94.
"Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente
como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir – é lembrar
hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida
perdida.
Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com
cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua da emoção – isto, e só isto,
vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos.
Esta madrugada é a primeira do mundo. Nunca este cor rosa
amarelecendo para branco quente pousou assim na face com que a casaria de oeste
encara cheia de olhos vidrados o silêncio que vem na luz crescente. Nunca houve
esta hora, nem esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que for será outra coisa, e
o que eu vir será visto por olhos recompostos, cheios de uma nova visão.
Altos montes da cidade! Grandes arquitecturas que as
encostas íngremes seguram e engrandecem, resvalamentos de edifícios
diversamente amontoados, que a luz tece de sombras e queimações – sois hoje,
sois eu, porque vos vejo, sois o que [serei?] amanhã, e amo-vos da amurada como
um navio que passa por outro navio e há saudades desconhecidas na passagem."
- O Livro do Desassossego
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Bom Domingo.
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