terça-feira, 23 de maio de 2017

Porque é que gostamos tanto dos vilões? - Um estudo socio-psico-antropológico

Confesso aqui um fascínio por Edmund Kemper. O leitor estará neste momento justificadamente confuso: ou não sabe quem é Edmund Kemper, ou sabe que é um assassino em série, violador, canibal, matricida, necrófilo, que matou os avós paternos com quinze anos e que está desde os vinte e cinco encarcerado num hospital prisional na Califórnia. Creio que é portanto adequado, para evitar juízos precipitados, o devido enquadramento do encanto que tenho pela personalidade deste homem sádico e perverso.
Kemper espalhou o terror nos campus universitários de Santa Cruz, na Califórnia, durante um período de onze meses no início dos anos 70. Tinha um método e um alvo predilecto: raparigas adolescentes a quem oferecia boleia para posteriormente violar, matar, mutilar e comer, pela ordem que lhe agradasse mais dessa vez. Para cumprir o seu desígnio, tinha duas características que faziam dele, durante os seus meses de matança, um assassino particularmente sinistro. Primeiro, tinha a dimensão intelectual: um Q.I. estimado em 145 e a frieza e naturalidade que só a verdadeira sociopatia consegue proporcionar permitiam-lhe ser educado, bem falante, e manipular as jovens inocentes com facilidade. A isto aliava a dimensão física: com mais de dois metros e cento e catorze quilos, subjugava muito facilmente as suas vítimas, mesmo às duas de cada vez.
Já havia sido preso ainda criança, por assassinar os avós paternos com quem vivia. Considerado posteriormente reabilitado e seguro para viver em sociedade, foi libertado com os vinte e um da maioridade. Cerca de dois anos mais tarde, começou a matança, que terminou com a morte da própria mãe, numa história com contornos mórbidos. Kemper fala frequentemente da progenitora como um grande factor de destabilização emocional. Descreve-a como abusadora e alcoólica. Diz que muitos dos seus crimes foram prepertados na sequência de violências discussões com ela. Acabou por matá-la com um golpe de martelo. Degolou-a, decapitou-a e, com a cabeça, divertiu-se num sem número de actos desprezíveis. De seguida, entregou-se às autoridades. Acusado de oito assassinatos, o Big Ed admitiu culpa em todos e pediu que o condenassem à morte. Estando a pena de morte suspensa no estado da Califórnia em 1973, foi condenado a prisão prepétua em novembro.
As histórias dos seus crimes são tenebrosas e perturbadoras. Desde a sua detenção, o seu caso tem sido amplamente explorado, por psicanalistas, jornalistas, investigadores e curiosos. Kemper não se coibe: fala da sua onda de crimes como quem explica a um amigo como é que se faz uma omolete. Não transparece arrependimento nem vaidade, não carrega remorso nem orgulho. É uma deslumbrante crueza e indiferença, mas não se trata de um alheamento total das desprezíveis circunstâncias dos seus actos. Ele sabe que o que fez é mau, reconhece a sua perversão, está tranquilo e conformado com a sua vida enjaulado. É considerado um recluso exemplar: ajuda na burocracia, é talentoso na cerâmica e um ávido leitor. Tem, aliás, um respeitável emprego: providencia a sua voz para livros auditivos feitos para invisuais, tendo já feito vários milhares de horas de gravações de centenas de obras.
As suas entrevistas na prisão são deliciosas. Somos surpreendidos por uma natural simpatia. Figura de bibliotecário, bigode e óculos característicos da década de 70, Kemper é eloquente, educado, persuasivo e coerente. Um grande contador de histórias, é homilético e entretém. Damos por nós, horrorizados, a querer beber uma cerveja com tão vil criatura.
Para quem permanece com a opinião de que é inadmissível admirar uma personalidade moralmente tão distorcida, alerto que eu me limito apenas a fazer a transferência para a vida real de um fenómeno que desde sempre existe na nossa relação com a ficção. Há uma tendência, mais ou menos tabu, para preferirmos os heróis em criança e os vilões em adulto. A quebra da ilusão de que existe um mundo a preto e branco faz-nos encarar vilões como cinzentos escuros, e simpatizar frequentemente com eles, seja pela sua personalidade ou pelas suas motivações. É certo que no ecrã não há quem sofra realmente. Mas usar o caso da crueldade dos vilões fictícios para estudar a vida real tem uma vantagem: dá-nos uma percepção ainda maior do contraste entre a personalidade imaculada do herói e o perfil complexo e profundo do sociopata. Este perfil seduz-nos e eu, que me confesso leigo em sociologia, psicologia e antropologia, mas que sou amante da especulação intelectual, tentarei explicar porquê.

