segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014
Série "A Esquerda Portuguesa" - 3ª Parte - A Esquerda Caviar
“Acho que é possível um entendimento bastante grande com o Bloco de Esquerda” – Mário Soares
"Controlar o crédito é a medida essencial para ter uma política virada para o investimento." – Francisco Louçã
“E quando não se pode pagar, a única solução é não pagar. Olha a Argentina. A Argentina disse «nós não pagamos». Passou-se alguma coisa? Não, não se passou nada.” – Mário Soares
Antes de começar o capítulo final deste modesto compêndio sobre a Esquerda portuguesa, tenho a obrigação de confessar os meus pecados. É necessário sentir a brisa purificadora da admissão na minha alma para poder iniciar esta inquisição retórica. Num país onde se fala tanto e não se diz nada, onde se diz tanto e não se faz nada, e onde se faz tanto e não se acerta nada, o dever mais patriótico é indubitavelmente ficar calado. Este é o meu primeiro pecado. O segundo prego da minha crucificação foi assente pelo martelo da tendenciosidade. A minha cultura familiar instituiu uma predisposição para o desprezo semiautomático relativamente às ideologias de esquerda. Por essa razão, durante um breve e inocente período, numa fase de rebeldia adolescente, aceitei os preceitos inaceitáveis da revolução marxista. Foi ao testemunhar a substancialização prática destes dogmas nas minhas primeiras incursões no mercado laboral que tomei a decisão imprescritível de virar a canoa e remar contra a corrente. A violência desta viragem acabou por verter para a minha argumentação e, por isso, eu, pecador, me confesso. No entanto, recuso-me a admitir a minha colocação na lateral-direita do campo da imoralidade. Não escrevi estes textos por malícia ideológica ou por gozo sociopático, apesar de admitir ter recorrido a ataques baixos perniciosos que me deram muito prazer. Esta é a terceira transgressão. Adicionalmente, quero que vossas excelências saibam que disponho de um coração, e que este já foi partido por uma orgulhosa militante do Bloco de Esquerda. Este facto potenciou marginalmente o enviesamento. Ser humano – é esse o meu quarto e último pecado.
O objecto deste capítulo – a Esquerda Caviar – faz-me sentir como um hominídeo desprovido de polegares oponíveis. Não consigo encontrar a ponta do fio do emaranhado labiríntico de correntes ideológicas. O sucesso da vespa-do-mar, uma espécie de medusa com um nível preocupante de dominância nos oceanos, deve-se, em parte, à sua prodigiosa capacidade reprodutiva. Hermafroditismo, clonagem, fecundação externa, autofecundação, cópula, fissão, fusão, canibalismo – todos estes métodos são utilizados pela triunfante e assustadora criatura. De uma forma semelhante, a Esquerda Caviar parece dever a sua génese, ascensão e estabilização à sua capacidade inesgotável de se multiplicar e em ver no sectarismo a sua base ontológica. Os subprodutos deste milagre gerador são uma miríade de movimentos, correntes, associações, partidos e agremiações essencialmente idênticas, que fazem circular artigos, manifestos, cartas abertas e missivas essencialmente idênticas, mas que acreditam, na sua medula, serem entes políticos drasticamente diferentes. Esta fraternidade de gémeos múltiplos recusa-se a reconhecer qualquer partilha de material genético e isso contribui para explicar o brotar desenfreado de cogumelos de esquerda nas raízes do regime. Logo, para que seja possível simplificar o objecto de investigação, limitar-me-ei a analisar uma amostra significativa, que será a Esquerda Caviar na sua variação bloquista.
O Bloco de Esquerda é resultado de uma orgia entre o Partido Socialista Revolucionário, a União Democrática Popular, a Política XXI e a Frente de Esquerda Revolucionária. Tanto quanto é possível derivar ilações superficiais da nomenclatura institucional, podemos concluir que esta foi uma união que fazia sentido na medida em que os seus nomes comunicavam claramente o seu objectivo - instituir, através de valores revolucionários, um regime socialista, democrático, popular e moderno. A ideia parecia simples, mas a cultura, por vezes, é mesmo incapaz de se sobrepor ao determinismo biológico. O sucesso inicial surgiu no mesmo ano da fundação do partido, em 1999, com a eleição de dois deputados para a Assembleia da República. Esse sucesso acabaria por culminar em 2009, quando o partido elegeu dezasseis deputados para a Assembleia da República e três deputados para o Parlamento Europeu.
