sábado, 22 de setembro de 2012

Lipofobia


Fui recentemente convidado a ler uma crónica de Margarida Rebelo Pinto, que remonta ao ano de 2010, mas a qual nunca havia tido o prazer de ler, por confessa ignorância minha relativamente às publicações da autora. O texto foi recentemente alvo de grandes críticas quando atingiu alguma notoriedade nas redes sociais, e, ainda que não com a melhor pertinência temporal, quero juntar a minha voz à indignação pública; faço-o, no entanto, por motivos que serão em parte dissonantes das críticas que já proliferaram.

O tema da crónica é simples: as gordas. Mais concretamente, e de forma a não deturpar as idiossincrasias semânticas da autora, as gordinhas. Chamar-lhes gordinhas tem um propósito, que quem ler a crónica facilmente identificará como uma ironia, dentro da ironia, dentro da ironia, num Inception estilístico delicioso. A autora ressalva que o termo gordinhas serve para distinguir uma categoria especifica entre as gordas, que a própria define como "aquela amigalhaça companheirona que desde o liceu cultivava o estilo maria-rapaz, era espertalhona e bem-disposta, cheia de energia e de ideias, sempre pronta para dizer asneiras e alinhar com a malta em programas".

É sacrilégio tentar resumir uma peça literária de tanto calibre, mas vou ousar. Ora diz a autora que as gordinhas têm mais direitos de mau-comportamento social por serem gordas, e que as bem-constituidas gostariam de poder cometer os mesmos pecados sem serem confrontadas com um, e passo a citar, "inquisidor de serviço a apontar o dedo para lhe chamar leviana, ordinária, desavergonhada e até mesmo porca". Entre os direitos sociais de que apenas as gordinhas beneficiam, a autora lista "poder dizer palavrões, falar de sexo à mesa, apanhar grandes bebedeiras e consumir outras substâncias igualmente propícias a estados de euforia, inclusive fazer chichi de pernas abertas num beco do Bairro Alto".

A realidade lisboeta é certamente muito diferente da portuense. Sendo eu um orgulhoso nativo da invicta, observo com prazer que, nesta libertina cidade, todas as mulheres, independentemente do índice de massa corporal, dizem palavrões como vírgulas, falam abertamente de questões sexuais e apanham bebedeiras eufóricas quando bem lhes aprouver. No Porto, nunca vi nenhuma mulher ser condenada por estes pecados. Mas vamos assumir que a autora fala a verdade e que, nos círculos que frequenta, estas liberdades não são concedidas às "miúdas giras". Mesmo assumindo este cenário, é de observar que Margarida Rebelo Pinto quer os benefícios de ser gordinha, sem ter de arcar com as consequências negativas das banhas. Estando eu longe de ser uma gordinha (sou homem e escanzelado), arrisco-me a dizer que as gordinhas trocariam sem hesitar o direito de mijar na rua pelo olhar guloso dos homens e o olhar invejoso das outras mulheres. Perdoem-me a aparente piada de mau gosto, mas a autora fala de barriga cheia.

Jamais serei polícia de bons costumes. O que me incomoda no texto não são as críticas feitas às gordinhas e à forma como a sociedade as trata de forma diferente. Como quem dispara de metralhadora ao calhas acaba por atingir alguém, a autora acerta em alguns pontos. As gordas são, de facto, alvo da pena e comoção social; daí, como a autora sagazmente observa, ninguém lhes dizer diretamente que o são.

O texto é perturbador vários níveis, mas nenhuma passagem específica da crónica me indigna mais do que a condescendência que banha todas as palavras. Uma condescendência que não se limita a ser dirigida às gordinhas, como é também uma sobranceria intelectual, que incomoda bastante quando se trata de um texto em que a autora, independentemente das barbaridades que profere, recorre abusadamente a clichés, revela uma fraca destreza com as palavras e em que cada tentativa de ironia é embaraçosamente forçada.

Destaco também a forma como a autora distingue gordinhas e giras, ao invés de recorrer à óbvia antonímia gordinha e magrinha. Esta distinção incomoda porque existem magrinhas feias. Eu conheço-as e a autora, se alguma vez olhou para as contracapas dos seus livros, conhecerá também.

Sendo a adolescência uma fase decisiva na definição da personalidade, é inegável que a gordura que reveste um jovem tem influência na moldagem das suas características futuras. As gordinhas têm baixa auto-estima e são divertidas, porque se o interior fosse tão desinteressante como o exterior, ficariam totalmente descartadas da corrida por um parceiro sexual. No entanto, a complexidade dos factores que definem a individualidade deve levar-nos a ter redobrado cuidado com as generalizações. Já conheci gordinhas simpáticas e antipáticas, bêbedas e abstémias, puritanas e ordinárias, inteligentes e acéfalas. Além disto, quem ler a crónica fica com a ideia de que só existem dois tipos de pessoas que bebem: as gordinhas, para afogarem o desgosto de serem gordas e com o intuito de aumentarem a sua popularidade, e os homens, para comerem as gordinhas. E eu, que já carreguei magrinhas desmaiadas pelo álcool (até porque as magrinhas cedem mais facilmente pelo parco peso corporal) tenho uma consciência diferente da realidade do alcoolismo jovem. Mas, neste ponto, dou o braço a torcer. A autora, pela idade, experiência e popularidade, terá já conhecido bem mais gordinhas que eu; até porque, como diz a autora com muita pertinência, as gordinhas não despertam muito o nosso interesse.

A autora sabia que ia provocar uma onda de choque com este texto; não tenho dúvidas de que essa consciência foi o que mais a motivou a publicá-lo. Escritores destes vivem do povo, das massas, seja por via da admiração seja pela indignação. E eu, pasme-se, concordo com a cronista; às vezes temos de deixar o politicamente correto de lado e dizer as coisas como elas são.

Assim sendo, cara Margarida, desejo que o seu próximo AVC não demore muito a manifestar-se.

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