terça-feira, 11 de dezembro de 2012

A Senilidade Jurássica de Mário Soares

Nesta crónica irei dissertar sobre dinossauros. Para isso vou usar dois exemplos. O primeiro era um membro da minha família, que Deus a tenha, e o segundo é um membro proeminente da nossa elite política, que o Diabo se despache em levá-lo.

Aquilo que é interessante nos dinossauros é que analisar a sua existência permite tirar um vasto conjunto de ilações sobre a natureza efémera da vida, a transitoriedade do poder e a imprevisibilidade do fim. Os dinossauros dominaram a terra durante mais de 130 milhões de anos. Quando as primeiras espécies de dinossauros surgiram, no Triásico, a massa da Terra era um supercontinente, a Pangeia. No final do Triásico, um evento desconhecido causou a extinção em massa de cerca de metade das espécies do planeta. Assim começou a era Jurássica, dominada pelos dinossauros, onde a massa continental já se dividia gradualmente em dois continentes, a Laurásia e o Gondwana. Esse regime ditatorial reptílico duraria até ao final do Jurássico, quando um asteróide colossal esbarrou contra a Terra e eliminou grande parte dos dinossauros.

A minha tia-avó Guilhermina viveu até aos 94 anos. Era uma presença constante na mesa dos almoços de Domingo familiares. Todos na minha família se lembram da generosidade com que batia nos netos com a sua fiel vara, do seu racismo subtil e das suas opiniões políticas feudais. Ela sempre teve opiniões controversas, mas no capítulo final da sua vida, algo mudou. Quando ela antes dizia que Salazar tinha sido um ditador, mas que pelo menos ele não era um ladrão, agora ela dizia que o homem afinal era um santo. Como uma pessoa louca que sabe que ninguém está a prestar atenção, a solução passa por dizer coisas cada vez mais chocantes até eliminar a última réstia de sensibilidade e tolerância dos presentes.

Aquilo que ninguém na minha família admitia era que a minha tia-avó não era apenas uma idealista retrógrada. Ela estava a ficar senil. Os sinais eram claros. Estavam à vista de todos, mas ninguém queria ver. As frases incoerentes. A dicção arrastada. O discurso zangado e megalómano. Assim como ignorávamos as coisas racistas, estúpidas e loucas que a minha tia-avó de noventa anos dizia à mesa do jantar por atribuirmos esse ímpeto à sua ancianidade, também eu tenho tolerado as barbaridades que saem da boca de Mário Soares pela mesma razão compassiva.

Mário Soares é alguém que, num tempo longínquo, era relevante. Mas a sua relevância ministerial está, lentamente, a ser transformada numa vergonha nacional devido à sua sede obscena pela influência de outrora. Não há como negar. O nosso ilustre Senador não-oficial envelheceu e o resultado não é a complexidade crescente de um vinho que melhora com a idade, mas a inutilidade de um cavalo que é demasiado velho para puxar o arado.

Já observamos o Pai Socialista a ser apanhado a 199 km/hora num carro da Direcção-Geral do Tesouro e das Finanças tendo afirmado, com toda a seriedade, que “o Estado é que vai pagar a multa”. Já lemos a sua carta aberta hilariante. Ouvimo-lo, vezes sem conta, a afirmar que a “democracia” está a ser posta em causa. O antigo Presidente da República inventa uma realidade conveniente e utiliza hipérboles burlescas, ignorando os factos e chegando mesmo a inventá-los de modo a servir a sua causa política mercenária.

O homem que foi Primeiro-Ministro durante as duas primeiras intervenções do FMI em Portugal (1977 e 1983) em condições de austeridade muito mais rígidas (incluía o racionamento de alimentos e bens de primeira necessidade), agora critica o Governo por efectuar cortes residuais de despesa (em 2013 a despesa do Estado Social, relativamente ao PIB, será a quarta maior da história). Enquanto isso, a Fundação Mário Soares continua a receber milhões do Estado para desempenhar um papel sociocultural incerto.

Quando eu penso na minha tia-avó, aquilo que me ocorre era o seu estado mental decrépito. Segundo os meus pais, antes da velhice, ela tinha sido uma mulher extremamente liberal e simpática. Se continuarmos a ignorar os sinais, como a minha família fez com a minha tia-avó Guilhermina, o legado histórico de Mário Soares será destruído. O seu papel no combate à ditadura comunista que o Álvaro Cunhal queria implantar será esquecido. Se continuarmos a tratar o Mário Soares desta forma, dando-lhe um microfone e uma câmara sempre que ele quiser falar, a única coisa que sobrará será a sua flagrante e crescente senilidade.

A única coisa que sobrou dos dinossauros foram os fósseis e os seus descendentes, as aves. Os primeiros pertencem ao passado. As pessoas não pensam neles. Os segundos vivem no presente e, como tal, são mais importantes. As pessoas lembram-se sempre do passado mais recente porque está mais fresco nas suas memórias. Temo que, se Mário Soares não se calar, ele transformará o seu passado glorioso num fóssil encalhado num museu e o seu passado recente duvidoso numa ave que, mais tarde ou mais cedo, caga nas nossas cabeças.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A Tradição Humorística da Revolta Portuguesa

Para melhor ou para pior, se uma peça artística sobrevive ao julgamento implacável do tempo, isso é um sinal da sua qualidade. Quando, há mais de 137 anos, Rafael Bordalo Pinheiro criou a primeira ilustração do Zé Povinho, ele não tinha a menor ideia daquilo que tinha acabado de fazer. O autor tinha criado uma figura mítica que era imaculada na sua representatividade do espírito reivindicativo do povo português.

A simpática ilustração atravessou quatro regimes políticos diferentes da nossa história (cinco, se contarmos a actual “ditadura germânica dos mercados” que o Mário Soares jura existir), ao mesmo tempo que a relação dos portugueses com o poder não mudou significativamente ao longo das várias transições atribuladas. Ainda estamos aqui e, se aquilo que a caracterização da figura sugere é verdade, somos pobres e iletrados, banais e diminutivos, acomodados e inofensivos, apenas carne para canhão, cidadãos de segunda, esmagados pelo peso avassalador da corrupção, incapazes de fazer frente ao poder que nos arruína, ineptos para compor uma resposta que consista em mais do que um patife manguito.

