quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

O Terramoto de 1755 em Fukushima


Não é possível evitar uma sensação de culpa quando apreciamos a beleza do Convento do Carmo. O edifício parece mais bonito e integrado na cidade em ruínas do que como uma estrutura íntegra. É nisto que penso enquanto sento-me num banco no Largo do Carmo a observar os claustros e as naves remanescentes do templo sagrado onde ficou encerrado o túmulo destruído de D. Nuno Álvares Pereira. Em 1755 um dos maiores terramotos da história causou a morte de dezenas de milhares de portugueses, principalmente em Lisboa, com a onda de choque inicial, as derrocadas e os desabamentos consequentes, os incêndios infernais que se seguiram, e um maremoto que finalizou a tragédia com notas apoteóticas de requinte.

Apesar de ter sido uma catástrofe menor na história geral das calamidades, este evento teve repercussões enormes. Está ligado ao surgimento da sismologia, assim como inquéritos filosóficos, que eclodiram com o choque dos homens perante o confronto com o mal sem explicação num planeta indiferente. As convulsões sociais e as mudanças políticas resultantes levaram à ascensão de uma figura - o Marquês de Pombal - e à imposição marcas indeléveis na história nacional. O Terramoto de Lisboa surgiu como o pontapé que derrubou a estrutura política podre e acelerou o início do declínio do Império Português.

Em 2013, tão próximos já de 2014, parece quase anedótico falar de um terramoto em Portugal. Um país de gente tão pacífica e inofensiva, sem catástrofes naturais recorrentes, sem criminalidade violenta, sem fauna e flora perigosa, sem terrorismo sectário ou outros fenómenos exóticos que causam tanta morte neste mundo. Mas aconteceu mesmo. O chão que estamos a pisar, aqui e agora, moveu-se. O chão moveu-se. A terra emitiu um som horrendo. O mundo abanou. O mar invadiu a terra. É afirmado que, como habitantes do mundo desenvolvido, tomamos demasiadas coisas como certas. É afirmado que não valorizamos o amor da nossa família, que não agradecemos aos anjos e santos pela comida abundante e pela água limpa, e que assumimos, de forma ingénua, que nada de mal nos pode acontecer. Pensamos que os acontecimentos das nossas vidas têm sempre explicação e são, por isso, previsíveis, através do prisma prático do senso comum. Mas eu não concordo com essa asserção. De todas as variáveis da vida, aquelas que consideramos como certas, seguras e previsíveis são as mais óbvias e passíveis de serem ignoradas. O chão não se move. Edifícios não caem. O mar não invade a terra. Todos nós, mesmo os ateus, vivemos com a noção inabalável de que existem certos aspectos divinos no equilíbrio inabalável da Terra. O sol, a lua, o céu, as montanhas, o ar. São apenas peças perfeitas de um cenário permanente.

Nas descrições oferecidas por sobreviventes do terramoto, e subsequente tsunami em Fukushima, mostram-nos que esse equilíbrio é instável. Alguns factos marcantes demonstram o que acontece quando o chão nos trai. Um dos sobreviventes, um homem de meia-idade, mencionou que a primeira coisa que notou foi a ausência absoluta de pássaros. Não consigo pensar num mundo tão estranho como aquele desprovido do chilrear adorável e irritante dos pássaros. O sobrevivente disse ainda que notou que não eram só os pássaros que faltavam. Era tudo. Não havia som. Não haviam sons claros e discerníveis. Não haviam máquinas, carros, passos, respirações, combustões, estalares, choques ou vozes. Não havia nada. Ele disse que, por momentos, pensou que era o último habitante da Terra. O pior, disse, é que ele não conseguia sentir nada. Ele tinha-se deparado com o maior dos horrores. Um evento causado pelas maiores magnitudes da Natureza. Mas ele não conseguia sentir nada, nem quando viu uma mulher a segurar o corpo inanimado do seu filho, nem quando começou a notar nos cadáveres, centenas deles, ou quando viu cães a comerem carne humana.

Quando o som voltou, as suas únicas manifestações eram gritos, sirenes, choros, explosões e pedidos de ajuda. Mesmo com esses sons de sofrimento, ele disse que não conseguia sentir nada, e que essa ausência acabaria por durar dois dias inteiros. Ele queria chorar ou pelo menos sentir um aperto no peito, um frio no estômago. Alguma coisa. Qualquer coisa. Era como se o seu cérebro não fosse capaz de processar emoções. Estava em choque, disse-lhe uma médica dos serviços de emergência, numa tenda improvisada de assistência hospitalar. Esse vácuo chegou ao seu fim quando, na fila do refeitório da tenda, uma menina perguntou-lhe queria passar à frente, visto ser mais velho do que ela. À sua volta, reparou que reinava uma serenidade forte e digna. O desespero tinha desaparecido. Ele recusou a oferta simpática da criança, dizendo não ter muita fome, e saiu da fila, para fora da tenda. Os pássaros tinham voltado. Eram poucos, mas suficientes para fazer com que o homem se ajoelhasse e, consolado, começasse a chorar sobre o chão que tinha-se movido. O futuro era incerto, mas, indubitavelmente, mesmo num mundo onde o próprio chão pode ceder, a vida continuava. Não era uma questão de escolha ou força de vontade. Simplesmente era.

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