quinta-feira, 13 de setembro de 2012

O instrutor grego




“Os mais antigos documentos em língua grega a que pode dar-se o nome de literatura são a Ilíada e a Odisseia, atribuídos na Antiguidade, juntamente com outros, a Homero. A língua grega era já antiga e perfeitamente elaborada quando aquelas obras foram criadas: o mais provável é que datem ambas do século VIII a. C.

A Ilíada, ou poema acerca de Ílion (Tróia), tem como tema principal um só episódio do último ano da Guerra de Tróia – a cólera de Aquiles e a sua retirada da luta, com as desastrosas consequências de tal atitude: 

Canta, ó Deusa, a cólera do filho de Peleu, Aquiles;
Cólera funesta que causou infinitos males
Aos Aqueus e lançou no Hades
Muitas almas valorosas de heróis, e lançou os seus corpos como
De cães e pasto de todas as aves do ar…

O maior guerreiro entre os Aqueus (como Homero chama aos Gregos) abandona a guerra com os seus homens e retira-se para a sua tenda, porque o chefe aqueu, Agamémnon, lhe tirou a sua escrava favorita. Na grande batalha que se segue, os Troianos levam de vencida os Aqueus até ao momento em que Pátroclo – que convenceu Aquiles, de quem é o único amigo, a deixá-lo combater com as suas armas – entra na luta. A sorte muda e os Troianos recuam; mas Pátroclo é morto e a narrativa atinge o clímax: Aquiles, revestido de novas armas, lança-se na luta, mata o chefe troiano, num combate singular, e amarra o cadáver ao seu carro, levando-o para o campo aqueu, onde, durante onze dias, fica insepulto e é arrastado em volta do túmulo de Pátroclo. Todavia, o poema termina com uma nota muito diferente de toda esta ferocidade: o velho rei troiano Príamo visita Aquiles e consegue que o herói lhe entregue o corpo do filho para que lhe dê sepultura. Tudo isto, que é o assunto principal do poema, abrange apenas o período de algumas semanas dos dez anos que durou o cerco de Tróia; mas o título do poema justifica-se, pois que, ao longo dos seus quinze mil versos, por divagação, por reminiscência ou por profecia, nos conta toda a guerra e ambiente que dela decorre.

A Ilíada é uma história de sangue e de morte, de glória e de tristeza. O tema de Odisseia (poema acerca de Ulisses), que tem menos quatro mil versos, é menos grandioso, mas mais aventuroso e romântico: trata-se do regresso de Ulisses ao seu palácio em Ítaca, finda a Guerra de Tróia. Pela primeira vez, o poeta recorre a um atrifício que depois é imitado por Virgílio e por muitos outros: começar a história pelo meio e deixar o princípio para ser contado mais tarde. A história começa na ilha de Ítaca, dez anos depois da queda de Tróia: muitos pretendentes têm cortejado em vão a mulher de Ulisses, Penélope, consumindo a riqueza do reino, até que, por fim, o seu jovem filho, Telémaco, se dirige para o Peloponeso em busca de notícias do pai. É só nesta altura que a história foca o próprio Ulisses no meio das suas viagens e o conduz à estranha terra de Feácia, onde encontra a princesa Nausica, filha do rei Alcino, em cuja corte é recebido e acarinhado e a quem conta as suas aventuras desde que a Guerra de Tróia acabou: as suas fugas do país dos Lotófagos e da ilha dos Ciclopes, as Sereias, Circe, Cila, Caríbdis; os seus sete anos numa ilha como amante e prisioneiro da ninfa Calipso. Da Feácia chega por fim a Ítaca, encontra Telémaco, mata os pretendentes de Penélope – clímax dramático e sangrento como nenhum na Ilíada – e volta aos braços da mulher. Também na Odisseia, a linha narrativa sofre grandes desvios, não só por causa de todo o folclore e ficção que ornamentam as aventuras do herói, mas também por outras consequências da guerra.

