quinta-feira, 26 de junho de 2014

Crónica de uma Morte Anunciada

Escrevo-vos melancólico, desiludido por não ter conseguido abstrair-me da esperança supérflua que me acossou nos últimos dias e que tentei afugentar com o pragmatismo das probabilidades. Falo-vos com Bach nos ouvidos, ainda tonto das cervejas que tive de ir ingerindo para afogar a angústia da passagem dos minutos. Na obra The Well-Tempered Clavier, Bach apresenta-nos um conjunto de peças em todos os 24 tons, maiores e menores. É uma viagem entre sensações tão distintas que nos põe atordoados e indecisos, entre a palpitação do sofrimento e o vazio desconfortável da sua ausência.

Os contrastes dicotómicos são o que dá o especial sabor da vida. Não pode haver uma classificação categórica de positivo e negativo neste pólos. É a viagem entre um e outro que nos embala no conforto. É o facto de perdermos que nos faz festejar as vitórias. Acaba por calhar a todos e desta vez fomos nós. Não há, no entanto, que ignorar que isto não é sorteio, e que cada um constrói a sua sorte. E a selecção menosprezou de tal forma aquilo de que era responsável que fica a lamentar o insucesso com os factores rotineiros, entre arbitragens e fado, aos quais acrescentou o insustentável clima tropical.

As razões do nosso fracasso são explícitas, e é o facto de estarem à frente do nosso nariz que torna tão frustrante não terem sido atempadamente remendadas. Apresentámo-nos no Brasil com um grupo que só ao mais esperançoso (e/ou ingénuo) português não suscitou o mais profundo cepticismo. Entre jogadores inerentemente inúteis, entre outros cujas temporadas foram fustigadas por problemas físicos constantes, atenuados por meia-dúzia em boa forma física e futebolística, que acabaram por assistir sentados aos restantes a (tentar) jogar, haveria pouco espaço para infundadas expectativas.

A preparação roçou o amador, e não me refiro apenas à preparação física, uma questão tão pornográfica que até a a minha mãe conseguiu constatar. Quando Paulo Bento diz que, num clima propício a lesões musculares, nada fazia prever a lesão de um jogador que passou a época a mancar, só pode estar a gozar com a nossa cara, na nossa cara.

Mas o que é verdadeiramente preocupante é a inexistência de estratégia colectiva numa equipa que, para o mal ou para o bem, joga junta há tantos anos, orientada pelo mesmo treinador. Tudo parecia esboçado, improvisado em cima do joelho, ora por iniciativa dos jogadores mais criativos, ora por tentativas desesperadas de avançar no terreno por linhas demasiado tortas para serem viáveis a longo prazo: passes longos, precipitados, aleatórios, impacientes. Admito que não tenha faltado coração, mas não houve pernas, nem uma cabeça colectiva. Essa imaginação conjunta não é milagrosa, é fruto do trabalho de um seleccionador que terá gasto demasiado do seu tempo livre a deliciar-se e a ignorar a regressão futebolística dos seus pupilos predilectos em vez de buscar alternativas individuais e colectivas ao seu pré-definido plantel de escolhas. A coragem elogiada ao nosso treinador é precisamente o oposto: é cobardia, medo da mudança, de renovar uma selecção claramente necessitada dessa reestruturação. Nunca irei entender a tolerância dos meios de comunicação com as opções incompetentes deste treinador, que continua a apostar em jogadores que vão acumulando desempenhos desastrosos: Meireles, Veloso, Postiga, o indescritível João Pereira... Não pretendo criticar a quente, mas estes já não são jogadores com qualidade para jogar numa selecção de topo, mas continuam porque são todos uma grande família, e voltarão mais cedo do Brasil com um ambiente de grande irmandade.

Repito: hoje sofremos tanto porque um dia festejámos. Mas o que me tira o sono, como todos os problemas da vida, não é a preocupação do presente, mas a falta de solução de futuro. Não porque a geração que se avizinha, não tendo por certo um Cristiano Ronaldo para a sustentar e credibilizar, não tenha potencial para se revelar bem superior àquela que acaba estendida e suada num relvado brasileiro; mas porque os problemas que levaram ao insucesso da selecção são estruturais e essa estrutura ameaça seriamente manter-se incorrigível. Esperemos que a aprendizagem, o que distingue o inteligente confiante do burro teimoso, tenha servido para que o nosso descalabro do Brasil continue a ser a excepção.

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