quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Filoctetes

O André Mota já havia aqui falado das produções literárias e filosóficas dos gregos clássicos; partilhamos esse fascínio por seres que, perdidos num tempo de obscuridade e desconhecimento, alcançaram por via da razão as mais espantosas conclusões acerca da natureza humana e cósmica, e as propagaram até que chegassem até nós, que vivemos numa época de informação absoluta e acessível e procuramos, ainda assim, a sua ajuda, a destes génios que pereceram há 2500 anos, na procura da iluminação. Assim vos apresento uma passagem de Filoctetes, uma notável peça de Sófocles, um dos pais da arte dramática.

A contextualização é simples: após ter sido mordido no pé por uma víbora venenosa, Filoctetes é abandonado numa ilha deserta, sem nada mais do que o seu arco, que durante dez anos usou para caçar e subsistir-se, já que não consegue deslocar-se senão com grandes dificuldades. Quando Ulisses e Neoptolemo o ludibriam e assim se apoderam do seu arco, tentando convencer Filoctetes a voltar com aqueles que o abandonaram, este rejeita, apesar dessa decisão significar uma morte lenta e dolorosa. Inutilizado e sem arma com que caçar alimento, Filoctetes volta para a gruta que habita há dez solitários anos e, confrontado com a morte certa no abandono, fala aos pássaros dos quais se alimentou durante a sua estadia, preparado para "pagar com a morte a sua morte":

"Ó gruta de côncava rocha,
abrasadora e gelada! Assim
estava condenado - que infeliz eu sou! -
a não te deixar jamais.
Da minha morte serás única testemunha.
Ó aves rapaces e feras,
e olhar flamejante, que habitais
os montes desta região,
nunca mais da minha gruta vos acercareis
para logo fugirdes. Já não tenho nas mãos,
como dantes, a força dos meus dardos.
Oh! como sou desgraçado agora!
Livre fica este lugar,
não mais é temível para vós.
Vinde, que a altura agora é bela
para saciar a gosto as fauces vingadoras
na minha carne corrompida.
Em breve deixarei a vida.
Donde me virá subsistência?
Quem pode de brisas nutrir-se,
quando já não possui nada
de quanto produz a terra fecunda?"

Raros são os artistas que, por palavras apenas, espelharam de forma tão convincente, aliada a um brilhantismo semântico assombroso para a época, a dor alheia (e ficcionada) perante a inevitabilidade de uma morte sofrida.

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