segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O Plural de Praxe

Ressalvo, primeiramente, que esta pequena acha que lanço para o incêndio mediático que se alastra no país não se trata de uma resposta à opinião do meu amigo Leandro, cuja leitura, de resto, recomendo vivamente. Conservassem todos os que teceram considerações sobre o assunto a sua astúcia. Raramente os humildes cronistas deste espaço repetirão temáticas já exploradas por outro, e isto acontece sobretudo porque partilhamos grande parte das opiniões sobre grande parte dos assuntos e não há necessidade de redundâncias. Neste caso, porém, considero pertinente partilhar uma opinião de alguém manifestamente integrado e interessado, como é o meu caso.

Reitero que também eu fui rejeitando fazer parte deste insano furacão, para que a praxe conservasse alguma da pouca virgindade que lhe resta, mas essa foi já definitivamente e erroneamente rasgada. Este texto não se trata, no entanto, de uma apologia reaccionária da tradição praxística. Muito menos explorarei aqui, em espaço desapropriado, questões que considero irem além daquilo que a sociedade civil merece saber. Discorrerei, portanto, numa análise que prometo ser tão fria quanto a minha exasperação me permita.

Assim sendo, começo por dizer que compreendo a indignação anti-praxe. Não as dimensões que atingiu, nem os moldes com que é exposta, mas a aversão que a origina. Mesmo antes da implosão atómica desta bomba de cólera, já o afirmava: a praxe tem, aos olhos estranhos dos elementos que de fora a observam, contornos bizarros. Daí que os seus preceitos sejam apreendidos gradual e internamente, para que surjam contextualizados e não através de infografias no telejornal. Entendo a estranheza que a praxe causa àqueles que não a compõem, principalmente quando os media noticiam apenas o lado negro da mesma. E é natural que assim aconteça: a praxe bem feita não suscita interesse alheio ou jornalístico. Mesmo quando existem pequenos abusos, tratam-se de questões que podem e devem ser resolvidas pelas pessoas envolvidas.

A sociedade civil vê-se implicada, isso sim, quando os abusos cometidos se tratam de crimes graves. Li já por aí que esta é uma óptima oportunidade para a praxe se abrir à sociedade, expor as suas virtudes, porque "quem não deve, não teme". Este é o mesmo tipo de falácia argumentativa que legitima uma sociedade orwelliana, que justificaria câmaras dentro de todas as casas porque em algumas existem casos de violência doméstica. A privacidade e o secretismo são direitos que são retirados a quem deve, e não a quem não deve. Dito isto, o pacto de silêncio da comunidade praxística da Lusófona causou muita indignação, mas se for aplicada exclusivamente à comunicação social, e naturalmente nunca alastrada às entidades judiciais e às famílias das pessoas envolvidas, é uma decisão sensata, na medida em que impede a proliferação de versões contraditórias e porventura inventadas, em respeito do sobrevivente que tem, ele sim, de esclarecer a situação; mas teve também o condão de aumentar a curiosidade e fúria contra esta sociedade secreta.

Como o Leandro bem explicitou, a praxe tem poucos alicerces racionais passivos de serem usados para justificar a sua existência a alguém de fora, e raramente vão para além do saturante, mas legítimo, argumento da integração. Talvez esta dificuldade de explicação lógica justifique o prazer dela retirado. Todos sabemos que a vida é uma corrida de obstáculos que, de forma a estes serem contornados, tem de ser vivida de forma lógica, coerente, inteligente. O que torna, desde logo, grande parte desse percurso entediante. O que a vida traz de bom, no entanto, são os prazeres inviolados por essa racionalização. Futebol. A companhia de uma mulher. O cheiro de um livro antigo. Praxe. Pequenos deleites que têm origens que extrapolam a vertente lógica. Se ignorarmos a emotividade do prazer, de nada serve a frieza da racionalização. Ou se conjugam os dois pólos ou o suicídio é o destino provável.

Perturba-me que todo este turbilhão pró e contra praxe surja na sequência de uma tragédia que extrapola em muito a banalidade deste debate. Defensores da praxe invocam o bom senso na execução da mesma como factor diferenciador; opositores invocam o bom senso para a sua supressão. Custa-me, no entanto, encontrar o bom senso em qualquer um dos lados, perdido que me encontro entre os ataques enfurecidos a uma actividade que ignoram e o fanatismo dos que defendem a praxe como se de uma religião se tratasse. Nada está acima do debate, mas é impossível tê-lo se não se despirem preconceitos, na mais pura semântica do termo. De parte a parte.

No meio de tudo isto, tem de se referir um aspecto incompreensivelmente negligenciado: a utilização do termo "praxes" no plural é o equivalente etimológico a um pontapé nos testículos. Dói fisicamente ler tal expressão. Não é ofensiva, pelo contrário, mas é intensamente e inexplicavelmente enfurecedora. No entanto, a sua repetida utilização na comunicação social traduz, inadvertidamente, algo que esta parece ignorar: a pluralidade e diversidade de práticas praxísticas, que legitima a continuidade da sua existência, alheia a energúmenos, que no início da tradição praxística jamais teriam lugar no ensino superior, que bebem a supremacia como uma droga e que teimam em desonrar, não só a capa, como toda uma geração. Geração essa que padece de males bem mais graves do que a praxe, que a única dor que me trouxe foi a de me fazer perceber, a pouco e pouco, que os acordes de guitarra que ressoam pelo Porto nas Serenatas se tornam a cada ano mais agradáveis, mas a cada ano mais distantes.

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