Para entender o encanto que temos pelos vilões, é preciso, antes de mais, procurar perceber porque é que o mal nos é tão atraente. Incluo-nos a todos, não apenas os fãs de Edmund Kemper.
A primeira teoria óbvia é a do fruto proibido. De facto, a tendência generalizada para não agir de acordo com o código moral em vigor é um acto de rebeldia perante a visão do humano perfeito. O bem é louvado, o mal é cobiçado. Damos palmadas nas costas às boas pessoas, mas invejamos algo muito conveniente nas más: a sua liberdade de escolha.
Os vilões têm o seu próprio código de conduta, e nós condenamos-os por isso, quando subsconscientemente admiramos mais essa independência. Somos James Deens por natureza. Não gostamos de regras e vivemos algemados por elas. Tens de estar em casa a horas, não toques nisso, o banco fecha às três, está vermelho, usa preservativo, não calques a relva, deixa sair antes de entrar, sopra ao balão, não te sentes na estátua, o fumo passivo mata, tens de tirar senha, tudo o que sabe bem faz mal. A capacidade de lidar com estas frustrações é directamente proporcional à empatia e consideração que temos por nós e pelos outros. Quando despimos o ser humano dessa consideração, descobrimos um sádico sociopata. A sociopatia não se caracteriza pela preferência por ficar em casa quando nos convidam para sair ou pelo charme de pôr imagens no facebook a dar a entender que odeio pessoas. Sociopatas não têm facebook. São anormalmente individualistas, socialmente impiedosos e moralmente vazios. E livres. Todos queremos ser livres.
Outra parte do apelo moderno do mal é a associação de bondade e virtude com coisas entediantes como ser abstémio, casto e crédulo. Mark Twain, em Letters from the Earth, fala da contradição entre esta promessa religiosa de felicidade eterna e o prazer provocado pelo pecado: "(...) the human being's heaven has been thought out and constructed upon an absolute definite plan (...) this plan is, that it shall contain, in labored detail, each and every imaginable thing that is repulsive to a man, and not a single thing he likes." Muito se fala da importância bíblica na consolidação do código moral ocidental. Ao misturar o conceito de prazer com o de pecado, esta visão reprime-nos e incrimina-nos sem critério. Enche-nos de culpas e responsabilidades por qualquer tipo de prazer. Olhe-se para os pecados capitais: todos eles são condições indissociáveis do ser humano, e à volta das quais o mundo moderno foi construído. Confunde-se luxúria com promiscuidade, ira com descontrolo, gula com sofreguidão, inveja com ódio, preguiça com inutilidade, avareza com egocentrismo, vaidade com arrogância. Isto cria uma salgalhada moral que deixa a nossa perspectiva do que é o verdadeiro mal um pouco turva. Quando experimentamos qualquer um dos sentimentos acima citados, somos apenas humanos com desejos e ambições, não incorrigíveis pecadores.
Falemos de gajas, que é consabido ficarem malucas com um bom vilão, ou um vilão bom. Percebe-se porquê: são aventureiros, confiantes, excitantes, badass e garantem a fuga ao tédio do quotidiano conjugal.
Num mundo sem equilibrio e forças nem karma justiceiro, o mal é frequentemente poder. É saber o que se quer e consegui-lo. Biologicamente, é fácil explicar a atracção das mulheres por homens poderosos. Esse poder não é necessariamente financeiro ou profissional. É estar ao volante da vida, é a capacidade de controlo. Este interessante estudo da Universidade de Liverpool reuniu mais de duas mil mulheres para confirmar esta propensão: "Women really are drawn to men with the dark, brooding looks that suggest they are mad, bad or dangerous to know (...). But it is not the love of danger that attracts them but a primitive desire to find a mate who appears mentally strong, confident and physically attractive in order to have healthier children. Such men have facial features that display the 'Dark Triad' of personality traits - machiavellianism, narcissism and psychopathy".

