domingo, 26 de janeiro de 2014

A Verdade da Mentira


"Competing is intense among humans, and within a group, selfish individuals always win. But in contests between groups, groups of altruists always beat groups of selfish individuals." - E. O. Wilson

Eu odeio que isto esteja a acontecer. Com cada palavra que eu escrevo neste maldito teclado, um pedaço da minha alma se dissipa no vento. O meu ego desapontado olha para mim e, com os braços cruzados, vira-me as costas e vai-se embora. Infelizmente não consigo aguentar mais. Eu tentei, juro que tentei, ignorar o circo mediático que chegou ao país, e decidiu montar a tenda para discutir a morte de seis jovens no âmbito de uma actividade praxística. Apesar das amplas distracções proporcionadas pelos palhaços de serviço, temo que o fedor do esterco dos animais seja demasiado violento para continuar a ser ignorado.

Em primeiro lugar, uma declaração de desinteresse. A minha participação em praxe durou um dia. Eu considero essa prática académica ridícula, mas não singularmente ridícula. A minha recusa da mesma existe apenas no mesmo plano de recusa da bócia, sushi, caça a golfinhos e pepinos. Já experimentei (com a excepção da caça a golfinhos) e cheguei à conclusão definitiva de que não gostei. Não é para mim, mas há quem goste. Não há nada de errado com isso.

Eu não tenho a capacidade de suspender parcialmente a razão, o senso comum e a moralidade em nome da integração social. Mas se existe um grupo de adultos vacinados que tenham a vontade e a capacidade de fazê-lo, em nome do seu próprio prazer, sem prejudicarem terceiros, desde que todos o façam de livre vontade e desde que todos estejam devidamente habilitados para a utilização dos seus respectivos cérebros funcionais, não existe nada que eu ou alguém possa dizer para dissuadi-los de fazerem o que quiserem.

O chiqueiro discursivo que se tem observado neste caso é altamente revelador da ignomínia bipolar que tende a marcar o debate em Portugal. O debate é reduzido a uma mera proposição preta e branca de “ou isso, ou aquilo”. Num dos extremos, a praxe é uma actividade legítima, sustentada pelos mais nobres pilares de irmandade e bondade, com objectivo honroso de integração social, não estando sujeita a qualquer crítica. No outro, a praxe é uma aberração proto-fascista, um culto baseado na submissão sadomasoquista absoluta dos mais fracos, com o objectivo desprezível da fruição da autoridade, e que deve ser proibida. Como sempre, a verdade está algures entre os extremos, no território cinzento, longe do fundamentalismo passional, da cegueira emocional e do ódio moralista.

É óbvio que numa análise lógica objectiva, centrada nos valores socioculturais vigentes no mundo ocidental, a praxe não tem qualquer base para defender a sua existência. No prisma da generalização é uma prática académica que discrimina enquanto alega integrar, que pratica rituais tendencialmente imorais baseados em pressupostos ilegítimos de autoridade. É uma actividade largamente desprovida da tradição que alega ter, e na qual se baseia para justificar uma miríade de actos objectivamente desumanos. A praxe é logicamente inconsistente, mas não singularmente inconsistente, pois é essa a natureza dos conceitos abstractos com os quais organizamos a nossa existência.

As nossas vidas são definidas por essa inconsistência lógica. É a ambiguidade moral que nos permite existir ordeiramente sem a erupção de histeria em massa. Os nossos princípios éticos são as máximas às quais as nossas acções aspiram respeitar, não são leis absolutas impositoras de obediência total. Todos somos culpados de propagar a hipocrisia, a mentira e a falsidade. Não existe uma vida possível no mundo da verdade absoluta. Somos criaturas de espírito tribal dadas ao ritualismo. A nossa pulsação é bombeada pelo imperativo genético de que a sobrevivência depende da integração em grupos. No seu âmago, a praxe é apenas um subproduto cultural desses imperativos – um conjunto de ritos objectivamente irracionais que cultivam o altruísmo no seio do grupo e o egoísmo do grupo relativamente a outros. Isto é que todos nós fazemos nas nossas famílias, agremiações culturais, clubes de futebol e partidos políticos.

Quanto à natureza específica de actos habitualmente associados à praxe, apenas tenho a dizer que a livre vontade aqui é a chave. Durante toda a história da humanidade, pessoas extraíram prazer de trocas concertadas de submissão e poder entre indivíduos livres. Isso pode parecer errado objectivamente, mas a praxe não é diferente de outras actividades inseridas neste espectro marginal de fetichismos praticados por minorias, como o sadomasoquismo sexual. Estas actividades não possuem legitimidade objectiva isolada, mas quando contextualizadas como interacções livres sem malefícios para terceiros, a sua legitimidade vem à superfície.

Naquela noite, o erro dos jovens do Meco não foi a prática de rituais praxísticos. Foi a estupidez de estarem dentro do mar, durante uma noite de Inverno. Não existe mais nada. Não existe qualquer necessidade de um debate sobre a praxe. As pessoas gostam de coisas estranhas - é a explicação mais simples do fenómeno praxístico. Aquelas mortes são o subproduto da inconsciência juvenil e não uma consequência directa da existência de um culto estranho. Esta embrulhada tem, no entanto, os seus benefícios indirectos. Eu sou um amante de história medieval e, na ausência de tecnologia que possibilite viajar no tempo e na ausência de disponibilidade para viajar para a Suazilândia, isto é o mais próximo que eu alguma vez estarei de testemunhar uma caça às bruxas.

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