte pós-ultra-neo moderna, melodias contrafeitas e apresentações exóticas, Salvador fez jus ao nome. Foi despretensioso e afável. Apresentou a graciosa composição da irmã como um feitiço, acompanhado por um notável arranjo de cordas. Foi um oásis e mereceu cada um dos aplausos.
Satisfaz-me portanto, sobretudo, ter ganho a melhor música. A única música, arrisco. Outros motivos de interesse houve, ainda que escassos: os moldavos levaram um divertido riff de saxofone, houve primatas e cavalos e houve o inebriante decote de Kasia Mós, a cantora polaca cujo nome decorei por pura curiosidade empírica. Amar pelos dois é simplesmente demasiado bonita para não se destacar como Newton numa aula de educação especial. Se tívessemos levado o Agir e ele tivesse ganho, eu e muita gente teríamos ignorado o fenómeno. Porque há várias formas de declarar o amor: pode-se declamar brilhante poesia (Ela parte-me o pescoço/ Que ela tem aquele corpo que eu digo/ What the fuck and so what, so what, so what/ Eu não tenho culpa que ela tenha aquele butt). Ou pode fazer-se arte. Ganhou um artista, que por acaso é português. (Aqui uma palavra para Luísa Sobral, a nossa Diana Krall, que já merecia consagração).
A meu ver, estes festejos nacionalistas não são criticáveis por si só. É condenável que muitos dos que festejam a vitória da verdadeira música ouçam diaramente o tipo de música plastificada que dizem ter sido derrotada. Essa hipocrisia é verdadeira e deve ser referida. Mas o orgulho na vitória do Salvador, mesmo que de um ponto de vista meramente nacionalista e não musical, é legítimo e saúda-se. E explico porquê.
Abel Xavier inaugurou a extraordinária decomposição morfológica que titula este texto, com a já lendária tirada do treina-a-dor. Etimologicamente, errou: felizmente o elevador não aleija nada e infelizmente um aspirador não é antidepressivo. Mas neste caso esta formulação é pertinente. São estas alegrias que nos salvam o patriotismo, que anda frequentemente perdido entre o derrotismo, o triste fado e a falta de dinheiro. Celebrar esta vitória é revigorante, ainda que seja num contexto que em geral seja ignorado.
Do Europeu disse-se o mesmo: gente que nunca liga a futebol saiu à rua em euforia desmedida. Tenho dificuldades em perceber o problema disto. Fenómenos como o Salvador e o Éder, ao contrário do que às vezes se diz, não são fugazes e insignificantes exaltações da pátria. São episódios prodigiosos de experiência colectiva. É uma memória que vamos sempre partilhar. É uma vaidade comunitária, uma glória comum. Querer ver mal nisso é ser contra o próprio conceito de nação.
Mais do que isso: Éder e Salvador são o protótipo da desembaraçante criatividade lusitana. Seja a criatividade de imaginar um remate do meio da rua, seja a criativiade de pôr o mundo a trautear em português, seja a criatividade de inventar uma desculpa para entregar o relatório para a semana, a criatividade de desenrascar um aceitável jantar com pouco mais que uma lata de atum e uma mini, ou a criatividade de falar portunhol. Fosse o Salvador nortenho e, em vez de mandar um abraço para o nosso país na actuação final, teria gritado o "Portugal, caralho!" que merece ecoar pela Europa fora.