A caricatura nacional é um piscar de olhos malandro para o nosso lado revoltoso e para a incapacidade crónica dos portugueses em levar a realidade a sério. Nem mesmo o seu próprio declínio merece a atenção lusitana. É uma incapacidade que surge quando a necessidade de comiseração é maior do que o medo das privações da miséria. Aquilo que o Zé Povinho nos conta é que os portugueses protestam e reclamam, mas não sabem o motivo do protesto e da reclamação. Aquilo que eles querem é alguém que sinta pena deles e que admita que, afinal, eles têm razão.

Quando não existem motivos verdadeiros para chorar, o riso é o instinto mais próximo. Isso se reflecte quando ouvimos as descrições que os portugueses nos oferecem sobre a crise. Ninguém enuncia problemas concretos da conduta governativa, ou as razões dos protestos através de algumas frases declarativas simples, com sujeito, predicado e complemento directo. Aquilo que se obtém, tendo em conta a amostra televisiva, radiofónica, impressa e real dos revoltados, são respostas rebuscadas, sem qualquer base factual, com tiques de teoria da conspiração, vitimização e extremismo socialista.

Os cartazes de protesto são outro sintoma da doença de que sofre o Zé Povinho. Os portugueses ainda utilizam, de forma generalizada, essa forma de humor sofisticado que são os trocadilhos. Dispensam a argumentação. Se rima, é suficiente. O resto são piadas óbvias e vulgares que são um desserviço ao país e um insulto à inteligência. É mais importante para os portugueses ridicularizar a situação com recurso a mentiras infantis do que ter um debate adulto.

Toda esta tradição de escárnio protestativo tem consequências. A gritaria distorce a realidade e retira o microfone da minoria que realmente sofre, das pessoas para quem a miséria é uma possibilidade real. No final, o microfone fica junto da boca daqueles que apenas sofrem por atenção. O protagonismo é reservado para as prostitutas mediáticas que valorizam a polémica, bombástico e o egocêntrico.

A narrativa que muitos portugueses querem desesperadamente fazer passar é a de que, sem os subsídios, o seu Natal será passado em casa, quase às escuras, com apenas a luz trémula de uma vela humilde no meio da mesa, enquanto a família partilha a última de lata de feijão. As crianças cantam hinos religiosos na outra sala, enrolados em jornais para combater o frio, depois de não conseguirem comprar um casaco de Inverno, devido aos cortes cegos avassaladores da política neoliberal de Passos Coelho, que não é nada mais do que um fantoche da Angela Merkel, a sobrinha-neta perdida do Hitler.

Assim como charutos e caviar, a verdade é sobrevalorizada. A sua posição central nos ditames da existência humana é inegável, mas a ubiquidade aparente da verdade é apenas uma ilusão. Por mais que se proclame a verdade como sendo um sustentáculo social, esta tanto é louvada como é flagrantemente ignorada. Os portugueses têm todo direito de se revoltarem perante o estado catastrófico do país. Mas a forma como desconsideram sistematicamente a verdade na hora de protestar é alarmante. Nessas ocasiões, a verdade é apenas um empecilho e não é difícil observá-la sendo estilhaçada, e o seu cadáver abandonado alegremente na berma da estrada.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Espiritismo


A palavra espírito e suas variantes são atiradas aos sete ventos: há o espírito de sacrifício, o espírito de equipa, o espírito das leis, as bebidas espirituosas, as pessoas espirituosas, o espírito santo (o banco e o terceiro componente da santíssima trindade), os espiritistas.

A conotação religiosa provoca-me uma certa aversão ao termo "espírito". Ao termo, não ao conceito. O conceito é mutável em certos aspectos, mas tem inevitavelmente em comum a noção de transcendência humana. Remete para uma quarta dimensão, inalcançável à lógica humana. A sua significância original é, no entanto, facilmente explicável: é aquela área indetectável do corpo onde reside a dor não-física.

Essa dimensão impalpável é, para alguns, de origem divina; para outros, como eu, é um fruto mental. No plano mental, existem, no entanto, dois aspectos distintos: o racional e o instintivo. Se a dor pudesse ser anestesiada racionalmente, não seria possível sequer conceber uma existência espiritual. Aquilo a que chamamos espírito tem na dor o plano concreto e na sua inexplicabilidade e indetectabilidade o seu plano abstracto. Daí, como eu disse, não se dever encarar o termo espírito com a denotação de qualquer tipo de existência extra-corporal, mas sim, como disse, como esse plano indefinido onde se manifesta a dor humana.

A dor que aqui falamos é a angústia do desconhecimento crónico do sentido da existência. Religião, filosofia e ciência nasceram do mesmo princípio. Com perspectivas e métodos distintos, todos tentam o mesmo: aclarar o desconhecido; amenizar a dor, tranquilizando o espírito. Todos falharam. Daí que a minha perspectiva da sabedoria nada tem a ver com o plano espiritual. É exactamente o oposto: provém da conformação da vida como algo terreno, casual e fugaz. Se não há uma verdade absoluta que acalme essa dor, nada nos resta senão entender o máximo da realidade onde nos encontramos prisioneiros, de forma a lidar com ela da forma mais sagaz possível. E encontrar o equilíbrio entre o egoísmo inato e saudável e o altruísmo que é respeitar os egoísmos dos outros que partilham, no plano espiritual, a mesma dor que nós. Quer crentes, quer ateus; que a mim também me dói ocasionalmente a alma, mesmo não acreditando que ela exista.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Se Isto é um Homem

Caso um leitor tropece involuntariamente no livro "Se Isto é um Homem", de Primo Levi, um tratado pessoal e memorial acerca do período experimentado em Auschwitz, campo de concentração alemão durante a II Guerra Mundial, e não saiba de ante-mão o assunto do livro, o químico e autor italiano faz na primeira frase, com inusitada crueza e íntima intenção, uma asserção que inquieta pelo seu simplismo e factualidade. Dedica parcimoniosas palavras perante o acontecimento que iria alterar irrevogavelmente a sua vida e, assim, a sua leitura acerca da natureza humana,: "Fui capturado pela Milícia fascista a 13 de Dezembro de 1943."


