segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Eusébio

A minha geração nunca viu jogar Eusébio. Ele apresenta-se-nos como um figura de contornos mitológicos, como Viriato. As únicas provas das suas façanhas estão em vídeos em que a única coisa com menos qualidade do que a imagem é o futebol praticado. A geração Y, habituada à alta-definição, aos relvados perfeitos, ao delicado trato da bola, à minuciosa estratégia e à intensidade do futebol actual, vê naquelas películas importantes registos históricos, mas dificilmente os apreciará pelos predicados futebolísticos das equipas.

Tendo eu propensão para procurar conhecer a história que antecedeu o meu nascimento, e sendo ávido consumidor do desporto-rei, perdi já várias horas da minha vida a apreciar os dotes dos heróis futebolísticos de outrora, cujos nomes estão canonizados, e que tantas vezes nos são repetidos que me sinto incomodado por desconhecer por completo as suas capacidades. Quero saber como jogavam craques como Di Stefano, Puskas, Pelé ou Charlton, como quem quer ler Shakespear ou ver filmes do Hitchcock. Deparo-me, então, com a mesma dificuldade: antes do renascer dos anos 70, o futebol praticado, mesmo ao mais alto nível, era manifestamente primário. Uma quantidade de passes e remates disparatados ao nível da Liga Vitalis e, acima de tudo, uma carência de zelo táctico de bradar aos céus: linhas defensivas pouco numerosas, descoordenadas, sarrafeiras e permeáveis a falhas de marcação que envergonhariam alunos em torneios inter-turmas.

Daí que as declarações recentes de Eusébio tenham caído mal a toda a gente, pela patética falta daquela humildade que agora tantos lhe atribuem, mas acima de tudo aos amantes de futebol da minha geração. Quando ficámos estupefactos quando Eusébio se disse triste por o compararem a Ronaldo, não o ficamos tanto pela soberba do pantera, nem mesmo pela sua confusão entre o Liechtenstein e o doutor fictício que criou um monstro. Ficamos porque sabemos que o Frankenstein de 2012 é bem melhor, táctica e tecnicamente, do que a Coreia do Norte de 1966. Sabemos que Ronaldo, num século XXI carregado de craques, em que o futebol atingiu uma importância e qualidade apoteóticas, disputa taco-a-taco um lugar como melhor jogador da era moderna com um sério candidato a melhor de sempre. E qualquer comparação de quem quer que seja a Ronaldo nunca pode ser depreciativa.

Posto isto, quero deixar claro um aspecto: o futebol praticado nos anos 60 tinha contornos amadores, e isso permitia que os melhores se destacassem mais. Mas Eusébio não enganava, era muito melhor que os outros, jogava melhor e pensava melhor. E partilha com Ronaldo uma quantidade surpreendente de características físicas e futebolísticas (velocidade, potência, instinto) mas também de carácter: ambição, inconformismo, amor pelo jogo e muita auto-confiança. Eusébio, tal como Ronaldo, sabia o quão bom era. Quando chegou a Lisboa, com 19 anos, à equipa campeã europeia, declarou que tinha a certeza que iria entrar na equipa. Uma segurança narcisística, essencial para certos jogadores, como é para Ronaldo.

Deixo também claro que também eu sinto um orgulho irracional por partilhar com o pantera o país que também irracionalmente amamos. Tem destas coisas a vaidade da homogeneidade lusitana: todos festejamos o mesmo, todos sofremos pelo mesmo. Com uma figura lendária como Eusébio temos todos uma inexplicável ligação emocional, pela sua grandeza de quinas ao peito. Ver o jogo com a Coreia do Norte arrepia, como arrepia o golo de Rui Costa aos ingleses na Luz e os três de Ronaldo na Suécia, com uma diferença: não o presenciei em directo, estava até longe de ser concebido. A universalidade dessa emoção nacional, que o futebol ajuda como mais nenhuma arte a carregar, ajudaram a consagrar Eusébio como um deus entre mortais.

Tal como as de um adolescente Ronaldo na final do Euro 2004, as lágrimas de Eusébio em 1966 foram nossas também. Merece que as derramemos agora por ele.

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