quinta-feira, 27 de abril de 2017

O Monstro É Foda

Fui assistir ao concerto de ontem do Caetano Veloso no Coliseu com motivações diversas. Em primeiro lugar, trata-se de um ícone da música popular brasileira. Assistir a Caetano é sentir o Brasil mais genuíno e mais poético. Um monstro, como lhe chamou Teresa Cristina, cantora carioca que o acompanhou neste concerto.
Como segundo motivo, a minha mãe ama o Caetano Veloso mais do que ama o meu pai e queria companhia, e para se poder ter bons pais é preciso ser um bom filho.
E em terceiro, e principalmente, porque no último concerto a que foi sozinha ao Coliseu, para ver Maria Bethânia, irmã de Caetano, a minha mãe começou a protestar com o homem do som, que estava a tapar a sua visão da cantora com os seus movimentos de dança, e que com a confusão toda acabou por deixar o som do microfone da Bethânia ir abaixo, para grande desagrado desta que o manifestou a todo o público, e todo este evento terá provavelmente acabado no despedimento do pobre homem do som que estava apenas a curtir. Pareceu-me bem, portanto, acompanhá-la desta vez.
A primeira parte do concerto foi então a cargo de Teresa Cristina, que teve apenas como companhia um guitarrista acústico, Carlinhos Sete Cordas de sua graça. Um homem negro, de alma aberta, cativou com o seu imutável sorriso, um sorriso que transpirava o Brasil. Era assim que Carmen Miranda dançava, era assim que Ronaldinho jogava. Um grande talento, daqueles que sentem o que tocam e tocam o que sentem, mas que daí não conseguem retirar senão júbilo. Teresa embalou-nos no samba e na bossa nova, entre a sua voz elegante, expressiva e carismática e os solos de Carlinhos.
Por fim, Teresa apresentou-nos Caetano de forma comovida, manifestou a sua adulação, referiu a influência do seu ídolo, chamou-lhe "artista fenomenal", "generoso", "elegante" e não se coibiu de sussurrar "dizem que ele é foda", que é uma expressão pode significar muitas coisas, e eu revejo-me numa delas, mas não foi dessa que o público se riu.
Caetano entrou, sentou-se e contou-nos a sua história. Com os efeitos de luz celeste e fumos brancos, Caetano estava etéreo. Foi nesse firmamento que se cantou a depressão,
Todo o dia é o mesmo dia/A vida é tão tacanha/Nada novo sob o sol/Tem que se esconder no escuro/Quem na luz se banha/Por debaixo do lençol, 
o amor,
Luz das acácias/ Você é mãe do sol/ A sua coisa é toda tão certa/ Beleza esperta/ Você me deixa a rua deserta/ Quando atravessa/ E não olha pra trás
o resignado coração partido,
Mas não tem revolta não/ Eu só quero que você se encontre/ Saudade até que é bom/ É melhor que caminhar vazio/ A esperança é um dom/ Que eu tenho em mim, eu tenho sim,
tudo com um cativante tom optimista de felicidade inevitável. Há beleza nas coisas más.
Cantou os tempos da ditadura militar no idos anos 60. Cantou Tropicália, a magnum opus do movimento tropicalista, uma transformação total no cenário cultural brasileiro da altura. Cantou Tigresa, que teve como musa a actriz Sónia Braga, a Gabriela da novela, que parece que depois lhe partiu o coração na vida real. Pôs todas as mulheres e alguns maridos envergonhados a cantar o Leãozinho.
Era só ele, intimista, a mostrar-nos o que ele é, o que ele foi nos últimos cinquenta anos. Só ele e o seu violão, que faz tanto parte de si como os seus próprios dedos. Talento nada tem a ver com complexidade. Acabaram a juntar-se os três, Carlinhos, Caetano e Teresa, num final memorável.
Depois de três encores de aplausos infindáveis, saí a trautear. Senti-me a deixar uma sauna musical, feliz e purificado. Em casa, dou por mim de violão no regaço, a mão esquerda com o acorde em sétima, a mão direita a tentar imitar o ritmo da bossa nova, e desejando possuir o sotaque com açúcar que me leve ao sítio onde Caetano consegue ir. Vou continuar a tentar, porque nesse sítio está tudo certo. Tudo certo como dois e dois são cinco.

