Christopher Hitchens sempre me impressionou por ser uma pessoa tão verdadeira. Esse elogio sofre por ser um cliché grotesco e, como todos os clichés, devem ser evitados a todo custo. Por isso, a frase pode não parecer tão impressionante. Mas depois de se apreender com clareza quem era “Hitch” (tanto quanto é possível conhecer alguém através da escrita e dos debates televisivos), a palavra “verdadeiro” não é só um elogio barato. Para mim, é o maior elogio que se pode fazer a alguém.
A primeira vez que tomei conhecimento da sua existência, ele estava presente num painel de debate num programa político americano. Naquela altura, George W. Bush era o homem mais odiado do mundo e o painel debatia a sua competência como presidente e Hitch, depois de discordar veementemente com o apresentador e com os restantes membros do painel (que acusavam Bush de ser “estúpido”), insultou o público presente no programa, chamando-os de “frívolos”, por aplaudirem sempre que o apresentador falava. Confrontado com uma coluna de assobios, limitou-se a responder à plateia com a elegância do dedo do meio.
Este episódio despertou a minha curiosidade e rapidamente vasculhei a Internet por todos os textos da sua autoria que estavam disponíveis. Os seus textos na Vanity Fair são colossos da arte contemporânea. É possível discordar de Hitch em inúmeros assuntos mas é impossível discordar sobre o seu talento como escritor. Mais do que o impressionante, o que chocava era a beleza fluida que Hitch imprimia nos seus textos. Ele dominava a língua inglesa, fazendo-a mexer de acordo com a sua Vontade, como se ele não estivesse sujeito às leis da física literária a que todos os meros escribas mortais têm que se sujeitar.
Ele era verdadeiro porque fazia o que ele queria, sem prestar demasiada atenção às consequências, e dizia o que queria, sem prestar atenção às almas mais sensíveis que pudessem ficar chocadas com as suas opiniões divergentes e polémicas. Apoiou a invasão americana no Iraque, rejeitou a glorificação ocidental da Madre Teresa de Calcutá, criticou figuras de peso da política americana como Henry Kissinger e Bill Clinton e, proeminentemente, rejeitou todas as formas de fé e religião. Quando na América se debatia a justificação prática e moral da utilização de técnicas de tortura nos prisioneiros de Guantánamo, o próprio escritor se submeteu a uma sessão de “afogamento simulado”, de modo a poder falar sobre o assunto com conhecimento de causa.
Todas estas diatribes foram acompanhadas por aqueles que eram considerados os seus companheiros mais fiéis: um copo de whisky (sempre Johnny Walker Red – um gosto que ele dizia partilhar com os líderes do regime iraquiano) e um cigarro. É possível observá-lo em programas televisivos americanos, a bebericar whisky num copo de plástico, enquanto os outros convidados, depravados às ocultas, utilizavam as chávenas oficiais do programa. Ele arrastava as suas palavras e falava em frases lentas e longas, mostrando que o consumo já tinha sido iniciado nos bastidores. Ele costumava beber, de acordo com o próprio, “o suficiente para atordoar uma mula”. Esses hábitos acabaram por ditar o seu fim.
Quando foi diagnosticado com cancro do esófago, a mesma doença que matou o seu pai, o espírito de um homem verdadeiro prevaleceu. Não só não se resignou perante a sentença de morte, como escreveu alguns dos melhores trabalhos da sua carreira enquanto sofria e morria. Reconheceu a inevitabilidade do seu destino e enfrentou-o (passivamente, como ele descreveu o processo de quimioterapia), com as limitações a que estão sujeitos todos os homens. Não deixou que a perspectiva da morte fosse uma desculpa para tempos finais de lamúria e cobardia.
Mais do que os seus textos, e os seus debates, para mim é isso que fica. Se eu conseguir morrer com a mesma seriedade inabalável que Hitch mostrou, morrerei um homem feliz. Para mostrar tamanha tenacidade é necessário ter o suporte de um passado glorioso bem vivido. É necessário ter vivido a vida que se quis sem arrependimentos fúteis. É necessário ter procurado e vivido a verdade. Para Christopher Hitchens, a verdade e o prazer na vida não eram encarnados por meras palavras vazias e frases inspiradoras, como as que aqui deixei, mas pela implacabilidade das acções.
Sem comentários:
Enviar um comentário