Ainda antes, a obra principia com um pequeno poema introdutório, deliberadamente provocatório, em que Primo Levi lança o repto aos que "vivem tranquilos" para considerarem se as vidas que irá prontamente apresentar, onde se perdiam os nomes e recebia-se um número, poderão ser consideradas como tal; e condena da mesma forma tanto aqueles que lhe fiquem insensíveis, como os que não propalem a sua história, que não foi menos que a de vários milhões, destituídos e isolados da humanidade - e na maior parte subtraídos. É quem mais tem dificuldade na sua recordação que mais faz questão que este nunca seja, nem assim o pode, um delírio encerrado no esquecimento colectivo.

O autor italiano discorre sobre aquilo que sabe ser, e várias vezes o refere, inenarrável para o comum mortal: a transfiguração de um homem para um "animal cansado". Dispõe-se, ainda assim, porque é a única maneira de estreitar a relação entre quem conhece - se é que esta palavra neste caso é permitida - e quem viveu,  a relatar com insuperável objectividade, que pontilha e intercala com reflexões, acontecimentos cuja emotividade é abstractamente irrepresentável, num auto-caracterizado exercício de "libertação interior".

Que ninguém parta para a obra com ilusões, ela não poderia ser mais esmagadora perante a essência humana. Primo Levi, praticamente ao jeito de crónicas capituladas, identifica e desmonta a organização logística e social do "Lager", onde os SS tinham até um papel bastante reservado. Demonstra, igualmente, de que forma um ser-humano pode ser privado da sua própria alma através da supressão da sua liberdade e dignidade, num local onde "o homem está só e a luta pela vida se reduz ao seu mecanismo primordial". Como a moralidade impetuosamente se transformaria somente numa palavra, a história interminavelmente pararia e a esperança assentaria no supremo desafio para os mais românticos, atendendo a que sonhar configurava-se uma ousadia desaconselhável: "Não se deve sonhar: o momento da consciência que acompanha o acordar é o sofrimento mais intenso". De resto, a caracterização dicotómica com que acabaria por percepcionar o trabalho traduz perfeitamente a convulsa condição de vida com que um Haftlinger - assim eram denominados - se deparava , uma vez que este era a fonte inesgotável do cansaço, que vergastaria em todas as dimensões qualquer um, embora, sincronicamente, uma distracção importante para suportar o dia-a-dia. Nada mais restava a um homem que a luta, por si só, para não deixar de o ser.

Nesta sua primeira e grande obra, Primo Levi atinge um discurso bastante lúcido, nunca moldado por sentimentos menores. Chega, no entanto, a ser perturbadora a moderação e precisão analítica que consegue imprimir às suas palavras face aos horrores que há tão pouco tempo tinha experimentado. O livro nada mais pretende ser que o retrato de uma história de sobrevivência humana num pântano impestado de desumanidade. Não que a obra se torne obrigatória para delimitar o mal que é aqui, afinal, facilmente e por demais reconhecível; mas para tomar consciência que a perversão incontrolada do Homem poderá não ter limites.

(A "crítica" foi escrita para efeito de um jornal académico. Dado que o tempo disponível actualmente é diminuto, e para não protelar a minha contribuição, fica a partilha e, acima de tudo, a sugestão)

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

A Mosca


No aeroporto Schiphol, em Amsterdão, foi diagnosticado um problema orçamental curioso: estavam a ser despendidas verbas demasiado avolutadas em produtos e serviços de limpeza nos quartos-de-banho masculinos. Tudo uma questão de falta de pontaria. O que se passaria para que os sujeitos, naquele quarto-de-banho em particular, não conseguissem direccionar a urina com a mesma precisão para um buraco de dimensões semelhantes aos do resto do mundo, era um mistério.

Foram adiantadas duas causas para o fenómeno: para começar, tratando-se de um aeroporto, os utilizadores estavam muitas vezes demasiado apressados para se preocuparem em mirar com precisão. Por outro lado, temos um factor daquele aeroporto específico: muitos dos quartos-de-banho tinham uma janela com vista para a pista de aterragem e descolagem, pelo que a distracção provocada pelos aviões impedia a concentração na coordenação e orientação da urina para o orifício destinado ao efeito.

Identificado o motivo de tantos derrames urinários, procedeu-se à implementação de uma brilhante medida: foram colocadas moscas de plástico em todos os urinóis e sanitas do aeroporto. Foi remédio santo. Todos os homens que outrora se distraíam com o tráfego aeronáutico e espalhavam a urina pelo chão e pelas paredes estavam agora entretidos com um jogo que todos os homens do mundo apreciam jogar: o de derrubar, com o jacto de urina, qualquer coisa numa retrete que não seja porcelana.

Este é um exemplo paradigmático de como funcionam os instrumentos políticos comportamentais. Para se resolver o problema, não se impuseram regras, nem se pagou dinheiro a quem não mijasse de fora. Não se optou por incentivos autoritários, regulamentares ou financeiros. Antes, jogou-se com o instinto humano. Pegou-se no conhecimento das atitude dos machos de todo o mundo e adaptaram-se as circunstâncias ao homem, e não o contrário.

Este tipo de instrumentos é, porventura, o mais perigoso. É o mais suave mas, por ser deveras dissimulado, é indetectável. Mais do que isso: podemos contornar regras, abandonar o país ou destituir governos. Mas não podemos fugir de nós próprios e do instinto de mijar sobre as moscas.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

A Mediocridade Flagrante de António José Seguro

É estimado que cerca de oitenta por cento da matéria do Universo é constituída por matéria negra. Este facto é particularmente estonteante se considerarmos que a própria existência da matéria negra é apenas uma hipótese. Não sabemos muito sobre este elemento abundante. Nem sequer sabemos exactamente o que é. Não é possível observá-la directamente através de telescópios. A veracidade da sua existência é passível a ser deduzida devido aos seus efeitos gravitacionais em objectos observáveis.

