quarta-feira, 18 de junho de 2014

Insensatez


“Longa é a arte, tão breve a vida” - António Carlos Jobim

António Carlos Jobim e Vinícius de Moraes formaram uma das parcerias musicais mais brilhantes de toda a história. As canções que surgiram nas suas cordas vocais e nos seus dedos definiram uma era. Ambos são ícones da cultura brasileira. Ambos tiveram vidas pessoais caóticas. Ambos tiveram mortes que denunciaram a natureza nociva dos seus hábitos. A história deles é a história da humanidade – grandes homens que são, em tantas ocasiões, pessoas terríveis; homens bons que são, em tantas ocasiões, pessoas infelizes; e homens felizes que são, em tantas ocasiões, pessoas insatisfeitas.

Eu comecei a ouvir a música de Tom Jobim em 1996, numa altura em que os seus pulmões geniais já não desfrutavam dos prazeres do oxigénio. A notícia da sua morte só chegou em 1997, três anos depois da passagem do grande maestro para o Outro Lado. António Carlos Jobim morreu aos sessenta e sete anos, em 1994, num país estrangeiro, de paragem cardíaca, devido aos constrangimentos dolorosos do cancro, depois de uma vida onde assegurou o seu lugar no panteão dos imortais e depois da existência típica de relações pessoais instáveis e alcoolismo contínuo. Quando o seu maior amigo e parceiro, Vinícius de Moraes, morreu em 1980, em circunstâncias semelhantes, Tom Jobim não foi ao funeral. Mais tarde afirmaria: “Foi a morte de Vinícius que me deu a convicção de que não somos imortais”.

A minha primeira concepção da morte era a de um assassinato. As parcas explicações proporcionadas por familiares tinham-me deixado com a impressão macabra de que Jesus Cristo matava pessoas e levava-as para o céu. A ideia não era tão soturna quanto a descrição dá a entender num primeiro impacto. Eu não via qualquer malícia no acto. Não associava o acto a violência, mas apenas a uma injustiça cósmica que me fazia desconfiar das estátuas ensanguentadas do Rei dos Judeus. Ainda hoje aquelas figuras de gesso sombrias, com os seus olhos suplicantes, abdominais perfeitos e braços musculados, parecem estar prestes a ganhar vida.

A minha segunda concepção da morte veio com o primeiro funeral. Os meus seis anos impossibilitavam qualquer compreensão abrangente das funcionalidades práticas do fenómeno mortuário, mas o desespero abismal que ficava nos vivos, contrastado com a permanência estática das pedras tumulares e com a rigidez fria do cadáver, começava a incrustar na minha cabeça as noções confusas da tragédia da irreconciliabilidade. Eu sabia que havia aspectos da morte que podiam ser reconhecidos e explicados, mas que a sua mera existência nunca seria aceite. As semanas que seguiram o funeral foram espaços de tempo drenados da alegria quotidiana que define a vida das crianças em famílias felizes, e eu nunca mais voltei a pensar na vida como um circo diário de gratificação.

Dezassete anos depois, dia sim, dia não, passo pela Basílica da Estrela, vejo mais um carro funerário e, resignado, penso: lá vai mais um pobre coitado (ou cabrão sortudo, dependendo das crenças que mantinha e das particularidades da vida que deixou para trás). Raramente sei quem é o defunto da ocasião. Às vezes morre uma figura de relevo, um antigo Secretário de Estado ou um poeta menor, e o Diário de Notícias comunica que o funeral será ali. Noutras ocasiões morre um desgraçado qualquer na Segunda Circular ou na CREL, num desses lugares que povoam o imaginário do relatório do trânsito matinal. Uma pequena multidão negra costuma formar-se junto à entrada da Basílica e, nos dias de pouco trânsito, é possível ouvir as notas desvanecidas das melodias fúnebres tocadas no órgão.

Agora a morte tem várias concepções. É um fenómeno biológico, uma eventualidade absoluta e uma desgraça inescapável. É um monstro debaixo da cama, uma notícia irrelevante, o desconhecido na escuridão e um risco a ser medido. Ela vem em várias formas - bombas que caem, balas que voam, ossos que partem, carros que batem, aviões que caem, órgãos que falham e tecidos que rasgam. Eu sei todas essas coisas sobre a morte, mas aquilo que eu não sei é em que medida a vida – uma vida bem-vivida – é o resultado do desfrutar efémero da actualidade ou da luta ingrata pela eternidade. Interrogo-me se o louvor derradeiro da vida dos nossos antepassados caçadores-colectores está no prazer ténue que extraíram do saciar primitivo de vontades, ou se está imortalidade dos bisontes pintados nas paredes das cavernas.

Todos os homens vivem segundo os preceitos da moralidade, da ambição e da felicidade. Mas a tentativa de combinar as três dimensões ainda parece ser o reduto de super-homens. Eu quero ser bom, grande e feliz, mas as acções conducentes a cada um destes atributos entram invariavelmente em conflito. É uma batalha com três frentes em que o avanço numa delas significa o recuo automático em outras. Aquilo que nos faz felizes nem sempre é aquilo que nos traz significado. Em demasiadas ocasiões, aquilo que é necessário para a ambição não é aquilo que é certo.

Essa tentativa de combinar as três dimensões pode ser a definição mais aproximada daquilo que significa ser adulto. Provavelmente estas dúvidas são apenas o resultado da tendência humana de pensar que uma alternativa teria sido sempre superior. Haverá sempre uma incerteza intrínseca na concretização de escolhas. Os acordes da obra de Tom Jobim ajudam-me a reconciliar a ideia de que homens nascem e homens morrem e eu nunca irei compreender as razões. Mas eu tenho a certeza que, independentemente das minhas escolhas, nunca irei ser aquela pessoa que, quando confrontada com a morte, decide não ir ao funeral.

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