segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Um verdadeiro herói

Christopher Hitchens sempre me impressionou por ser uma pessoa tão verdadeira. Esse elogio sofre por ser um cliché grotesco e, como todos os clichés, devem ser evitados a todo custo. Por isso, a frase pode não parecer tão impressionante. Mas depois de se apreender com clareza quem era “Hitch” (tanto quanto é possível conhecer alguém através da escrita e dos debates televisivos), a palavra “verdadeiro” não é só um elogio barato. Para mim, é o maior elogio que se pode fazer a alguém.

A primeira vez que tomei conhecimento da sua existência, ele estava presente num painel de debate num programa político americano. Naquela altura, George W. Bush era o homem mais odiado do mundo e o painel debatia a sua competência como presidente e Hitch, depois de discordar veementemente com o apresentador e com os restantes membros do painel (que acusavam Bush de ser “estúpido”), insultou o público presente no programa, chamando-os de “frívolos”, por aplaudirem sempre que o apresentador falava. Confrontado com uma coluna de assobios, limitou-se a responder à plateia com a elegância do dedo do meio.

Este episódio despertou a minha curiosidade e rapidamente vasculhei a Internet por todos os textos da sua autoria que estavam disponíveis. Os seus textos na Vanity Fair são colossos da arte contemporânea. É possível discordar de Hitch em inúmeros assuntos mas é impossível discordar sobre o seu talento como escritor. Mais do que o impressionante, o que chocava era a beleza fluida que Hitch imprimia nos seus textos. Ele dominava a língua inglesa, fazendo-a mexer de acordo com a sua Vontade, como se ele não estivesse sujeito às leis da física literária a que todos os meros escribas mortais têm que se sujeitar.

Ele era verdadeiro porque fazia o que ele queria, sem prestar demasiada atenção às consequências, e dizia o que queria, sem prestar atenção às almas mais sensíveis que pudessem ficar chocadas com as suas opiniões divergentes e polémicas. Apoiou a invasão americana no Iraque, rejeitou a glorificação ocidental da Madre Teresa de Calcutá, criticou figuras de peso da política americana como Henry Kissinger e Bill Clinton e, proeminentemente, rejeitou todas as formas de fé e religião. Quando na América se debatia a justificação prática e moral da utilização de técnicas de tortura nos prisioneiros de Guantánamo, o próprio escritor se submeteu a uma sessão de “afogamento simulado”, de modo a poder falar sobre o assunto com conhecimento de causa.

Todas estas diatribes foram acompanhadas por aqueles que eram considerados os seus companheiros mais fiéis: um copo de whisky (sempre Johnny Walker Red – um gosto que ele dizia partilhar com os líderes do regime iraquiano) e um cigarro. É possível observá-lo em programas televisivos americanos, a bebericar whisky num copo de plástico, enquanto os outros convidados, depravados às ocultas, utilizavam as chávenas oficiais do programa. Ele arrastava as suas palavras e falava em frases lentas e longas, mostrando que o consumo já tinha sido iniciado nos bastidores. Ele costumava beber, de acordo com o próprio, “o suficiente para atordoar uma mula”. Esses hábitos acabaram por ditar o seu fim.

Quando foi diagnosticado com cancro do esófago, a mesma doença que matou o seu pai, o espírito de um homem verdadeiro prevaleceu. Não só não se resignou perante a sentença de morte, como escreveu alguns dos melhores trabalhos da sua carreira enquanto sofria e morria. Reconheceu a inevitabilidade do seu destino e enfrentou-o (passivamente, como ele descreveu o processo de quimioterapia), com as limitações a que estão sujeitos todos os homens. Não deixou que a perspectiva da morte fosse uma desculpa para tempos finais de lamúria e cobardia.

Mais do que os seus textos, e os seus debates, para mim é isso que fica. Se eu conseguir morrer com a mesma seriedade inabalável que Hitch mostrou, morrerei um homem feliz. Para mostrar tamanha tenacidade é necessário ter o suporte de um passado glorioso bem vivido. É necessário ter vivido a vida que se quis sem arrependimentos fúteis. É necessário ter procurado e vivido a verdade. Para Christopher Hitchens, a verdade e o prazer na vida não eram encarnados por meras palavras vazias e frases inspiradoras, como as que aqui deixei, mas pela implacabilidade das acções.

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