sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Quinze Minutos de Miró


“Já estou a caminho. Devo chegar quinze minutos atrasado. Ainda vai dar tempo para tomarmos um café.” – Português anónimo

Há dias, quando ouvi estas frases num parque de estacionamento subterrâneo em Lisboa, fiquei em choque. Oitocentos e setenta e quatro anos como nação soberana, mil modos de fazer bacalhau, setecentas e vinte páginas d’Os Maias, mil cento e duas estrofes d’Os Lusíadas e oitenta mil milhões de euros do empréstimo da troika – nenhum destes números é capaz de encapsular como aquelas três frases singelas a maldição que é ser português.

Considerem bem o encadeamento maravilhoso daquelas palavras familiares. A mentira suave da primeira frase, a indiferença rotineira da segunda e a presunção deliciosa da última. Os suíços valorizam o tempo na sua tradição de relojoaria. Os alemães tratam a pontualidade como uma virtude sagrada. Para o português, aqueles quinze minutos de atraso não contam verdadeiramente. São um património imaterial da nação lusitana. Um direito de berço. Uma lei divina entregue pessoalmente por Deus.

Esta relação impassível que temos com o tempo é um sintoma da doença maior. É um daqueles factos que parecem um estereótipo cultural, mas não é. O nosso desrespeito pelas convenções verte para tudo o que fazemos. As fezes de cão nos passeios. As beatas de cigarros no chão. A condução psicopática. O estacionamento criativo. A evasão fiscal. A corrupção miúda. Os horários da administração pública. A relação simbiótica entre greves e feriados.

No entanto, este humoroso retrato generalista da nação não se compara à imagem absurda com que se fica do homo lusitanus depois de dar uma vista de olhos por qualquer órgão de comunicação social. Se aquilo que nos dizem é verdade, o português importa-se com os quadros do Miró. O português valoriza o “serviço público”. O português quer ter um debate sobre as “praxes”. O português é contra as touradas. O português é um activista político incansável. O português pensa que os Estaleiros Navais de Viana do Castelo são um empresa cheia de potencial. O português é contra a política “deste governo”. O português respeita o Mário Soares.

É inquestionável que um dos papéis da comunicação social é seleccionar os temas de relevo e determinar a intensidade da cobertura que cada um desses temas deve ter. É óbvio que um órgão de comunicação social nunca pode definir a sua cobertura apenas segundo as lógicas da vontade dos portugueses. Mas as recentes escolhas da agenda temática levam a concluir com um grau de certeza inabalável que as redacções estão a falhar catastroficamente na construção da harmonia entre aquilo que os portugueses valorizam e aquilo que os portugueses devem valorizar.

Neste caso mais recente, eu posso garantir que o português não quer saber dos quadros do Miró. O português nem sequer sabe quem é o Miró. Na eventualidade hilariante de os quadros ficarem num museu nacional, o português não irá visitá-los. Se por acaso visitá-los num fim-de-semana parado de Agosto, olhará para eles com choque e com a certeza de que o seu filho de sete anos seria capaz de produzir uma obra comparável. Além das alegrias do futebol e da emoção das novelas, aquilo que o português valoriza é a felicidade. A educação dos seus filhos. A saúde da sua família. Algo que tem diminuído consideravelmente nestes últimos anos. Algo que não é resolvido com uma imprensa que, no meio da terceira bancarrota da democracia, num escândalo financeiro que envolveu perdas superiores a três mil milhões de euros, decide enfatuar-se com um debate cultural sobre a venda de quadros de um pintor estrangeiro.

Enfim, é o resultado do balanço final. A entrega da factura da festa. Não há dúvidas de que este governo está a fazer um trabalho medíocre, mas a análise desse trabalho está a ser muito pior. As televisões produzem informação superficial. As rádios funcionam como televisões sem imagem. Os jornais transformaram-se em panfletos comunistas. Apesar disso, todos se proclamam como mananciais do “jornalismo de referência”. Esta comunicação social informa como se estivéssemos a viver no fim do mundo. As suas notícias reflectem-no. Quando aquilo que se precisava era de calma, inteligência e ponderação, aquilo que obtemos são gritos desesperados, o método universalmente reconhecido como a forma mais adequada de comunicar.

1 comentário:

  1. Parece que a maior proximidade física aos nossos melhores agentes da mediocridade te aguçou o talento. Com a tua mudança para a capital, notei um quantum leap na qualidade dos teus posts, quer em forma, quer em conteúdo. Não estou a querer dizer com isto que não quero que voltes, pelo contrário! Mas quando voltares, traz umas garrafinhas do ar daí, para inspirares antes de cada post, ok? ;)

    ResponderEliminar