terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Anjos e Demónios


Agora que a poeira já começou a assentar sob a campa sagrada do Eusébio, julgo que é adequado falar sobre algo que me parece verdadeiramente perturbador em toda a cobertura mediática da tragédia. Não tenho nada a dizer sobre o Eusébio. O brilhante, mas preguiçoso, Diogo Hoffbauer já escreveu sobre isso e expressou tudo aquilo que eu penso sobre o nosso Messias de chuteiras.

Aquilo que me perturbou verdadeiramente foi um aspecto menor de toda esta comoção. A nossa imprensa insiste em disponibilizar tempo de antena ao Mário Soares. No rescaldo da morte, foram divulgadas as declarações do nosso Ilustre Senador sobre o Pantera Negra. Era um homem de “pouca cultura”, disse ele, que passava o dia a beber whisky e a frequentar restaurantes de carácter duvidoso.

Como agora acontece neste mundo cibernético, as reacções foram quase imediatas. As multidões chorosas devem ter ficado chocadas. O Facebook deve ter inflado com tanta indignação. Os servidores do Twitter devem ter entupido. As nossas personalidades da “opinião” não fizeram por menos, e decidiram massacrar o Grande Pajem da Esquerda por ter vozeado declarações tão ignorantes, estúpidas e desrespeitosas. Aproveitaram certamente este deslize para criticar a figura em todas as vertentes da sua vida - pessoal, cultural e política. Acusaram-no de snobismo, elitismo, presunção e vaidade.

A questão aqui é que a culpa não é do Mário Soares. Independentemente do espectro ideológico, qualquer pessoa que acompanhe a imprensa nacional já deve ter percebido que há cerca de dois anos que Doutor Mário não diz outra coisa senão barbaridades absurdas. A culpa é dos supremos idiotas que, dia sim, dia não, insistem em encostar microfones à boca caduca do Pai do Regime. Estes jornaleiros de pasquim procuram, com a avidez de piranhas em águas ensanguentadas, declarações que sejam chocantes e chamativas. Tudo para cumprir a missão repugnante de atrair espectadores, obter visualizações e somar “gostos”, estando completamente indiferentes ao dever de informar objectivamente.

Eu consigo suportar as opiniões datadas de Jerónimo de Sousa relativamente à sociedade, política e economia. Elas são inofensivas. São os sons flatulentos de um cadáver que passou do prazo de validade e insiste em ocupar um lugar no parque de estacionamento dos vivos. Eu não levo a mal. Não é pessoal. Sei que existem pessoas com opiniões que considero aberrantes, mas são pessoas que possuem mentes sãs e que possuem a legitimidade necessária para serem confrontados com a amplificação da caneta jornalística.

Eu não tenho qualquer pretensão de sapiência médica, mas parece-me óbvio, ou pelo menos provável, que o Doutor Soares esteja a ficar senil. Não no sentido patológico e cruel da demência, mas no sentido de que o antigo Presidente está a ser afectado pelo declínio inevitável e natural das suas faculdades mentais. A sua mente já não possui a destreza de outros tempos. A sua bússola emocional desregulada impede-o de absorver informação contextual e medir o peso das suas palavras.

Eu não vejo nas afirmações do Mário Soares sobre o Eusébio nenhuma intenção maldosa ou qualquer depravação moral. Eu desprezo os tablóides imundos povoados por seres humanos abjectos que, depois de recolherem aquelas afirmações, decidem difundi-las com uma intenção clara de manipulação. O objectivo deles é estimular uma glândula traquina que todos nós temos. A glândula que regula aquele instinto perverso que nos leva a tapar os olhos, mas a não resistir em ver o acidente através das brechas entre os dedos. Este jornalismo mucoso estimula o alívio perante a tragédia alheia, vê no chocante uma versão mais nítida da verdade e engana-nos com a ilusão de que todos somos anjos a observar, incólumes, a devassidão dos demónios.

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