sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Contra a paternidade


“É muito provável que aproveite estes últimos anos da minha vida, porque não os quero consumir aqui. Eu não quero, eu não aceito esta gente, não aceito o que estão a fazer ao meu país. Não votei neles, não estou para ser governado por este bando de incompetentes” – Fernando Tordo

E pronto. Seguindo o exemplo das intervenções indignadas de José Luís Peixoto e vAlTEr hUgO mÃe, eis que mais um dos nossos estratosféricos vultos de letras decide presentear-nos com um testemunho pesaroso da calamidade nacional. O recipiente do Prémio José Saramago 2009, João Tordo, divulgou uma “carta ao pai” onde expeliu a tristeza profunda que diz sentir devido à emigração do pai, o cantor Fernando Tordo, que partiu para o Brasil. Eu odeio ter que criticar um filho confrontado com a partida do pai, mas apenas o faço porque João Tordo publicou a sua “carta” num exercício público absorto onde decidiu misturar uma circunstância familiar com a situação político-económica de Portugal e ligar causalmente o destino da sua família com a acção directa do Estado português. Não satisfeito em realizar essa conexão linear redutora, o autor tem a imbecilidade de caracterizar o panorama actual de uma forma farisaica e intitulada.


O pressuposto teórico destes depoimentos é sempre o mesmo: o governo actual, no âmbito de uma intervenção política extremista desprovida de qualquer apoio popular, decidiu, meramente por capricho ideológico e por sadismo psicopático, empobrecer a população portuguesa. Está lá tudo. A vitimização pessoal paranoica. A narrativa histórica enviesada. O exercício de tautologia moral. A apresentação de factos isolados desprovidos de contexto. A simplificação de circunstâncias extraordinariamente complexas. A massagem do ego. A indignação inócua. A mendigagem calculista. A chantagem emocional.

O autor não se presta à racionalização. Não é como se a escolha arriscada de uma carreira intrinsecamente instável no mundo da música num país pequeno tivesse sido realizada livremente por Fernando Tordo. Não devemos considerar as limitações do sistema de pensões de um país altamente endividado envolvido num programa de ajuda financeira. Não existem quaisquer implicações da concessão de reformas aos sessenta e cinco anos num país onde a esperança média de vida ronda os setenta e nove. A única coisa que importa são os direitos inalienáveis de Fernando Tordo e os “valores de Abril”.

Longe de mim querer defender “os nossos governantes”, a quem o João Tordo atribuiu quatro crimes tão infantis que parecem ser o produto final de uma sessão de brainstorming num infantário, mas essas asserções burlescas a isso me obrigam. Este governo não acabou com a cultura - reduziu significativamente a despesa pública dirigida a essa área num momento em que cortam-se pensões e salários. O governo não acabou com a felicidade. Os portugueses são alegremente infelizes desde 1139. O governo não acabou com a esperança. A realidade é a verdadeira responsável. Quem cometeu um crime foi quem primeiramente criou a falsa esperança - as nossas elites socialistas, onde se podem incluir o nosso ilustre emigrante.

Essa falsa esperança foi infinitamente mais nociva do que o efeito entorpecente de “reality shows da televisão” e das “telenovelas” que o autor tanto teme. As lágrimas comunistas de Fernando Tordo são apenas o silvo daquele que vê o apagar das brasas da sua sardinha. E, se for para falar em destruição cultural, nem sequer é preciso ir muito longe. Basta que João Tordo e os seus compinchas da literatura portuguesa contemporânea continuem a produzir as suas obras, e teremos todos motivos suficientes para chorar a morte da nação.

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