Os morcegos são o distinto mamífero capaz de voar e têm uma
gigantesca capacidade de adaptação ao meio – apenas não são prolíficos nos
pólos árcticos. São animais subversivos, somente activos entre a obscuridade, à
excepção do grupo de raposas-voadoras que connosco partilha a necessidade de
vitamina D. Tudo iniludivelmente interessante, conquanto o fascinante seja o
seguinte: a ecolocação; um sexto sentido que permite, a estes ratos felpudos,
terem uma evoluída percepção espacial através da informação que coligem da
emissão de ondas ultra-sónicas. Thomas Nagel instrumentalizou-os originalmente
no sentido da Filosofia, como âncora metafórica na sua divisão entre
perspectiva pessoal e impessoal. O intelectual americano postula, então - e
deixo a ressalva que o apresento sem grande minudência – que, por mais que
tenhamos conhecimento de como a ecolocação efectivamente funciona, nunca
teremos a mais pequena consciência de como é.
Foi notícia já no ano passado, ainda José Sócrates era chefe
do Governo da República Portuguesa, a seguinte história retratada no programa
60 minutos, da CBS: em Williamson County, no Texas, nos primeiros delíquios da
alvorada, um vizinho estranhou a presença de uma criança de três anos tão cedo
na fronteiriça da sua casa sem a presença dos pais. Acabaria por encontrar a
sua mãe, Christine Morton, morta na cama. Christine teria sido espancada pelo
marido, Michael Morton, num crime de raiva impelido pela recusa de Christine em
saciar o instinto sexual primata do seu conjugue, no dia do seu aniversário. Era
isto que a justiça norte-americana tinha sentenciado e dado como certo até Michael Morton ter sido exonerado, no ano passado, devido a uma prova de ADN. Todo o
processo judicial tem muito que se lhe diga, embora não seja por aí que me
quero internar.
Rotular de desesperante o estado de espírito de Michael Morton
durante esses 25 anos em que esteve injustamente preso é, porventura, capaz de ser um eufemismo. Considerá-lo como
tal também. A angústia como condição de vida em doses tão frequentes,
inconscientes e naturais quanto as de oxigénio. Apenas nos é possível
equacionar possibilidades. A verdade é que, por mais que conheçamos sobre a
história e que por mais que Michael Morton nos diga como foi, não teremos a
menor ideia. Por mais imaginativo que seja o nosso raciocínio abstracto, não
lhe será possível reproduzir os delírios de sentimentos tão imanentes à
situação. Mas nem é sequer honesto tentar devolver por palavras e com
propriedade a dimensão da realidade em que durante esse tempo definhou. Resta
descrever, para que não saia da memória, que Michael Morton viveu 25 anos entre
o cataclismo emocional de ver a sua mulher e mãe do seu filho assassinada
sem saber por quem, de ter sido julgado por esse pérfido acto que não cometeu,
enquanto sempre clamou a sua inocência, e que, com a desgraça da sua perda e
desacreditação, foi condenado a passar o resto dos dias numa cela. Sem
esperança. Uma prova de que a maior das tragédias não precisa de ter mais que
uma vítima. Acredito que nem Santo Agostinho não se apiedaria e repensava a sua
sensibilidade caso Michael Morton, num destes anos entre a sua funesta
existência, tivesse decidido pôr termo à sua vida.
Não o fez. Parece que tinha a certeza que a remota
possibilidade de a verdade ser fundada no seu caso iria chegar. É comovedor ver
Michael Morton a falar, quase que infantilmente, sobre os primeiros
momentos após a sua experiência prisional, extasiado com o sol da liberdade. Os
efeitos de LSD provocados por raios solares entre o palpitar da mobilidade.
Também somente ele saberá o que isso é.
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