As incertezas sobre os fenómenos físicos do Universo abundam, mas nenhum deles me perturba tanto quanto a hipótese da existência de António José Seguro. Existe uma ideia de um António José Seguro. Uma construção socio-metafísica. Assim como a matéria negra, não é possível observá-lo ou ouvi-lo directamente. Apenas existem indícios secundários da sua existência. É possível inferir logicamente que ele existe devido aos seus efeitos nocivos na massa encefálica do homo sapiens.

Analogias mirabolantes à parte, desde que António José Seguro tomou as funções de líder da oposição, ainda não foi possível vislumbrar quaisquer sinais de vida no Partido Socialista. A oposição racional desapareceu. Não que eu tivesse esperanças ou desejos que isso pudesse ocorrer. Como regra geral, sou da opinião de que nada de bom pode advir de um partido nominalmente socialista. Mas sabemos que a situação é excepcionalmente grave quando o partido é liderado por um par de óculos que flutuam no vazio demagógico da esquerda.

A verdade é que eu até consigo ver António José Seguro nitidamente. Eu consigo ver a sua casca, o fato e a gravata. Eu ouço discursos ensaiados e soundbytes assessorados. É notório que alguém labutou como um condenado para compor este golem político. Está tudo lá. A cara solidária. Os óculos da seriedade. A gesticulação revoltada. O tom de voz indignado. Ele está em todo lado. Na televisão, a espalhar esperança contrafeita. Na rádio, a espalhar indignação oca. No Facebook, a induzir o vómito com a sua carta juvenil.

António José Seguro emite todos os sinais de alguém que não sabe do que está a falar, não entende o que está a ouvir e não sabe o que vai fazer. Ouvimos algumas ideias vagas de crescimento contra a austeridade e optimismo contra a realidade. Não é suficiente. Ele devia ter continuado na obscuridade conveniente das entranhas da máquina partidária socialista. Aí, no atoleiro ideológico da esquerda portuguesa, o seu ar secretarial teria uma utilidade ou, pelo menos, estaria longe das câmeras, gravadores e canetas.

O que é triste é que alguém com a aparência de António José Seguro tinha a obrigação de contrariar as expectativas criadas pela sua aura de bibliotecário-contabilista. Ele não só ignora esse imperativo, como reforça todas as associações enfadonhas que a sua aparência suscita. E aqui estamos nós. No norte, à distância, avistamos o início do precipício da catástrofe financeira. No sul, somos empurrados para o buraco pela prata da casa partidária.

As últimas sondagens indicam que o Partido Socialista lidera as intenções de voto. O homem que, há apenas um ano e meio, defendeu e apoiou José Sócrates, agora culpa o Governo por não conseguir resolver todo o imbróglio financeiro português durante esse período. Juntamente com a frustração e a ira proveniente da austeridade, a utilização da mistura explosiva de óculos e demagogia pode ter funcionado com o eleitorado mas, infelizmente para o Zé, não são um substituto adequado para uma personalidade.

A incerteza criada por esta crise não permite especulações de grande clarividência. Mas entre o vácuo humano de António José Seguro, o vácuo moral de Miguel Relvas e o vácuo testicular de Pedro Passos Coelho, tenho a certeza que uma solução irá aparecer. Poderá não ser eficaz. Poderá não ser competente. Mas podemos concordar que, para o espectador lúdico da política portuguesa, pelo menos será interessante.

domingo, 11 de novembro de 2012

João Oliveira e Alexandre Pais

Troca de cartas entre um adepto da Académica e Alexandre Pais (director do Record).



Esta ausência de sintonia entre o que deve ser e o ter de ser por consequência de motivos de ordem económica é um dos paradigmas actuais mais preocupantes do e para o pensamento de uma sociedade. A situação apresentada que antecede este comentário é um caso concreto de uma publicação periódica desportiva, mas é apenas um pequeno reflexo de algo que é evidentemente endémico na comunicação social portuguesa. E não só. Essa dominação “editorial” – e consciente - encontra-se também na televisão, no cinema, na rádio, especialmente na música, e até, em determinada medida, na literatura. Facilmente dir-se-á que é uma perversão económica na procura pelo lucro; naturalmente, embora distante de ser esse o problema. A agrura é que deriva da, esta sim, perversão do bom-gosto, de uma mentalidade maioritária que determina grandemente os conteúdos das várias dimensões referidas, por estes serem os seus predilectos. E aqui há nova derivação: isto implica naturalmente uma produção de conteúdos para ir de encontro a essa procura, isso é-nos a todos suportável, o maior prejuízo é a necessidade da mais que visível subversão daquela que deveria ser a sua hierarquia e proporção na oferta.

Divido-me entre a simpatia pelo João Oliveira e a compreensão da opção pragmática de Alexandre Pais. Do mais, resta retirar que muito do que se pensa depende inevitavelmente no que se pensa e ao que se acede, bem como que uma sociedade pode ser caracterizada por aquilo que prefere. Todavia, pouco há mais que se possa fazer.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Guerra dos Sexos


Quando eu tinha dezasseis anos, mostrei a uma colega, numa aula de filosofia, duas páginas rabiscadas e parcialmente rasuradas de um pequeno texto que se assemelhava a um início de um romance. Continha apenas um enquadramento espacio-temporal da história, não indicava sequer personagens. Ela disse-me que eu escrevia como uma velha.

Fiquei, na altura, extremamente ofendido. Não por ter uma escrita idosa; prefiro que a minha escrita seja identificada com alguém mais velho do que a minha tenra idade seja perceptível nas minhas palavras. O que me ofendeu foi escrever como uma mulher.
Os homens, na quase totalidade dos casos, escrevem melhor do que as mulheres. Este pressuposto, que eu apresento de forma factual e não opinativa, é naturalmente polémico, mas é uma realidade incontornável. Não desconheço os grandes nomes femininos da literatura; mas Jane Austen, Virginia Woolf, Isabel Allende, Agatha Christie e companhia ficam a anos-luz dos grandes mestres.