quarta-feira, 26 de abril de 2017

Não há cravos na Venezuela

25 de Abril, ano após ano, agradecemos a liberdade a quem odeia a liberdade. O PCP sobrevive de uma herança que reclama para si. Apropriou-se de tal forma desses valores que parecem confundir-se. Por isso mesmo pode sair impune de defender regimes que atacam os valores que embandeiram. O exemplo norte-coreano é clássico e caricatural. Sabemos agora que estão sozinhos na aprovação do regime opressor de Maduro na Venezuela, enquanto celebram os seus patrióticos feitos na nossa liberdade.
Certo é que PSD e CDS também ousaram ser contra o voto de condenação pela prisão dos activistas angolanos. Podemos levantar a questão: é mais legítimo compactuar com regimes criminosos e déspotas por interesse político ou económico do que por ideologia? Maquiavel acena-me que sim do século XVI. Eu vou apenas afirmar que, se a ideologia são valores, esta desaparece sem eles.
Apresentam-nos o populismo como um perigo para a democracia, e consequentemente para a liberdade. Chavez era um paradigmático populista. O seu herdeiro vai seguindo esse populismo, não na versão carismática de proximidade e identificação com o povo, mas ao culpar a elite económica mundial e os agentes capitalistas pelo falhanço económico e social do seu governo.
Chamemos-lhe pós-verdade, narrativas, perspectivas. Por exemplo, colocada a questão "a que se deve a escassez de alimentos e medicamentos na Venezuela?", podemos olhar para o regime como vítima da descida do preço do petróleo, responsável por 96% da economia venezuelana. Se o fizermos, deixamo-nos levar pela teoria das ingerências externas e verborreia anti-capitalista. Embarcar nisto é ignorar um pequeno facto: sem capitalismo, o petróleo é água suja que só serve para munir de gasolina os pirómanos.
Podemos, como alternativa, observar que a obsessão com os ataques à propriedade privada levou a constantes expropriações estatais. Podemos culpar a corrupção que assola o sistema público venezuelano. As chamadas missões bolivarianas de Chavez fizeram aumentar exponencialmente a dívida pública. E podemos olhar para o crescendo de criminalidade como consequência de um estado de impotência, de desespero. Como sobrevivência.
De cravo na lapela, comunistas dão-nos lições de liberdade. De quão gratos devemos estar pelos seus antepassados. Mandam todos respeitar a democracia e a separação de poderes. Na Venezuela, o duelo entre regime e oposição tranformou-se numa guerra entre o poder judicial e o legislativo. Aqui que se lixe Montesquieu.
Ah, e um pormenor que é importante de referir: Maduro é louco como uma cabra. Não é ideologicamente louco, é mesmo patológico. Nem sou eu que o digo, é o presidente do Uruguai. Não é caso para menos. Maduro viu a cara do Chavez numas obras. Sugeriu uma medida de poupança de energia que consiste nas mulheres deixarem de usar secador de cabelo, dizendo até que ficam melhor quando só passam os dedos pelo cabelo e deixam secar ao natural. Cria milícias de civis. Sou um optimista, mas se razões políticas e humanas não são suficientes para condenar este homem, insanidade poderia ser.
Festeja-se a revolução, proliferam elogios às liberdades conquistadas, aos direitos adquiridos, aos chamados valores de Abril, que, ironicamente, a esquerda trata como sua propriedade privada. Hoje, 26, o sol raiou com silêncio. Chavez não foi Salazar, Maduro não é Américo Thomaz. E a luta de um povo sem voz e sem condições básicas de vida, munido de pedras e paus, contra um regime socialista asfixiante não tem a mesma honra de um grupo de militares. A hipocrisia é quem mais ordena.

