domingo, 9 de fevereiro de 2014

Crónica de uma Morte Rogada


Numa existência em que o funcionamento dos sistemas biológicos são determinados pela vontade inexorável de sobreviver, o suicídio é um fenómeno desconcertante. A aceitação ou a recusa da validade da vida era, de acordo com Camus, o único problema filosófico sério. É um problema intimamente ligado ao conceito de significado e à forma como atribuímos sentido ao mundo em que vivemos. No dia 25 de Novembro de 1970, o celebrado escritor japonês, Yukio Mishima, fez essa escolha. Depois de se barricarem num quartel, o autor e quatro outros homens tomaram o comandante militar local como refém. A ocasião foi utilizada por Mishima para difundir um manifesto político em que preconizava a devolução de poder ao Imperador e a revisão da Constituição pacifista. A reacção obtida foi nula e, como resultado, o autor e três dos seus companheiros cometeram suicídio através de um ritual de esventramento denominado como “seppuku”.

Eu não tenho quaisquer ilusões sobre o mérito intelectual da nossa classe política. Sei que é fútil pensar que um sistema político partidocrático marcado pelas idiossincrasias culturais portuguesas levará à ascensão hierárquica justa de cidadãos competentes. Os anais dos governos democráticos proporcionam um vasto registro público com os nomes de ministros e secretários sem qualquer mérito ou competência. Os nossos dois últimos primeiros-ministros são dois baluartes desta tendência inquietante, mas receio que António José Seguro represente mesmo um patamar particularmente baixo desta mediocridade.

Ao aceitar os ditames desta infeliz propensão política, é difícil argumentar sobre a peculiaridade do líder socialista. Afinal de contas, os exemplos abundam – Miguel Relvas, Armando Vara, Paulo Campos e Rui Pedro Soares são alguns nomes que habitam na memória recente. Além disso, eu já gastei tempo, oxigénio e palavras a tentar definir a mediocridade flagrante de António José Seguro. O secretário-geral socialista brinda-nos quase todos os dias com gemas de rara imbecilidade, mas esta última ideia, pronunciada ontem, é, como António José Seguro, muito especial.

O líder da oposição propôs a criação de um “tribunal especial para investidores estrangeiros”. A acção desta inovadora instituição seria activada apenas em querelas que envolvessem “montantes significativos”, de forma a criar um “ambiente amigo” para a “criação de emprego”. No entanto, este é um homem audaz. Ele não se limita a plantar ideias abstractas no mundo e deixá-las florescer em toda a sua grandiosidade. Ele oferece também implicações práticas e concretas. O tribunal, diz-nos este anjo iluminado, operará num “prazo máximo” a ser estabelecido, de forma a garantir a resolução rápida de processos judiciais envolvendo investimento estrangeiro.


Se eu tivesse estado na mesma sala onde esta proposta foi anunciada, provavelmente neste momento estaria a escrever este texto num pedaço de papel numa cela de prisão. Esta é uma daquelas ocasiões raras em que eu sinto-me verdadeiramente ofendido e, dessa forma, considero moralmente justificável encetar neste modo discursivo de ataque pessoal. Este é um período grave da história do nosso país. Um governo amplamente incompetente utiliza uma política improvisada de austeridade sem qualquer desígnio profundo de reforma. E a única coisa que o líder do único partido da oposição com intenções de governança tem para oferecer neste momento oneroso são barbaridades inócuas e propostas infantis.

O modo mais simpático de dizê-lo é que o nosso sistema judicial é ineficaz. Em 2010, o tempo médio de resolução de um processo legal em Portugal rondava os três anos (1096 dias), um valor quatro vezes superior à média europeia. O tempo médio de execução legal de uma dívida é superior a quatro anos (1600 dias). São abundantes as histórias de julgamentos prolongados durante décadas resultando na prescrição de crimes. Qualquer empresário português tem um rol enorme de histórias sobre pesadelos burocráticos intermináveis. O país já foi condenado em diversas ocasiões nas instâncias europeias devido à morosidade do nosso sistema judicial. A classe dos juízes e o Ministério Público são duas das instituições mais desprezadas em Portugal. Para resolver problemas desta magnitude, António José Seguro propõe corromper o princípio de igualdade ao discriminar arbitrariamente processos legais recorrendo a critérios duvidosos de distinção. Não satisfeito com afirmar essa abominação lógica, Seguro ainda decide afirmar a existência de poderes mágicos do estabelecimento de prazos.

Eu já li diversos artigos em que as fraquezas de António José Seguro são substanciadas na sua alegada “falta de carisma” ou “falta de liderança”. Não tenho qualquer intenção em refutar essas afirmações. O líder socialista parece mesmo ser o homem mais entediante deste planeta. Mas os seus modos inofensivos fazem com que seja fácil menosprezar as suas maquinações diabólicas. As próximas eleições legislativas serão no próximo ano e a demência socialista ameaça desfazer a curto-prazo o progresso limitado conseguido por este governo. Um político como António José Seguro faz-me ter saudades das tradições e lugares de outrora. O tempo em que líderes japoneses arruinados cometiam suicídio por questões de honra. Esperemos que António José Seguro não tenha que arruinar o país antes de se arruinar ou que, pelo menos, se isso acontecer, alguém tenha o bom senso de lhe oferecer depois uma espada bem afiada.

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