(…)

Estamos realmente perante autêntica poesia «heróica», naturalmente centrada num só herói e numa cadeia específica de incidentes. Mas a sua mais notável característica para o leitor moderno foi omitida no resumo dos poemas: a constante presença de seres que não são homens nem mulheres e cujas actividades intervêm na história, desempenhando efectivamente o papel mais importante na determinação do curso dos acontecimentos. Zeus e a sua conflituosa família de deusas e deuses, habitantes divinos no Monte Olimpo, na Ilíada e, um pouco mais remotamente, na Odisseia, são personagens tão definidas, singulares e características como Heitor ou Aquiles. São seres sobre-humanos, com a sua imortalidade e os seus poderes mágicos, que podem ser grandiosos e imporem respeito; todavia, muitas vezes as suas intervenções arbitrárias são provocadas por motivos e por sentimentos que se revelam muitíssimo semelhantes aos humanos. Por vezes, especialmente na Ilíada, as excentricidades do Olimpo proporcionam uma pausa cómica nas trágicas cenas da planície troiana. Se os homens de Homero se assemelham, por vezes, a deuses, os seus deuses dificilmente poderiam ser mais bem moldados à imagem do homem.

Tudo isto é contado em verso hexâmetro, no qual Matthew Arnold acertadamente encontra as qualidades de clareza, de rapidez, pensamento e de linguagem. (…) Homero tem uma maneira rápida e directa de descrever uma cena ou uma acção. Nas suas frases não há rodeios, pondo os factos uns a seguir aos outros, com simplicidade e sem qualquer complexa interferência de orações subordinadas. Há uma pequena metáfora nas suas linhas para perturbar ou demorar a nossa compreensão:

Tal como quando no céu as estrelas que rodeiam a Lua
Parecem belas, quando todos os ventos repousam,
E cada montanha aparece, e cada pico saliente
E cada vale, e os incomensuráveis céus
Abrem caminho até ao zénite, e quando todas as estrelas
Brilham e o pastor sente o coração alegre:
Da mesma maneira brilhou em fogo entre os navios e o rio
Xanto perante as torres de Tróia.

Nos dois poemas, os momentos dramáticos ou sublimes fazem aparecer mais de duzentas breves imagens deste género, nas quais o narrador parece ultrapassar a sua própria comparação e discorrer apaixonadamente sobre pormenores exclusivamente por causa desses mesmos pormenores. Nesta, como noutras imagens, o estilo homérico torna-se um modelo para os poetas dos séculos vindouros: Virgílio, por exemplo, e Milton.

(…)

Arnold encontra outra virtude principal na Ilíada e na Odisseia: nobreza. Embora a palavra esteja agora fora de moda, há nessas obras incontestável talento, e desde o princípio ao fim. Em todos os tempos, os tradutores têm achado difícil reproduzir todo o talento de Homero; e é aí que na maior parte dos casos falham. A sua narrativa é desigual em poder dramático e, por vezes, o nosso interesse afrouxa: mas nunca a narrativa se torna vulgar ou inferior.”

retirado de “A Grécia Antiga” de H. C. Baldry
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É, então, por inteiro desconhecido o tempo em que Homero pontilhou os seus devaneios.

Tomando como razoável a previsão inicial do texto, vinte e nove séculos volvidos permanecem na literatura menos que os que deveriam ser os nomes que se lhe possam equiparar. Como relativamente a Shakespeare, multiplicam-se como cogumelos as incertezas perante o autor que a obra escuda – é bastante propalada a hipótese de a Ilíada e a Odisseia terem sido resultado de duas mentes diferentes; no século XVIII, três publicações (de François d’Aubignac, Giambattista Vico e Friedrich August Wolf) chegam a conjecturar a possibilidade de ter sido um prosaico compilador de aedos; e, a bem da História, nada se sabe sobre a sua vida, sobre o homem Homero. 

Apaziguadas as angústias – acrescento mais uma: primeiramente as obras foram transmitidas por composição oral, posteriormente substituída pela transmissão escrita e será impossível saber, em que altura desta longa evolução, as duas obras surgiram já com formulações similares às actuais - que poderão provir da nossa mísera impotência no apuramento das raízes históricas, cuja prova mister é a posteridade de Heródoto, pai putativo da História, em relação a Homero, podemos ainda assim ser concludentes em assumir que todos somos herdeiros das suas fantasias. 

O seu legado é inominável. O primeiro grande poeta grego vive no pensamento, na memória e é alvo de estudo de incontáveis gerações que o reverenciam.

(e, até, dá para citar Homero para comentar as saídas do Witsel e Hulk: “e os incomensuráveis céus abrem caminho até ao zénite”)

1 comentário:

  1. Óptima abertura, André. Mas apanhou-me de surpresa! A descer aos clássicos gregos, estava a contar com algo sobre Homero e o Epyskiros, um pouco mais na linha dos teus textos n'Os Protagonistas! :)

    Abraço,

    Paulo (Malheiro Dias)

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