domingo, 22 de junho de 2014

O Desespero e o Plano Nacional de Leitura


“The cradle rocks above an abyss, and common sense tells us that our existence is but a brief crack of light between two eternities of darkness.” – Vladimir Nabokov

A proposição de que os seres humanos lêem cada vez menos baseia-se demasiadas vezes nos encantos traiçoeiros da intuição humana em vez do poder incontornável dos factos. A afirmação é utilizada frequentemente como base de confirmação para o declínio da sociedade ocidental moderna. As mentes mais pessimistas facilmente extraem desse cenário o sopro das trombetas do apocalipse. Mas essa afirmação tem uma fraqueza estrutural: já foi proclamada demasiadas vezes sem que as suas previsões calamitosas se confirmassem. É um adágio tão antigo como a espécie humana: uma geração berra, exasperada, sobre a depravação cataclísmica da geração seguinte.

É demasiado cedo para serem extrapoladas conclusões ambiciosas sobre os efeitos a longo-prazo das mudanças drásticas nos hábitos de leitura na sociedade, mas o que sabemos é que os factos confirmam a tendência geral. Os jornais e as revistas sangram leitores como porcos indefesos no matadouro. Em 1978, oito por cento dos americanos afirmavam não ter lido um livro durante o período de um ano. Em 2014, esse número aumentou para vinte e três por cento. Não me parece absurdo assumir uma tendência análoga na sociedade europeia.

O Fado das Palavras Mortalmente Feridas é chorado com aparente unanimidade. As excepções são os sociólogos de sempre que, entusiasmados com a instantaneidade da cibernética, proclamam uma revolução na leitura. Afinal de contas, dizem eles, lemos mais tweets e posts e legendas e notas de rodapé. Até pode ser verdade que pessoas que nunca pegaram num jornal agora consomem mais notícias em formato escrito graças à conversão da imprensa à Internet. Mas esse facto não invalida a tendência, da mesma forma que a cedência à masturbação por parte de um padre não implica a quebra do voto de castidade.

E isso não vai mudar com uma apologia à leitura que tem demasiados problemas. A alma iluminada que discorre sobre a glória incomparável da leitura de livros utiliza uma atitude de superioridade irritante e ofensiva. Ele, o leitor, um oráculo supremo de sabedoria requintada que lamenta o adensar das trevas da corrupção. O outro, o não-leitor, um poço infinito de ignorância abjecta que trará inadvertidamente a destruição social. Acontece que a superioridade intelectual de alguém que lê livros comparativamente a alguém que prefere a televisão é uma verdade auto-evidente, mas isso não pressupõe uma superioridade moral.

A abordagem pedagógica utilizada pelas instituições públicas também tem deficiências. Esta abordagem utiliza uma mistura perigosa de preceitos científicos com uma atitude romântica. Afirmam que os benefícios da leitura para a cognição são inegáveis. Juram que a ciência até provou que a leitura de romances tem efeitos positivos em termos de inteligência emocional, um atributo essencial para o sucesso no mercado de trabalho. O pacote é finalizado com um conhecido embrulho didáctico: falam dos encantos da imaginação e do prazer das estórias. Esta abordagem nunca terá sucesso. Ninguém gosta de condescendência autoritária. Além disso, nenhuma criança alimentada à base de açúcar alguma vez ficará convencida do charme das ervilhas.

A minha defesa da leitura utilizaria uma abordagem diferente. Não seria uma apologia dos méritos da educação académica e da importância do sucesso laboral. Não seria uma apologia da maravilha imaginativa e dos prazeres do alheamento à realidade. A leitura não é importante apenas porque nos ajuda a viver funcionalmente em sociedade, mas porque a linguagem é a única forma significativa que temos de compreender a realidade. Quanto mais abrangentes forem os hábitos de leitura, quanto mais proficiente for a expressão oral e verbal, maior é a exactidão e a complexidade do significado que as palavras carregam.

Considerem bem a frase de Nabokov. A informação que dela extraímos é simples: a vida é curta. Mas quando pensamos nessa informação, não inferimos nada de extraordinário. É um cliché. É algo que repetimos numa tentativa desesperada de instigar em nós próprios a consciência das suas implicações preocupantes, que nem sempre fazemos as coisas que queremos fazer por não reconhecermos a efemeridade do tempo. Apenas identificamos um facto adquirido representado por uma frase banal que poderia habitar num autocolante promocional, numa tatuagem bêbada nas costas, ou numa t-shirt barata.

Agora, quando lemos a frase brilhante de Nabokov, as implicações dessa informação ganham uma aplicabilidade avassaladora. A frase captura a urgência de viver. Transmite-nos o choque abismal do improvável, a passagem avassaladora do tempo, a grandeza titânica do universo e a nossa insignificância gloriosa. O cliché surge e é desfeito pelo vento, como uma declaração de amor adolescente inscrita na areia. A frase enregela o estômago, torce o coração e urge ao cérebro que materialize o desespero em acções que reflictam os nossos desejos mais íntimos. O cliché transforma-nos em escravos ignorantes da gratificação instantânea. A frase lembra-nos que vivemos num berço a baloiçar sobre o abismo, mas que não devemos temer as profundezas e a escuridão.

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