338.
"Sempre me tem preocupado, naquelas horas de desprendimento
em que tomamos consciência de nós mesmo como indivíduos que somos outros para
os outros, a imaginação da figura que farei fisicamente, e até moralmente, para
aqueles que me contemplam e me falam, ou todos os dias ou por acaso.
Estamos todos habituados a considerar-nos como
primordialmente realidades mentais, e aos outros como directamente realidades
físicas; vagamente nos consideramos como gente física, para efeitos nos olhos
dos outros; vagamente consideramos os outros como realidades mentais, mas só no
amor ou no conflito tomamos verdadeira consciência de que os outros têm
sobretudo alma, como nós para nós.
Perco-me, por isso, às vezes, numa imaginação fútil de que
espécie de gente serei para os que me vêem, como é a minha voz, que tipo de
figura deixo escrita na memória involuntária dos outros, de que maneira os meus
gestos, as minhas palavras, a minha vida aparente, se gravam nas retinas da
interpretação alheia. Não consegui nunca ver-me de fora. Não há espelho que nos
dê a nós como foras, nunca há espelho que nos tire de nós mesmos. Era precisa
outra alma, outra colocação do olhar e do pensar. Se eu fosse actor prolongado
do cinema, ou gravasse em discos audíveis a minha voz alta, estou certo que do
mesmo modo ficaria longe de saber o que sou do lado de lá, pois, queira o que
queira, grave-se o que de mim se grave, estou sempre aqui dentro, na quinta de
muros altos da minha consciência de mim.
Não sei se os outros serão assim, se a ciência da vida não
consistirá essencialmente em ser tão alheio a si mesmo que instintivamente se
consegue um alheamento e se pode participar da vida como estranho à
consciência; ou se os outros, mais ensimesmados do que eu, não serão de todo a
bruteza de não serem senão eles, vivendo exteriormente por aquele milagre pelo
qual as abelhas formam sociedades mais organizadas que qualquer nação, e as
formigas comunicam entre si com uma fala de antenas mínimas que excede nos
resultados a nossa complexa ausência de nos entendermos.
A geografia da consciência da realidade é de uma grande
complexidade de costas, acidentadíssima de montanhas e de lagos. E tudo me
parece, se medito de mais, uma espécie de mapa como o do Pays du Tendre ou das
Viagens de Gulliver, brincadeira da exactidão inscrita num livro irónico ou
fantasista para gáudio de entes superiores, que sabem onde é que as terras são
terras.
Tudo é complexo para quem pensa, e sem dúvida o pensamento o
torna mais complexo por volúpia própria. Mas quem pensa tem a necessidade de
justificar a sua abdicação com um vasto programa de compreender, exposto, como
as razões dos que mentem, com todos os pormenores excessivos que descobrem, com
o espalhar da terra, a raiz da mentira.
Tudo é complexo, ou sou eu que o sou. Mas, de qualquer modo,
não importa porque, de qualquer modo, nada importa. Tudo isto, todas estas
considerações extraviadas da rua larga, vegeta nos quintais dos deuses exclusos
como trepadeiras longe das paredes. E sorrio, na noite em que concluo sem fim
estas considerações sem engrenagem, da ironia vital que as faz surgir de uma
alma humana, órfã, de antes dos astros, das grandes razões do Destino."
- O Livro do Desassossego
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Bom Domingo.
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