A explicação terá, naturalmente, raízes históricas: a alfabetização das mulheres foi tardia e pouco abrangente, pelo que é natural que sejam os homens mais reconhecidos pelas suas ideias. Se apenas os homens tinham acesso ao conhecimento, é uma consequência lógica que apenas estes possam usufruir dele para o fazer evoluir. Este facto, porém, não se limita à actividade literária. Pelo contrário, é comum a todas as áreas do conhecimento, quer humanístico, quer científico. Na sociedade actual, de igualdade no acesso ao ensino e de universalidade de acesso à informação, isto foi quase totalmente ultrapassado. Mas não confundamos os conceitos: equidade não é igualdade. A equidade é um pilar democrático; a igualdade é utópica e perigosa.

A luta por essa equidade não deve fazer-nos ignorar as características idiossincráticas de cada um dos géneros. O problema é que a sociedade se vê ainda assombrada pelos fantasmas da superioridade masculina. Está a dar-se com os sexos o mesmo fenómeno que se deu depois do final da discriminação racial, a que eu chamo de preconceito invertido. Recordo-me de uma situação, numa fila de uma padaria, em que um sujeito de raça negra pediu às pessoas para passar à sua frente. Como isso não lhe foi concedido, queixou-se de discriminação. Começa a passar-se o mesmo com as mulheres. O feminismo foi útil no tempo em que se queimavam sutiãs; agora, na sua forma de machismo invertido, assume outras proporções perigosas.

Assisti a um exemplo paradigmático disto mesmo no programa Real Time, um programa de comentário político da cadeia americana HBO, apresentado pelo humorista Bill Maher. Anne Coulter, uma figura pública de cariz conservador, acusou Bill Maher de ser misógino por este criticar frequentemente Michelle Bachmann e Sarah Palin. A resposta do apresentador foi contundente: "They just happened to be women. Do you really think I'm harder with them than I was with Bush, a penis-carrying man?". Mesmo considerando a estupidez de Coulter enquanto fonte da acusação, esta traduz este sentimento de atribuir machismo a quem não for feminista.

Isso origina a existência de mulheres com mediatismo que assumem uma postura de "cheguei aqui, apesar de ser mulher"; um comportamento geral, independente das suas ideias, mérito ou espectro político, e completamente descontextualizado da conjetura actual de equidade social. Como exemplo, temos Clara Ferreira Alves, Joana Amaral Dias, a ministra Assunção Cristas ou, noutro estilo mais histérico, Ana Drago ou Heloísa Apolónia. Repito: nada tem a ver com o que dizem, mas sim com a sua postura geral que é idolatrada pelas mulheres, mas que deveria, mais até para elas, ser ofensiva.

Esta fenómeno já é perigoso no contexto social, mas ainda mais fica quando atinge o espectro político. Tem sido demasiadas vezes colocada em cima da mesa a possibilidade de medidas que visam forçar a paridade na Assembleia da República, nomeadamente através da introdução de percentagens obrigatórias de lugares ocupados por mulheres das listas candidatas. Esta medida tenta, através da brutalidade legislativa, acelerar um processo que se quer natural numa sociedade democratizada e é, na sua essência altamente anti-democrática. Duas duas uma: ou aceitamos que o que temos no meio das pernas não conta para nada, e portanto não se legisla sobre isso; ou admitimos que é importante e o feminismo terá de assumir a mesma conotação de crueldade e de sentimento de superioridade do machismo.

Porque as diferenças existem, e todos as conhecemos. A equidade já foi atingida, e essa questão ultrapassada. Mas paridade não é igualdade de qualidades e defeitos inerentes ao sexo. Os homens são melhores na escrita, as mulheres serão beneficiadas noutras coisas. Não é ultrapassar as diferenças que falta na sociedade; aceita-las, sem fantasmas nem preconceitos, é que é o passo que falta para a pacificação da luta entre os sexos.

domingo, 7 de outubro de 2012

Prepúcio


Sabemos todos que o Deus descrito no Antigo Testamento era pouco benevolente no que toca a desrespeitar as suas ordens. Não precisavam de ter uma lógica ou moral por trás; muitas vezes, Deus mandava só para ver quem lhe obedecia. No Livro do Êxodo, há um momento em que Deus pretende matar Moisés pelo facto do seu primogénito não ser circuncisado. E é quando Deus está prestes a obliterar o profeta que a sua mulher, Zípora, num acto de frieza, coragem e perversidade, pega numa pedra aguda, rasga o prepúcio do seu filho e atira o pedaço ensaguentado de pele peniana aos pés do marido que acabou de salvar. Deus, não só porque já não tem motivos para matar Moisés, como também, acrescento eu, assustado pela barbaridade repentina da mutilação, deixa a família do profeta em paz.

Convosco partilho esta mágica passagem depois de ter descoberto algo que ignorava imperdoavelmente: o prepúcio dilacerado de Jesus Cristo é uma relíquia da Igreja Católica. Sabia, por conhecimento das tradições judaicas, que o prepúcio do nazareno havia sido provavelmente cortado; não tinha conhecimento, no entanto, que a sua pertença era tão disputada por várias igrejas e que até vários milagres foram já atribuídos a esta preciosa membrana.

