quinta-feira, 23 de maio de 2013

Fogo!



Juntem-se à minha volta, caros concidadãos, patrícios e amigos, e formem um círculo: pois eu sou aquele que passou os portões do Inferno e viu, com os seus próprios olhos, o reino do Demo. Eu senti o calor sufocante das labaredas eternas e fiquei cercado pelos lagos de lava. Não se atrevam a desviar o olhar, caros irmãos, e leiam, pois ontem eu estive no Inferno na terra e o seu nome verdadeiro não é Inferno – é Loja do Cidadão.

Esqueçam os contos expelidos pelas bocas desditosas dos charlatães do quotidiano que ousam declarar que os infernos terrenos se encontram nas maiores aglomerações de sofrimento materialista. Na Suazilândia, onde mais de um quinto da população tem SIDA, e uma minoria desgraçada vê-se mesmo obrigada a ingerir fezes, de forma a cumprir a obrigatoriedade de revestir o estômago antes de tomar a medicação da síndrome cruel. Na Somália, onde o governo não controla o país, que é assolado diariamente por milícias islamitas que impõe com mão férrea a lei de sharia. Na Síria, onde guerra civil é violenta e o fim não existe. Ou aqui mesmo, em Portugal, onde a maioria da população vê-se obrigada a observar impávida enquanto um clube regional, representando uma tribo selvagem e bárbara do Norte, rouba descaradamente o título de campeão nacional de futebol.

Enfim, esqueçam estas tragédias. Cesse o chorar dos violinos e o tilintar dos pianos. O Inferno na Terra é a Loja do Cidadão, nas suas diversas filiais, todas igualmente mefistofélicas, todas capazes de corromper ou mesmo de roubar aquilo que o Homem tem de mais precioso – a sua alma – bela, virginal e cristalina. Este é um lugar que combina, com um requinte luciférico, a tortura da existência burocrática do escritório português com o sofrimento sem fim da sala de espera de um hospital. Aqui é o lugar onde o tempo não passa.

As televisões mudas sintonizadas na TVI e os monitores que indicam os números das senhas da fila dividem as atenções dos presentes. O horror espelhado nas suas faces inertes é a representação viva de um grito munchiano. As pessoas esperam e olham. Procuram padrões nas paredes. Os funcionários informam e explicam. Carimbam guias e assinam documentos. Os telefones tocam e as gavetas abrem. Algumas pessoas dormem. Outras parecem não saber onde estão. Roga-se pelo acender de luzes e pelo correr das águas canalizadas. Fazem-se contas das pensões e pagam-se multas. Adolescentes hesitantes pedem o registo criminal vigiados pelo olhar destemido de mães desapontadas. Nada causa tanta submissão como o amor maternal enraivecido.

Isto é o que se vê todos os dias nestas casas assombradas. No entanto, ainda piora. Dentro do inferno burocrático existe um compartimento especial, onde as chamas são mais altas e mais fortes e as almas, que antes queimavam lentamente, agora são sublimadas. As filas são enormes e começam antes do sol levantar. Estes são os desgraçados, os corajosos, os loucos.

Estes são aqueles que se encontram na porta da Segurança Social. Casais jovens que carregam bebés irritantes. Homens de meia-idade com pastas de documentos que parecem ter a rigidez de tijolos vermelhos. Ao contrário dos condenados das outras partes do Inferno, estes parecem ter outra expressão na cara. Não é horror, indiferença ou resignação. Não é melancolia. É um aviso para os transeuntes de que alguma coisa, algures, correu muito mal. Eu vejo isso num sorriso perverso no canto da boca que todos eles parecem mostrar, como se estar preso no vórtice das boas intenções estatais fosse a coisa mais engraçada do mundo. No final da tarde, eu saio do trabalho e vejo que o edifício já está vazio. O Sol desce e as filas já se dissiparam. Por momentos, eu não sei o que é pior. Entrar e beneficiar de ajuda ou ficar cá fora e ter que fazer de tudo para não precisar dela.

Sem comentários:

Enviar um comentário