sábado, 29 de setembro de 2012

Sangue, suor e lágrimas de sangue

"Os mistérios da vida" são um conjunto de quatro palavras utilizadas por maus escritores para começar frases banais e pelos sábios populares para tentar impingir alguma sabedoria barata em assuntos que eles não dominam. É também por aí, temo, que esta crónica irá começar e, subsequentemente, descarrilar. Portanto, se estiverem dispostos a sofrer e a perdoar a minha pobre escolha de palavras para o início desta crónica, aqui vai.

Ah, os mistérios da vida... São complexos e infinitos, e muitos outros adjectivos relativos à extensão vasta dos fenómenos terrenos. Neles se podem incluir as dúvidas do foro filosófico-existencial-religioso sobre o início do Universo e o sentido da vida. São as complicações das instituições humanas, nas suas diversas manifestações políticas e sociais, e também incluem os mistérios das relações sociais, nas suas diversas modalidades de amizade, inimizade, amor e indiferença. No entanto, o assunto sobre o qual tentarei dissertar não está incluído nestas categorias enigmáticas. O assunto desta crónica são os mistérios do corpo humano.

Quem já viu o Woody Allen em acção, encarnando personagens neuróticas e obsessivas nos seus filmes, sabe certamente o que são os mistérios do (nosso) corpo. Como somos criaturas frágeis, somos susceptíveis a um conjunto diverso de maleitas e lesões que podem trazer um fim abrupto à nossa jornada despreocupada por este planeta. O hipocondríaco que vive em todos nós sofre pelos diversos sinais e sintomas que surgem esporadicamente e nos alertam para o perigo real e imaginado que é a morte.

Quando, há dois meses, acordei com uma dor lancinante na pálpebra inferior do olho esquerdo, imediatamente pensei o pior. Um diagnóstico prematuro surgiu depois da minha consulta inicial com a autoridade médica omnisciente que é o Google. Era cancro. Um tumor cerebral. Um enxerto maligno. A chaga do século XXI. Uma enorme massa de células mal formadas a brotar no meu cérebro destinadas a acabar com a minha vida ou, pelo menos, a minha visão. Uma semana depois, no local da dor, surgiu uma pequena elevação inflamada. Ainda paranóico, mas decidindo não confiar nos poderes científicos da Internet, marquei uma consulta com um oftalmologista.

O médico aparentava ter uma centena de anos. Tinha uma voz grave, ríspida e baixa. Os seus fartos cabelos brancos confundiam-se com a tez cadavérica da sua pele que, por sua vez, confundia-se com o branco industrial da sua bata. Ele era uma daquelas pessoas imersas num mar de bom humor permanente, talvez por saber quanto ele receberia por aquela consulta (humor, desespero e surpresa - a santíssima trindade de coisas que não devem ser expressadas por médicos). Mostrava também a característica mais irritante que um médico pode ter - arrogância. Ele falava num tom jocoso e académico, como se fosse um oráculo supremo a conceder pérolas de conhecimento ao paciente leigo, ingénuo e confuso.

Quando, depois de uma examinação avançada a olho nu, ele revelou que era apenas um calázio, respirei de alívio. Por cinco segundos. O médico informou-me que seria necessário um pequeno procedimento cirúrgico para remover o calázio. Mandou-me deitar na mesa de operações da sala ao lado. Uma enfermeira entrou na sala e aplicou líquido anti-séptico à volta do meu olho. O médico entrou e, com uma injecção na pálpebra inferior, aplicou a anestesia. Cinco minutos passaram. A anestesia começou a fazer efeito e eu já não sentia qualquer toque à volta do olho esquerdo. O médico pegou num bisturi. Fiz uma pergunta:

- Em que consiste o procedimento?
- Se eu lhe disser, eu já não lhe sirvo. O jovem pode fazer a operação sozinho - disse ele, sorrindo.
- Sim, doutor, mas eu não estou a tentar descobrir os segredos do seu ofício para abrir o meu próprio consultório. Eu só quero saber o que é que o homem a segurar um bisturi vai fazer ao meu olho.
- Não se preocupe.

O que o médico não sabia era que, para mim, a frase "não se preocupe" é a frase mais inútil da língua portuguesa. Ele não disse nada e sorriu mais uma vez. O bisturi aproximou-se do meu olho. Temi espirrar. Temi a instabilidade da mão do médico que provavelmente estava vivo durante do Regicídio de 1908. Eu pensava que a operação duraria cinco minutos. Acabou por durar vinte. Já estive em acidentes de carro. Já fui assaltado com recurso a uma faca. Uma vez quase me afoguei numa piscina de ondas. Mas durante aqueles vinte minutos passei por uma das experiências mais aterradoras da minha vida. Não só eu estava completamente consciente, como também tinha os olhos abertos. No meu campo de visão eu via duas pessoas a olharem directamente para mim enquanto aplicavam a ponta afiada de várias ferramentas cirúrgicas no meu olho. A anestesia não funcionou. Aliás, funcionou, mas apenas parcialmente. Eu conseguia sentir o que eles estavam a fazer. Não era apenas desconfortável. Era doloroso. A dor era suportável, mas como a carnificina estava a ser realizada num olho, digamos que não é uma experiência que eu queira repetir. Sinceramente, acho que preferiria cancro.

Ah, os mistérios da vida. Sao complexos e infinitos. Tumores malignos acabam por ser calázios benignos. Liberais acabam por ser socialistas. Nada parece o que é. Há coisas que não têm resposta. Deus sabe. Tudo isso e mais uma série de clichés expressos pelos provérbios populares. A única coisa que eu sei é que existem mistérios da vida que são simples, mistérios da vida que são complicados e mistérios que acabam por ser dolorosos. Estes últimos devem permanecer mistérios eternos. Os mistérios do corpo humano são fascinantes quando envolvem as outras pessoas mas, quando somos nós as vítimas, estes acabam sempre por envolver bisturis e sangue.

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