Não tenho a certeza da utilidade desta informação, nem da pertinência da sua partilha com os leitores. Talvez não sirva para mais do que pelo intrínseco valor humorístico da crença em milagres realizados pelo pedaço de pele que cobria a parte superior do pénis de Cristo. Desejo, pelo menos, que algum leitor se tenha sentido impelido a redigir uma obra à imagem de "O Código Da Vinci", mas com todas as pistas a levarem a um desenlace surpreendente onde é descoberto o paradeiro, não do Santo Graal, mas do sacro prepúcio do Senhor.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Chuck Norris





O ponto mais alto da febre Chuck Norris já passou, mas esta ainda subsiste. A real dimensão deste fenómeno verdadeiramente cultural, à escala planetária e instilado nas teias da Internet, é incognoscível, dadas as estratosféricas referências. Como nenhum terráqueo, Chuck Norris é omnisciente, omnipresente e omnipotente. Os mais ousados dirão que teve nas suas narinas a origem do furacão Katrina e que o desastre nuclear de Fukushima teve ocorrência após ter degustado a feijoada da cantina de Direito. Tudo pertence, como é evidente, a um cúmplice imaginário colectivo a que a Carlos Ray Norris Jr somente cabe não fazer nada de muito clamoroso para contrariar.

Cabia. Somente cabia. É precisamente aqui que quero chegar. Acabou: quem quiser continuar a fazer estas piadas com legitimidade que não veja o vídeo que encima este texto. Embora, doravante, o fará com a ténue legitimidade do não conhecimento da situação. O mais fascinante é que bastam apenas os oito segundos iniciais para tudo ruir. Quando estamos a falar de um espécime que em si concentra mais testosterona que a soma de todos os demais, a Chuck Norris não basta sê-lo virtualmente, tem de o parecer. Não pode principiar a sua intervenção aparentando ser um dançarino homossexual esquizofrénico enquanto se apresenta a si e à sua mulher. Muito menos afirmar, de seguida, que ali se encontra para falar de uma preocupação que todos partilhamos. A ele? Chuck Norris não tem qualquer tipo de problema, muito menos mundanas preocupações. Nem partilha o que quer que seja com os remanescentes seres viventes. 

A totalidade do vídeo é uma afronta ao comum mortal com o mínimo de capacidade crítica. Tanto em forma como em conteúdo é puramente burlesco. Consigna expressões que até para a demagogia são demagógicas, como: “the way of socialism or something much worse” e “We will preserve for our children this last best hope of man on earth, or we will sentence them to take the first step into a thousand years of darkness”. 

O aviso está dado: quem votar em Obama poderá contar com a verberação de Chuck Norris. Pouco interessa. Não haverá mais quem acredite, nem o maior dos inocentes e dos cobardes, que Chuck Norris irá, com impiedoso estropício, interpelar esses hereges dissidentes num plácido momento no seio do seu lar. É sempre miserável, embora seja sempre assim que acontece, quando a destruição de um ícone vem com a sua fatal e incontornável humanidade.

sábado, 29 de setembro de 2012

Sangue, suor e lágrimas de sangue

"Os mistérios da vida" são um conjunto de quatro palavras utilizadas por maus escritores para começar frases banais e pelos sábios populares para tentar impingir alguma sabedoria barata em assuntos que eles não dominam. É também por aí, temo, que esta crónica irá começar e, subsequentemente, descarrilar. Portanto, se estiverem dispostos a sofrer e a perdoar a minha pobre escolha de palavras para o início desta crónica, aqui vai.

Ah, os mistérios da vida... São complexos e infinitos, e muitos outros adjectivos relativos à extensão vasta dos fenómenos terrenos. Neles se podem incluir as dúvidas do foro filosófico-existencial-religioso sobre o início do Universo e o sentido da vida. São as complicações das instituições humanas, nas suas diversas manifestações políticas e sociais, e também incluem os mistérios das relações sociais, nas suas diversas modalidades de amizade, inimizade, amor e indiferença. No entanto, o assunto sobre o qual tentarei dissertar não está incluído nestas categorias enigmáticas. O assunto desta crónica são os mistérios do corpo humano.

Quem já viu o Woody Allen em acção, encarnando personagens neuróticas e obsessivas nos seus filmes, sabe certamente o que são os mistérios do (nosso) corpo. Como somos criaturas frágeis, somos susceptíveis a um conjunto diverso de maleitas e lesões que podem trazer um fim abrupto à nossa jornada despreocupada por este planeta. O hipocondríaco que vive em todos nós sofre pelos diversos sinais e sintomas que surgem esporadicamente e nos alertam para o perigo real e imaginado que é a morte.

Quando, há dois meses, acordei com uma dor lancinante na pálpebra inferior do olho esquerdo, imediatamente pensei o pior. Um diagnóstico prematuro surgiu depois da minha consulta inicial com a autoridade médica omnisciente que é o Google. Era cancro. Um tumor cerebral. Um enxerto maligno. A chaga do século XXI. Uma enorme massa de células mal formadas a brotar no meu cérebro destinadas a acabar com a minha vida ou, pelo menos, a minha visão. Uma semana depois, no local da dor, surgiu uma pequena elevação inflamada. Ainda paranóico, mas decidindo não confiar nos poderes científicos da Internet, marquei uma consulta com um oftalmologista.

O médico aparentava ter uma centena de anos. Tinha uma voz grave, ríspida e baixa. Os seus fartos cabelos brancos confundiam-se com a tez cadavérica da sua pele que, por sua vez, confundia-se com o branco industrial da sua bata. Ele era uma daquelas pessoas imersas num mar de bom humor permanente, talvez por saber quanto ele receberia por aquela consulta (humor, desespero e surpresa - a santíssima trindade de coisas que não devem ser expressadas por médicos). Mostrava também a característica mais irritante que um médico pode ter - arrogância. Ele falava num tom jocoso e académico, como se fosse um oráculo supremo a conceder pérolas de conhecimento ao paciente leigo, ingénuo e confuso.

Quando, depois de uma examinação avançada a olho nu, ele revelou que era apenas um calázio, respirei de alívio. Por cinco segundos. O médico informou-me que seria necessário um pequeno procedimento cirúrgico para remover o calázio. Mandou-me deitar na mesa de operações da sala ao lado. Uma enfermeira entrou na sala e aplicou líquido anti-séptico à volta do meu olho. O médico entrou e, com uma injecção na pálpebra inferior, aplicou a anestesia. Cinco minutos passaram. A anestesia começou a fazer efeito e eu já não sentia qualquer toque à volta do olho esquerdo. O médico pegou num bisturi. Fiz uma pergunta:

- Em que consiste o procedimento?
- Se eu lhe disser, eu já não lhe sirvo. O jovem pode fazer a operação sozinho - disse ele, sorrindo.
- Sim, doutor, mas eu não estou a tentar descobrir os segredos do seu ofício para abrir o meu próprio consultório. Eu só quero saber o que é que o homem a segurar um bisturi vai fazer ao meu olho.
- Não se preocupe.

