quarta-feira, 12 de junho de 2013

Do riso



Vou relatar um inconspícuo episódio entre um senhor paraplégico e uma senhora cega. Como se reveste da lente surrealista-demencial do João César Monteiro, e também para postergar mal-entendidos, insurjo-me, então, na profiláctica apologia dos de sua condição. É imediata. Aliás, basta pensar nos primeiros segundos de um dia. A eles concernentes, partilho com toda a generosidade que me é atribuível as minhas experiências diurnas, ainda de pijama e hálito fétido. São em considerável menor número as ocasiões onde os prometidos efeitos revitalizantes do descanso do guerreiro são sentidos na plenitude da sua justiça. Mais vezes me proponho a celebrar a santidade de um colchão e procedo à extensiva desconsideração de tudo o que lhe é ademais. Ora bem, pois que assim seja. Não há como não as caracterizar de abençoadas, sem excepção às manhãs onde a preguiça se figura indúctil. Aqui, toda a nossa glória consiste em portarmos a evocação dos sentidos e a liberdade da mobilidade, inclusivamente quando os depomos e só queremos, por mais cinco minutos (que vão ser no mínimo dez), permanecer de olhos fechados e comodamente acamados. Translademos, em conjunto para custar menos, para as suas nada invejáveis realidades, nas manhãs, também de pijama e hálito fétido: abrir os olhos para nada ver; e ter a mesma imobilidade, quer adormecido quer desperto. Sou insensível a qualquer discurso pró-vida, no que à minha diz respeito, relativamente a contingências que alquebrem de forma tão flagrante a necessária diferença substancial entre estar a dormir ou acordado. São muralhas da condição e consciência humanas excessivamente infaustas para o exercício da sua existência me parecer minimamente suportável. Pelo menos, sugeriria como condição irrevogável, de forma a persistir vivo neste berlinde-azul sideral, a erradicação da expressão “bom-dia!”. Num mundo de insondáveis critérios e atribuições, felicito-me sem desassombro por estar aleatoriamente do lado favorável das probabilidades. Têm, portanto, a minha irrelevante e incondicional reverência, estratificada na minha incompreensão, perante a sua coragem. 

De resto, há uma figura histórica cega-surda com quem é impossível não simpatizar: Helen Keller. A sua história de vida tem uma componente sobrenatural de difícil equivalência. Nascida a 1880, Helen Keller foi a segunda pessoa cega-surda americana a adquirir educação significativa na língua anglo-saxónica, quinze anos após Laura Bridgman, que ultrapassou largamente em capacidades. Precisamente compelida por ter lido acerca da bem-sucedida história de Laura, num livro de viagens de Charles Dickens, a mãe de Helen procurou um médico local, Julian Chisolm. Este, por sua vez, indicou Alexander Graham Bell, na altura dedicado a educar crianças surdas, à família Keller, que recomendou a inscrição de Helen na instituição onde Laura havia recebido a sua instrução, o Instituto for the Blind em Perkins. Aí conheceu Anne Sulivan, primeiro como mentora por designação do director da escola, tendo como resultado uma cúmplice e co-habitacional relação só desfeita 49 anos volvidos, devido à morte prematura de Anne. Entretanto, tornou-se na primeira dentre dos de sua condição a tirar um curso superior, em filosofia. Antes, Anne ensinara-lhe linguagem gestual, indispensável para a retirar do vácuo lógico que o desconhecimento da linguagem induz. Suprimida esta primeira muralha, aprendeu a falar, ao ler tactilmente os lábios de alguém enquanto o fazia – a explicação deste fenómeno, que confesso me transcende, é atribuída à apurada e exacta sensibilidade táctil de Helen. Não satisfeita, passou a dominar francês, latim e alemão. Não restam dúvidas quanto à enormidade desta evolução, que Mark Twain, seu amigo e confesso admirador, descreveu não excessivamente como milagrosa. Permitiu-lhe ser uma autora prolífica, activista política, oradora e jornalista. Mais: transformou-se inevitavelmente na embaixadora maior dos portadores da sua deficiência, ao outorgar-lhes inaudita voz, bem como através da criação de uma organização, com o seu nome, dedicada a investigação médica na área. 

Além de Alexander Bell e Mark Twain, foi próxima de Charlie Chaplin, entre outras figuras proeminentes. Conheceu directamente 14 Presidentes dos EUA diferentes. O governo japonês chegou ao cúmulo da consideração ao dar-lhe um novo cão da raça Akita quando o que tinha morreu. No desenho da linhagem dos seus antepassados, foi descoberto que tinha um ancestral suíço, o primeiro em terras helvéticas a ser professor especializado em surdos. Em relação a essa coincidência, escreveu na sua obra autobiográfica – ainda aos 22 anos, com a ajuda de Anne - que “não há rei que não tenha tido um escravo entre os seus antepassados, e não há escravo que não tenha tido um rei entre os seus". Tudo é dramaticamente poético. Tudo é inegavelmente heróico. Só um invulgar espírito como o que lhe é reconhecido seria hábil em desenvolver-se e expressar-se de forma tão lúcida e positiva neste contexto de défice sensorial, de consciência cavernosa - negra, silente e, inicialmente, inacessível. Uma vénia.

O episódio. Parece demasiado bizarro, mas não há como desconfiar para desacreditá-lo, por ter sido uma senhora de idade a mo relatar. Fê-lo com o pudor pincelar de uma alma indulgente, afectando no discurso a sua clarividência. Tive de perguntar: “está a dizer-me que no cortejo um senhor paraplégico e uma senhora cega pretendiam andar à pancada, com uma mesa pelo meio?” Confirmou. Indaguei quem havia saído vitorioso de sangrenta contenda, ao que me redarguiu para não brincar com este tipo de assuntos. Fiz, então, a pergunta que devia ter feito antes: “porquê?” Aparentemente, uma desavença qualquer irrelevante, imprópria e inimaginável de redundar na declaração de pancadaria mais pacífica alguma vez já feita. Somente não sei que leitura fazer acerca da mesa, porque nunca num cortejo vi uma. Talvez como elemento ficcional que sustenta uma qualquer moralidade implícita. Como acontece no Big Fish, de Tim Burton. Ou na Bíblia. O que é possível, basta atender que a mesa ostentaria tanto poder ofensivo (quem consegue dizer que os seus mindinhos não sofreram perante as mesas ou o mobiliário doméstico em geral?) quanto as facções beligerantes.

Paraplégicos lutam com cegas. Hollande diz que a crise europeia acabou. António José Seguro vai ser o próximo Primeiro-Ministro de Portugal. 4 pessoas morrem por causa de um centro comercial. O que é possível fazer que não rir? Henri Bergson entendia o riso como um fenómeno que seria reflexo do confronto com algo anormal, tendo então contornos correctivos. Mas é mais: é uma declaração de independência. É o refúgio da sanidade num mundo que tantas provas de falta de sentido dá.

(comentários do tipo "vai estudar Matemática, bandalho" serão automaticamente apagados)

3 comentários:

  1. Comentários do tipo "vai estudar SEXOLOGIA, bandalho" serão também automaticamente apagados???

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  2. Não. Vão perdurar para a eternidade.

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  3. Antes do meu comentário ser automaticamente apagado, André, quero elogiar a escolha da fotografia do senhor paraplégico em cima da mulher cega.
    Só que eu penso que este senhor paraplégico é também cego e senil.

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