segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Orgulho Lusitano

O nacionalismo é um fenómeno peculiar. Como pronunciou Doug Stanhope na sua embriagada sabedoria, faz-nos odiar pessoas que nunca conhecemos e orgulharmo-nos de feitos que não são nossos. Seja dos golos do Ronaldo ou dos tipos que apareceram na Time por terem inventado um café altamente alcoólico, partilhamos todos, do mais ferveroso comunitário ao mais altivo individualista, uma satisfação mais ou menos acentuada pelas façanhas dos nossos conterrâneos. Há essa aura de irmandade entre o mais rico e o mais pobre, o marxista e o hayekiano, o portista e o benfiquista, o inteligente e o néscio. Num mundo em que as diferenças entre os cidadãos são, por ambas as partes, cada vez mais realçadas, este orgulho nacionalista, herança da vaidade colonial, tem um papel importante na agremiação do nosso povo.

Falo-vos do louvável nacionalismo lusitano numa semana em que me deparei na imprensa internacional com dois artigos relativos a esta histórica província que habitamos. O primeiro, publicado pelo NY Times, foi muito divulgado nas redes sociais pela analogia entre o declínio da população de burros mirandeses e a situação dos humanos seus compatriotas. Escusado será dizer que esta divulgação foi devidamente acompanhada de uma inevitável dose de indignação. Quem são os americanos para nos compararem a burros de carga?

Exacerbado nacionalismo a funcionar; entendo a revolta contra os termos depreciativos da comparação. É, à primeira vista, uma pressão demasiado forte na já aberta ferida de orgulho nacional. Eu próprio, confrontado com o título, expressei um esgar de dor na dita ferida. Uma vez consultado o artigo, anestesiei-me. A peça apenas reservava um parágrafo a esta comparação; todos os restantes exploravam exclusivamente a condição do burro. O burro animal, não o que acumulou orçamentos deficitários. Podem os críticos alegar que todo o texto é uma grande metáfora, banhada de um queirosiana ironia. A verdade é que esta só é detectada quando a carapuça serve. E esta carapuça tem o tamanho ideal.

O outro artigo que acima referi é do Le Monde, que alerto não ter o hábito de ler, por eu ter um vocabulário francês comparável ao do Marco Horácio a imitar o Bölöni, mas que consta na edição deste mês do Courrier Internacional. Esta peça, contrariamente à tendência dos artigos referentes a Portugal, é elogiosa do povo luso. Realça o artigo a resistência da população em cair na tentação natural em tempos de crise de se refugiar em perigosos extremos políticos. No cenário europeu actual, são exemplos incontornáveis a assustadora Frente Nacional de Marine Le Pen, o bizarro Movimento 5 Estrelas de Beppe Grillo e o violento Aurora Dourada de Michaloliakos. Os portugueses, louva o jornal, não têm caído nessa inclinação.

O periódico gaulês justifica esta aversão a extremismos com a história recente do país. Com os fantasmas ainda mornos do Estado Novo, a extrema-direita não tem lugar no debate político, quanto mais no hemiciclo. Ainda bem que assim é. O problema é que, resultado também desse repúdio traumático à direita (de significância tão ambígua que custa generalizar o termo), vivemos numa sociedade sindicalista que, compreensivelmente ou não, se dedicou a compensar magnanimamente, a qualquer custo e de forma precipitada, décadas de direitos negados.

O Le Monde destaca acertadamente uma resistência na viragem à direita radical; carece, no entanto, este artigo de uma referência importante. A guinada à esquerda só não foi acentuada porque ela já havia sido feita. Os partidos esquerdistas radicais de grande adesão não surgiram porque já cá estavam. E só a inabilidade política os impede de crescerem (a divisão do eleitorado que resultará da criação do Livre do Rui Tavares não ajudará).

De resto, esta referência ao novo partido, de que o artigo do Le Monde é omisso, é pertinente. O partido de esquerda que emergiu nesta crise não assume uma posição extremista, pelo menos na teoria. Surge, isso sim, para que haja uma alternativa de esquerda moderada ao arco de governação. Um partido à direita do PC e do Bloco, que nada terá de eurocéptico nem se limitará ao protesto gratuito. Um fenómeno exactamente inverso do resto dos países europeus. Se isto não é sintomático do nosso ponto de partida extremista, não sei o que será.

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