O que o médico não sabia era que, para mim, a frase "não se preocupe" é a frase mais inútil da língua portuguesa. Ele não disse nada e sorriu mais uma vez. O bisturi aproximou-se do meu olho. Temi espirrar. Temi a instabilidade da mão do médico que provavelmente estava vivo durante do Regicídio de 1908. Eu pensava que a operação duraria cinco minutos. Acabou por durar vinte. Já estive em acidentes de carro. Já fui assaltado com recurso a uma faca. Uma vez quase me afoguei numa piscina de ondas. Mas durante aqueles vinte minutos passei por uma das experiências mais aterradoras da minha vida. Não só eu estava completamente consciente, como também tinha os olhos abertos. No meu campo de visão eu via duas pessoas a olharem directamente para mim enquanto aplicavam a ponta afiada de várias ferramentas cirúrgicas no meu olho. A anestesia não funcionou. Aliás, funcionou, mas apenas parcialmente. Eu conseguia sentir o que eles estavam a fazer. Não era apenas desconfortável. Era doloroso. A dor era suportável, mas como a carnificina estava a ser realizada num olho, digamos que não é uma experiência que eu queira repetir. Sinceramente, acho que preferiria cancro.

Ah, os mistérios da vida. Sao complexos e infinitos. Tumores malignos acabam por ser calázios benignos. Liberais acabam por ser socialistas. Nada parece o que é. Há coisas que não têm resposta. Deus sabe. Tudo isso e mais uma série de clichés expressos pelos provérbios populares. A única coisa que eu sei é que existem mistérios da vida que são simples, mistérios da vida que são complicados e mistérios que acabam por ser dolorosos. Estes últimos devem permanecer mistérios eternos. Os mistérios do corpo humano são fascinantes quando envolvem as outras pessoas mas, quando somos nós as vítimas, estes acabam sempre por envolver bisturis e sangue.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Filoctetes

O André Mota já havia aqui falado das produções literárias e filosóficas dos gregos clássicos; partilhamos esse fascínio por seres que, perdidos num tempo de obscuridade e desconhecimento, alcançaram por via da razão as mais espantosas conclusões acerca da natureza humana e cósmica, e as propagaram até que chegassem até nós, que vivemos numa época de informação absoluta e acessível e procuramos, ainda assim, a sua ajuda, a destes génios que pereceram há 2500 anos, na procura da iluminação. Assim vos apresento uma passagem de Filoctetes, uma notável peça de Sófocles, um dos pais da arte dramática.

A contextualização é simples: após ter sido mordido no pé por uma víbora venenosa, Filoctetes é abandonado numa ilha deserta, sem nada mais do que o seu arco, que durante dez anos usou para caçar e subsistir-se, já que não consegue deslocar-se senão com grandes dificuldades. Quando Ulisses e Neoptolemo o ludibriam e assim se apoderam do seu arco, tentando convencer Filoctetes a voltar com aqueles que o abandonaram, este rejeita, apesar dessa decisão significar uma morte lenta e dolorosa. Inutilizado e sem arma com que caçar alimento, Filoctetes volta para a gruta que habita há dez solitários anos e, confrontado com a morte certa no abandono, fala aos pássaros dos quais se alimentou durante a sua estadia, preparado para "pagar com a morte a sua morte":

"Ó gruta de côncava rocha,
abrasadora e gelada! Assim
estava condenado - que infeliz eu sou! -
a não te deixar jamais.
Da minha morte serás única testemunha.
Ó aves rapaces e feras,
e olhar flamejante, que habitais
os montes desta região,
nunca mais da minha gruta vos acercareis
para logo fugirdes. Já não tenho nas mãos,
como dantes, a força dos meus dardos.
Oh! como sou desgraçado agora!
Livre fica este lugar,
não mais é temível para vós.
Vinde, que a altura agora é bela
para saciar a gosto as fauces vingadoras
na minha carne corrompida.
Em breve deixarei a vida.
Donde me virá subsistência?
Quem pode de brisas nutrir-se,
quando já não possui nada
de quanto produz a terra fecunda?"

Raros são os artistas que, por palavras apenas, espelharam de forma tão convincente, aliada a um brilhantismo semântico assombroso para a época, a dor alheia (e ficcionada) perante a inevitabilidade de uma morte sofrida.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Milan Rados Radenovich (1951-2012)


"Então Jesus afirmou - Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá." (João 11:25 - Bíblia Sagrada)

Morte e impostos. É impossível escapar ao seu alcance. São forças poderosas que acabam sempre por nos encontrar numa forma indiferente à nossa conveniência. Pelo menos os impostos são compreensíveis. São o preço que pagamos por uma sociedade civilizada. No entanto a morte pode até ser estudada exaustivamente, mas a sua inevitabilidade, os seus movimentos discretos de vulto, sempre à espreita nas nossas costas, faz com que seja uma verdade irreconciliável com os nossos instintos mais básicos.

Quando alguém da nossa vida morre, além da tristeza que vem com a perda humana irreparável, surge também uma advertência que nos lembra da nossa própria mortalidade. Lembra-nos que somos apenas carne, sangue e células no meio de um equilíbrio frágil e instável com os elementos de um universo desprovido de significado.

Milan Rados Radenovich morreu, neste sábado, aos 61 anos de idade, terminando em Espanha um percurso que se iniciou na antiga Jugoslávia. Não conheço bem os detalhes da sua vida pessoal. Sei que, em primeiro lugar, foi um filho, irmão, marido e pai. Às pessoas da sua vida não tenho nada a oferecer senão as minhas sentidas condolências. Foi também jornalista, autor e professor universitário. É no seio destas competências que posso oferecer o meu humilde testemunho.

