sexta-feira, 10 de maio de 2013

Insónia, Televendas e Telejornal (eu não consegui pensar num título)


São dez horas da noite. Um homem enfia-se na cama. Está orgulhoso. Sente-se triunfante. Conseguiu resistir aos encantos sedutores e malignos do entretenimento cibernético. Em outras noites, falhava. Sentia-se como um fracassado. Um desperdício de moléculas. Uma vergonha para a família. Uma desgraça para a nação. Uma ovelha negra incapaz de adormecer a horas decentes. Nessas noites, olhava para o relógio e era meia-noite, mas pouco depois eram três da manhã. E este vagabundo tinha que acordar às seis. E acordava, meio morto, meio vivo, dominado pelo ímpeto dos impulsos suicidas matinais que infestam a população preguiçosa.

Mas nesta noite, o caso era diferente. Conseguiu resistir. No meio deste vinte e cinco de Abril individual conseguiu derrubar o regime ditatorial da escassez de sono. Acordará feliz (quase) e cheio de energia. Se tudo correr bem, dormirá as abençoadas e recomendadas oito horas de sono. Poderá ser um membro produtivo da classe trabalhadora e contribuir para o produto interno bruto. A criatura lê um livro. Ajuda a adormecer. Meia hora bastará, pensa ele. O tempo passa e ele continua sem sono. Lê mais. São onze horas. Lê mais um pouco. É meia-noite. Continua sem sono. Decide tentar dormir mesmo assim.

Vira-se para o lado esquerdo. Pondera a natureza imutável do teto. Vira-se para o lado direito. Pensa na vida. Pensa nela. Pensa no arqui-inimigo quotidiano que todos temos. Passa mais uma hora. Vira-se de barriga para baixo, com a cara enfiada na almofada. Pondera novamente o teto. Percebe que fracassou. Percebe que está cheio de fome. Como as horas são impróprias e a necessidade fala mais alto, qualquer coisa serve. Azeitonas, sardinhas enlatadas, bolachas, batatas fritas e chocolate. Não consegue comer mais. Não quer ler. Ele decide ligar a televisão.

São duas horas da manhã. A única coisa que passa é o programa de televendas. Primeiro estranha. Mostra desprezo. Sente a superioridade que advém de ser uma pessoa que abomina este exercício de marketing. Depois apaixona-se pelo festival de horror do empreendedorismo americano. Não percebe como aquele programa consegue cativá-lo daquela forma.

Oh, sim, pensa ele, canta para mim, ó musa, e diz-me quais são as coisas que eu preciso de comprar urgentemente. Num mundo de escolhas infinitas, é relaxante observar alguém tentar convencer-te, com um entusiasmo desconcertante, que aquilo é exactamente o que falta na tua vida. Tu não precisas de pagar a renda. O preço da gasolina é irrelevante. Aquilo de que tu precisas é de um cortador de pêlos do nariz. Tu precisas de uma caneta mágica que remove os riscos do teu carro. Tu precisas da lâmina que te permite cortar os vegetais da forma mais prática e interessante. Tu precisas de exercitar os teus abdominais se mexeres um único músculo. Tu precisas da máquina igual à Bimby mas que não se chama Bimby.

Esquece o teu trabalho. São três da manhã, mas só se vive uma vez. Agarra naquela garrafa de vinho que não acabaste. Bebe o resto. Não te preocupes com copos. Bebe da garrafa. Não preocupes quando entornares vinho tinto no colchão. Alguém deve vender alguma coisa que resolve isso facilmente. Quando estiveres bêbado e forem quatro da manhã, vai à casa de banho e faz caretas no espelho. Vê como já tens aquilo que se parece com o início de rugas. Ri-te sozinho. Não te preocupes. No televendas estão a anunciar que o creme de baba de caracol consegue amaciar as deformações cutâneas mais profundas.

Às cinco da manhã, adormeces. Aliás, desmaias. Às seis, o despertador toca e tu, resignado, acordas. Ainda estás um pouco bêbado. Aceitas que aquilo não é um sonho e aceitas que és um adulto e aceitas que tens mesmo que trabalhar, e que, afinal de contas, já te sentiste pior. A televisão ainda está ligada. O noticiário substitui as televendas. Oh não, pensas tu, o desfile de malucos a tentarem vender o impossível acabou de começar.

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