segunda-feira, 24 de abril de 2017

Macron: o triunfo do extremismo centrista

Até Mark Twain ficaria surpreendido com o exagero com que foi anunciada a morte do centro político. Todos ouvimos a história: a crise financeira, a austeridade, a perversão corrupta da classe política, os choques culturais e sociais da globalização e o terrorismo jihadista fizeram a sociedade civil questionar o sistema partidário e a fazer uso das suas armas democráticas para romper com o mainstream.
É pertinente não confundir a falência dos partidos tradicionais de centro-esquerda e centro-direita com a extremização do eleitorado. Desde logo porque não é só o centro que se está a esbater, são antes todas as organizações partidárias. Trump candidatou-se pelo Partido Republicano mas, na prática, foi um independente que se marimbou para o reaganismo e que insultou tudo e todos no seu partido, formando assim internamente mais opositores do que apoiantes. Macron foi a votos suportado por uma plataforma imberbe na paisagem política gaulesa. A população não está só a castigar o centro político, está a punir toda a oligarquia partidária.
O centro-direita começou a cair com a identificação com a austeridade, que pela Europa fora causou graves fissuras entre países do norte e do sul, entre ricos e pobres, entre culturas de trabalho protestantes e católicas, entre europeístas e eurocépticos. O centro-esquerda, perdido nesta polarização, não soube encontrar o seu equilíbrio entre compactuar com o projecto europeu e embarcar na retórica anti-capital, estratégia que só iria favorecer os partidos mais à esquerda, que ao menos são originais e não socialistas dos trezentos.
Dito isto, observemos Emmanuel Macron, um homem tão previsível quanto incongruente. Ministro de Holland, prontificou-se a despir a bata ensaguentada com que aplicou a sua cirurgia à economia francesa, para que não fosse identificado com a lei à qual deu nome. Não se compromete em questões essenciais, já foi chamado de "zebra política", de "pisca-pisca", a representação paradigmática do leito de morte das ideologias. Ver este senhor lembra-me diaramente este sketch. Está, como Zé Diogo Quintela com uma máscara de ski, "mesmo, mesmo, mesmo ali no meiinho".
Porque é que Macron ganhou esta primeira volta, ainda que por escassa margem? Dantes falava-se em partidos catch-all, ou aquilo a que os americanos chamam de big tent: plataformas partidárias que aglomerassem em si diferentes pontos de vista. Com a crise partidária, surgiram os candidatos catch-all. Esses candidatos podem ser populistas que, através de um diagnóstico (a cura é outra história) mais ou menos certeiro, falam ao eleitorado perdido e esquecido. Ou podem, por outro lado, ser Macron: nenhum dos sectores se identifica especialmente com o seu incógnito programa político. Mas cada vez mais são valores, e não políticas, que vão a votos.
Em termos muito gerais, teremos na segunda volta em França uma contenda semelhante ao que se passou nas eleições norte-americanas. Há diferenças relevantes, desde logo logísticas, com diferentes sistemas eleitorais, mas também diferentes cenários demográficos, problemas sociais distintos e heranças políticas díspares. E, para não falhar à justeza, Hillary não é tão vazia como Emmanuel, Emmanuel não é tão politicamente inábil como Hillary, Marine não é tão burra como Donald e Donald não é tão convicto como Marine.
Irão, porém, defrontar-se duas visões antagónicas do mundo: uma que defende a ordem liberal ocidental, as instituições internacionais, abraça o esbatamento de fronteiras e a manutenção da elite política e financeira internacional; e uma outra, de contra-poder, que se assume como nacionalista, xenófoba, autoritária, proteccionista e que vê com melhores olhos uma aproximação ao Kremlin do que a manutenção das instituições e políticas actuais.
Não é só De Gaulle que se inquieta na sua campa, porque não é apenas a República Francesa que está em cheque. Está Monet, Adenauer e Schuman. Está uma visão homogénea da cultura europeia, de solidariedade e progresso, liberal e social-democrata, que nos regeu nos últimos 60 anos.
A culpa não está, repito, na polarização do eleitorado. Isso é uma consequência, nunca uma causa. O falhanço do sistema mundial está na classe política e financeira que a representou. Refastelada à sombra da ilusão da prosperidade, e assolada por um crise moral e identitária, refugiou-se na demagogia onde, já se sabe, o populismo xenófobo joga em casa. Conseguiram que os defeitos do sistema democrático voltassem à tona, tirando-nos o chão em que todos nos suportávamos. Trump é clinicamente oligofrénico, Le Pen é fascismo embelezado por filtros do instagram. Mas estávamos a precisar desta chapada populista. Lamento muito, mas é bem feita.