Frequentei três cadeiras leccionadas pelo Professor Milan Rados durante a minha frequência do curso de Ciências de Comunicação na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Foram estas - História do Mundo Contemporâneo; Ciência Política; Relações Internacionais.

Nenhum outro professor me inspirou tanto interesse nas cadeiras que leccionava como o Professor Milan Rados. O que me marcou não foi apenas a sua personalidade lendária que incluiu para sempre no imaginário cultural do curso um conjunto de chavões humorísticos que todos os alunos (cervejeros!) que passaram pelas suas salas de aula certamente se lembram. O que me marcou foi o ambiente que o professor impingia nas suas aulas.

Não eram apenas palestras onde o professor limitava-se a enunciar a matéria exposta em apresentações de Power Point. As aulas podiam ser apenas isso, mas a sua boa vontade acabava por transformar aquelas duas horas em debates e simpósios. Cheguei a estar presente em aulas onde quase não se falou sobre a matéria do programa da cadeira. Discutiam-se opiniões sobre assuntos da actualidade. Criavam-se cenários hipotéticos no campo das relações internacionais - passamos uma hora a discutir a possibilidade da ocorrência de uma Terceira Guerra Mundial.

Essa liberdade retórica fazia com que as aulas fossem mais do que a simples transmissão asséptica e inofensiva de conhecimentos formais. Criava uma sede sem fim pelo conhecimento universal. Aspirava a dar aos alunos os benefícios da relação simbiótica entre saberes teóricos e aplicações práticas. Acordava-nos para realidades impossíveis, deixando-nos inconformados com o triste estado deste mundo. E incutia aquilo que eu considero a maior dádiva de uma educação universitária - a liberdade de pensamento - que nos permitiria formar opiniões independentes e, quem sabe, encontrar alternativas e soluções.

O Professor Milan Rados morreu, mas eu nunca aceitarei a sua morte. Aliás, nunca aceitarei a morte. Recuso-me. Ela acontecerá na mesma, disso não tenho dúvidas. A espécie humana olha para a morte e vê um inimigo. Algo a ser erradicado. Assim como acredito que um dia iremos dominar o espaço sideral com o nosso engenho e criatividade, creio que um dia, muito distante do presente, a raça humana irá dominar a morte, fazendo com que esta possa apenas ocorrer segundo a nossa vontade. As pessoas que admiramos e gostamos deixarão de ser afectadas por esse empecilho supremo que é a morte. Mas, até lá, as pessoas que gostamos e que já se foram, e nestes incluo o Professor Milan Rados, terão que, tragicamente, se contentar com as limitações de continuar a viver apenas nas nossas memórias.

Não acredito em Deus. Não acredito em nenhuma forma de transcendência objectiva. Mas se existe alguma coisa que me faz sentir romântico sobre a espécie humana, é isto. A nossa capacidade de prolongar a vida dos mortos. A nossa memória colectiva habitada por familiares e amigos perdidos. A teimosia milenar da nossa recusa da morte. A nossa luta para transformar a inevitabilidade e a impossibilidade em conceitos do passado.

domingo, 23 de setembro de 2012

A relação dos portugueses com a democracia

Isaltino Morais: Presidente pela primeira vez em Oeiras em 1985. Em 2005, é arguido em processos de corrupção passiva, fraude fiscal, branqueamento de capitais e abuso de poder. O PSD, por isso mesmo, não o apoia na sua candidatura para a autarquia. Ainda assim, alcança a eleição, enquanto independente, com 34% dos votos, sob a égide de campanha "Isaltino - Oeiras Mais à Frente". Em Agosto de 2009 é condenado a sete anos de prisão, perda de mandato e uma indeminização de cerca de meio milhão de euros. Consegue, através de recursos ao Ministério Público, suspender a pena antes das autárquicas, de 11 de Outubro, podendo assim voltar a candidatar-se: é eleito com, desta vez, 41,52% dos votos. 

Fátima Felgueiras: Presidente da Câmara Municipal de Felgueiras, vê-se em 2003 acusada de corrupção, sendo emitida uma ordem de prisão preventiva em seu nome. Deserta para o Rio de Janeiro por ter dupla nacionalidade brasileira. Em Setembro de 2005 regressa a Portugal. É tão rapidamente detida quanto libertada, esperando por julgamento em liberdade. Candidata-se às autárquicas de Outubro do mesmo ano como independente: é eleita.

Valentim Loureiro: Eleito para a Câmara de Gondomar pela primeira vez em 1993. Re-eleito em 1997 e 2001. Em 2005, o PSD retira o seu apoio partidário devido ao escândalo "Apito Dourado", cujo processo judicial lhe dedicou quatro anos de pena suspensa em 2008. Candidata-se, porém, nas autárquicas de 2005 como independente: é eleito.

Exemplos de escolhas eleitorais por completo incompreensíveis e que só podem ser motivo de preocupação, para não estar a perder tempo em estilizar insultos. Numa altura em que foi recentemente publicada uma sondagem da Universidade Católica, que demonstra que 87% dos portugueses estão desiludidos com a democracia, e que não é para menos, convém não esquecer que somos nós que elegemos os políticos que tanto gostamos de insultar. A desresponsabilização do eleitorado num regime democrático é meio caminho andado para o sistema estar condenado. Se os governantes têm de assumir responsabilidades perante os governados que os destacam para essas funções, ressalta a gravidade da importância dessas escolhas, que emergem como corolário e são sintomáticas do nosso grau de ética e cultura. Nomear políticos que são reconhecidamente corruptos faz de nós mais conscienciosos cúmplices que eventuais vítimas e é indesculpavelmente anti-democrático. Só restam duas possíveis explicações: profunda ignorância e/ou conivência, desde que os nossos interesses estejam a ser atendidos, sem querer saber a por que meios e com que consequências.

As autárquicas vão ser daqui a sensivelmente um ano e era de muito bom tom que não estivessem novamente envoltas neste ensandecimento nada distante.