sexta-feira, 21 de junho de 2013

Ofélia

O amor da minha vida trabalha no consultório do meu dentista. É sua recepcionista e auxiliar. Vou lá há já vinte anos, sendo portanto o único dentista que frequentei, e ela não envelheceu nada durante todo o espaço temporal que representa a minha vida com preocupações dentárias. Exagero: desapareceu alguma da vitalidade dérmica da juventude. Mas as rugas são escassas e, de alguma forma, até lisonjeiras. Tem uns olhos azuis pequenos como safiras, tez branca como uma boneca de porcelana, um nariz impertinentemente arrebitado, e um sorriso imaculado.
Lá estava ela, ao balcão, a receber a minha chegada com a sua imortal beleza. Estava, no entanto, ocupada. Uma senhora de idade, de braço dado com uma mais nova, disparava incessantemente pequenos pedaços da história da sua vida.
- Ele até me disse para comer sopa, não gosto muito, mas já não sou nova, e eu sei que sopa me faz bem, até por causa do dente, já mo dizia a minha mãe...
Sentei-me no sofá de cabedal e verifiquei que literatura havia disponível para entreter a minha impaciência. As opções eram escassas e de questionável qualidade: uma TV+, uma TVGuia e uma TV qualquer-coisa. Peguei na primeira, porque a capa prometia que, se eu a lesse, ia conhecer as confissões sexuais dos concorrentes da Casa dos Segredos, e pareceu-me uma oportunidade a não perder.
- ...que faleceu com sessenta e seis anos, muito nova, eu já fiz setenta e três em Fevereiro...
A minha musa acenava continuamente, mais para mostrar que ainda estava viva do que eu jeito de aquiescência, e conservava um sorriso forçado ligeiramente caído para a direita. Trazia, como sempre, o cabelo amarrado num rabo de cavalo. Ocorreu-me que nunca a vi de cabelo solto; esta imagem mental, com muito vento à mistura, ocupou-me durante os dois minutos seguintes.
- ...o meu marido é mais velho, mas esse já não se importa com os dentes, já não tem muitos, mas tem muita saúde para a idade...
O discurso tinha como pano de fundo o agoniante ruído da broca que, na sala ao lado, torturava o pobre paciente que me antecedia. A saturação começava a apoderar-se do meu amor. Nunca soube o nome dela; agora era muito tarde para perguntar, seria um acto mais insolente que corajoso, e estranho para ambos. Ela conhece-me desde que me cresceu o primeiro dente, e eu não soube aproveitar a minha já ida aura infantil para me aproximar dela, e a inocência para lhe questionar a graça. Agora, a não ser que o seu nome surja nalgum vocativo alheio, o meu amor permanecerá anónimo.
- ... ainda no outro dia foi ao cardiologista e está de ferro, ao contrário de mim, que às vezes tenho uns apertos que não me deixam dormir de noite...
Vamos fugir, meu amor. Vamos deixar a velha tagarela para trás, a broca para trás, a vida para trás, e fujamos juntos. Minha Ofélia, minha Ana Plácido, minha Beatriz, minha Julieta.
- ...às vezes até durmo no sofá, para não acordar o meu marido quando me levanto, mas isso faz-me ficar com dores nas costas...
A senhora mais nova, presumivelmente filha, que segurava a velha linguareira pelo braço começava agora a puxá-la, com a consciência óbvia da inconveniência do monólogo da mãe, que só esta parecia não detectar. Após algumas tentativas frustradas de retomar a conversa, pediu à mais nova que lhe segurasse na carteira e no casaco, que ainda tinha de ir ao quarto-de-banho. Foi a minha aberta; o meu amor sorriu para mim e cumprimentou-me pelo nome. Não me posso dar ao mesmo luxo: limitei-me a um envergonhado e formal “boa tarde”.
- Podes esperar mais cinco minutos, que o Dr. Pedro deve estar quase despachado.
A sua voz é uma exótica mistura de doçura e rouquidão. A agoniante dor do siso que me levou àquele consultório adormeceu por momentos. Estou em crer que é a sua voz a receber-me, mais do que a anestesia, que me retira a sensibilidade.
Reparei que havia o Correio da Manhã em cima do balcão. Perguntei se poderia levar. Ela condescendeu, com uma pequena risada.
- Claro, já fiz as palavras cruzadas.
“Merda”, pensei. Era exactamente isso que eu ia fazer. Mas não quis rejeitar esta oferenda do meu amor e entretive-me a pôr-me ao corrente dos pequenos casos de criminalidade que proliferam pelo país.
- Diogo, podes vir.
Não era a voz do meu amor. Na porta, surgiu a outra auxiliar do dentista, esta gorda e com um penteado menos ortodoxo, e que faz pausas constantes para ir à varanda fumar. Também trabalha lá desde que me lembro, e também ela envelheceu pouco, mas é consabida a capacidade da pele das gordas resistir à secura das células.
Despedi-me do meu amor com o olhar, que não mo retribuiu, ocupada que estava a escrever qualquer coisa numa agenda.
Cumprimentei o meu dentista. É um médico competente, homem de estatura baixa e espírito bonacheirão. Mandou-me sentar, deu-me cuidadosamente a anestesia e, depois da gorda me colocar o tubo sugador de saliva debaixo da minha já adormecida língua, começou o tratamento. Creio que me portei bem. Caso o meu amor entrasse na sala, já não se ia deparar com a jovem criança que chorava copiosamente ao som da broca; ia deparar-se com uma velha criança que consegue com questionável sucesso conter uma magnânima vontade de chorar copiosamente. Nada atrai mais uma linda quarentona que um jovem magro, com um tubo na boca, de punho cerrado e a dar pontapés no ar para controlar a dor provocada por um dente que não soube lavar decentemente.
Despachado, preparei-me para a despedida. Dirigi-me ao balcão, onde ela parecia aguardar-me pacientemente. Desapareceu durante um minuto no consultório, e voltou com uma folha na mão direita. A bata médica não lhe faz justiça, certamente, mas nunca a vi com outra indumentária.
- O Doutor disse para marcar para daqui a quinze dias para continuar o tratamento. Quer à mesma hora?
- Sim. À mesma hora.
- São dez euros e setenta e oito.
Tudo o que quiseres, meu raio de sol.
- Tens aqui o recibo. Assina aqui.
Ao passar-me a caneta para mão, toquei-lhe de forma muito ligeira no dedo indicador com o meu anelar. Devido a este suave mais intenso contacto, foi a tremer que rabisquei qualquer coisa na linha de assinatura.
- Vemo-nos daqui a quinze dias, então.
Mal posso esperar, meu amor.

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