Desde então, a expressão do gene dominante sectarista tem sido avassaladora e o passado glorioso do partido parece estabelecer-se de forma permanente como um curioso capítulo menor na história moderna portuguesa. Devido a divergências irreconciliáveis, a Frente Esquerda Revolucionária abandonou o Bloco de Esquerda, dando origem ao Movimento Alternativa Socialista. A União Democrática Popular recusou a sua extinção como associação política e impossibilitou a adopção de uma plataforma integrada de socialismo homogéneo. Um dos seus militantes mais conhecidos, Daniel Oliveira, anunciou o seu abandono do partido, acusando a direcção de ceder ao sectarismo interno e externo. Um dos seus rostos mais visíveis e uma das deputadas mais dotadas em termos de projecção vocal, Ana Drago, abandonou a comissão política do partido, devido a divergências relacionadas com uma candidatura integrada da Esquerda Caviar para as eleições europeias. Depois da saída do líder histórico, Francisco Louçã, o partido adoptou um modelo de “liderança bicéfala” e, com argumentos de “inovação” e “modernidade” e “igualdade”, provaram que são incapazes de concordar em algo tão simples como a estrutura hierárquica e mostrando aos cientistas políticos aplicações nunca antes conhecidas do termo “sectarismo”.
O sucesso do Bloco de Esquerda surgiu através da sua promoção de “causas fracturantes”. A despenalização do aborto, a despenalização do consumo de drogas, a legalização de drogas leves, o casamento homossexual, a adopção homossexual e, se Deus quiser, haverão de chegar à eutanásia. O resto pode ser resumido como um populismo oportunista que se expressa no apoio inquestionável a todos os sectores da sociedade que não contenham milionários. Os salários e as pensões devem ser aumentados, as propinas devem ser abolidas, as taxas moderadoras são inconstitucionais e o sector financeiro deve ser tratado como um cão raivoso à solta. Através da pintura deste tipo de plataforma temática numa tinta de estilo e irreverência, apelando às glândulas hormonais da rebeldia juvenil, o partido atraiu rapidamente uma massa revolucionários falhados, trotskistas nostálgicos, vegetarianos fundamentalistas, sociólogos marxistas, feministas militantes, amantes de árvores e apreciadores dos efeitos entorpecentes da canábis - tudo gente chiquérrima. Acima de tudo, o partido beneficiou de dois factores centrais: a novidade e o chocante numa cultura antiga e conservadora. No entanto, esta era a bela fachada da casa de horrores. No fundo, as motivações políticas do Bloco de Esquerda são tão questionáveis como a loucura ortodoxa do Partido Comunista Português. Ambos os partidos adoram os mesmos profetas do socialismo e vêem nos mandamentos marxistas a receita para a prosperidade eterna. Eles podem habitar casas diferentes, mas são vizinhos separados por um muro transparente. As suas casas são assombradas pelos mesmos fantasmas que vieram dos mesmos horrores da grande experiência social. A diferença fulcral entre estas duas estirpes do mesmo vírus é que, enquanto os comunistas aceitam a sua identidade e fazem questão de pavoneá-la com orgulho, os bloquistas, num exercício de ironia suprema, mantêm-se num armário ideológico, envergonhados de quem são, loucos e nus, a jurarem, de pés juntos e de punho erguido, que estão vestidos.
Este exercício foi um luxo intelectual e, se é que existe tal coisa, um dever moral. Quando questionado sobre a moralidade da existência homossexual, o Papa Francisco, afirmou que ele não era ninguém para julgá-los e que o dever cristão consistia na integração em detrimento da marginalização. Ao contrário do actual Bispo de Roma, eu aceito e pratico o julgamento. Eu considero-o uma ferramenta indispensável para a navegação nas águas perigosas da fossa séptica que é a política portuguesa. Sem o julgamento, o Bloco de Esquerda seria uma organização representativa de um credo válido num sistema político multipartidário que beneficia do confronto entre opiniões divergentes. A filosofia ensina-nos que a humanidade necessita do conflito dialéctico. A discussão é enriquecida por pontos de vista contraditórios. No entanto, as implicações centrais da ideologia do Bloco de Esquerda e da Esquerda Caviar são fundamentalmente erradas. Não admito o princípio absoluto de aceitação de opiniões meramente devido à sua divergência. Não existe um reconhecimento mínimo de validade na opinião divergente do socialismo. Essa ideologia nega a realidade dos instintos humanos mais básicos e insiste no controlo de algo incontrolável. Não tenhamos pena deles. Eles tiveram o seu tempo. Eles tiveram glórias e continentes inteiros. Em seu nome, actos horríveis foram cometidos. Mas não pensemos duas vezes. Neste país o tempo do socialismo deve acabar. No entanto, se houve algo que ele nos ensinaram, se houve algo de digno nos seus evangelhos normativos é que, a roda da história, por vezes, precisa de um pontapé vigoroso no rabo. Todos devemos tentar fazer a nossa parte e eu estou a tentar fazer a minha com esta contribuição insignificante. Devemos, sem misericórdia, sem qualquer permanência num reduto afectivo, usar a almofada argumentativa e, com rectidão impessoal, acabar com o sofrimento deste irritante paciente terminal.
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