Estas considerações pseudo-científicas que aqui expus ajudam a explicar uma parte da atração. Ainda assim, existem motivos externos que exploram esse fascínio. Personagens fictícias, que na vida real seriam considerados párias tóxicos, pervertidos e impiedosos, são adolados como figuras de culto. Perante isto, podemos colocar a questão: foi a construção de personagens complexas e estimulantes para representar a maldade responsável pela nossa atracção; ou é a nossa predisposição para respeitar secretamente a pitoresca mentalidade de um sociopata que nos atrai?
Efectivamente, para estudar este fenómeno temos, antes de mais, de encarar o facto de que os vilões em filmes e séries têm personalidades moldadas para serem apelativas, charmosas e humanas.
Na ficção, sobretudo na moderna, os vilões são talentosos, perspicazes, maduros e engraçados. As motivações para os seus actos cruéis são frequentemente explicadas de forma a provocar uma reacção empática e compreensiva. Tony Soprano é mafioso, adúltero, corrupto e assassino, mas abre as feridas da sua alma a uma psiquiatra. Tyler Durden, de Fight Club, é um sacana lunático a quem temos de perdoar tudo. Moriarti, arqui-inimigo de Sherlock Holmes, tem com ele uma deliciosa relação de yin-yangDarth Vader é o pináculo do lado negro da Força e é de tal forma humanizado que é pai do protagonista. E até figuras nas quais não pensamos como vilões, como Dexter ou Dr. House, são na verdade pessoas com condutas morais no mínimo controversas. Mas são de tal forma prodigiosos, independentes, audazes e cativantes que não podemos senão admirar.
Alguns personagens que ficaram para a história do cinema de terror (estou em pensar em Ghostface dos filmes Scream, Leatherface de Texas Chainsaw Massacre, Michael Myers do Halloween ou Jason Voorhees de Friday the 13th) não entram nesta categoria. São figuras ocultas e esotéricas. Não nos revemos na humanidade do seu lado negro; são antes a personificação dos nossos medos, da nossa vulnerabilidade, da nossa cobardia. São perigosos e temidos, mas não admirados.
É preciso também referir que na televisão, além da construção da personagem na própria narrativa, há que valorizar sempre o trabalho do actor que consegue transmitir a sociopatia com trejeitos, inteligência e um transbordante carisma. Heath Ledger criou um Joker tão niilista e anarquista, quanto pragmático e brilhante. Anthony Hopkins foi um Hannibal Lector intimidante, mas arguto e clarividente; e Christian Bale criou, em American Psycho, um serial killer charmoso, mulherengo e metrossexual.
Esta elaboração intrincada do perfil sedutor do antiherói foi decisivo para associarmos o lado obscuro da moral com inteligência, bom gosto, compostura e sofisticação.  N'A Laranja Mecânica, Alex Delarge, enquanto era "curado" pela famosa maquineta que prende as pálpebras, está sobretudo preocupado por estarem a passar Beethoven durante a tortura; é obcecado pelo compositor, ouve diaramente as suas peças e não quer associar algo tão belo a tamanho sofrimento. Verbal Kint, em The Usual Suspects, tem esta tirada genial para explicar o seu low profile: "The greatest trick the devil ever pulled was convincing the world he didn't exist". Por falar em Kevin Spacey, é ele quem interpreta o antagonista de Seven, metódico e sombrio, e, já agora, também faz de Frankie Underwood em House of Cards, o verdadeiro vilão do século XXI: maquiavélico, burocrático, manipulador e ambicioso. John Kramer, o Jigsaw, é um engenheiro civil que constrói jogos sádicos altamente criativos. Stringer Bell, em The Wire, está a tirar um curso de economia e protagoniza fantásticas cenas em que aplica os conceitos económicos ao seu negócio de tráfico. E nunca poderia referir The Wire sem falar de Omar, um homossexual cheio de pinta que assalta traficantes e que com um simples assobio põe toda a gente da rua a fugir.
A demoníaca atracção por personagens perniciosos extrapola, no entanto, o requinte deste tipo de maldade. A crueldade pura e grotesca também nos seduz com o seu canto hediondo. Temos uma atracção visceral pelo horror: abrandamos quando passamos por um acidente e nada melhor para chamar a atenção do espectador do que avisar que as imagens que se seguem podem ferir a nossa susceptibilidade.
Ramsey Bolton, de Game of Thrones, encarna este nosso lado sombrio e reprimido. Destituído de excrúpulos e dúvidas, retira o mais libertino prazer do sofrimento alheio. Ramsey é apenas o personagem mais degenerado e malévolo, mas a enxurrada de orgias, tripas e sangue estende-se naturalmente a toda a história. Se provas faltassem de que o horror atrai, eis que a série mais popular da década tem decapitações, línguas arrancadas, sexo incestuoso, pénis decepados, patricídios na retrete, cabeças a explodir, atentados e crianças queimadas vivas. Dêem-nos disto e nós comemos como piranhas esfomeadas. Esta indesculpável atracção pelos piores dos crimes não se limita ao seu enquadramento num universo fantasioso, mágico e utópico: desafio alguém a desmentir que passou todas as temporadas de Prison Break a torcer pela sobrevivência de um pedófilo assassino.

Preferirmos o vilão não faz de nós piores pessoas. É apenas uma confrontação com, e natural fascínio por, personificações do lado negro que nos sussura tentatações e que fazemos de tudo para ocultar. Se a isto juntarmos o trabalho da ficção de maquilhar essa dimensão depravada da humanidade, associando-a a um conjunto de qualidades, é perfeitamente plausível uma maior indentificação de humanos imperfeitos como nós com o vilão indigno e incorrecto do que com o herói virtuoso e impoluto.
Se elaborei todo este trabalho académico de modo a justificar a minha admiração pela mente deturpada de Edmund Kemper? Provavelmente. Fui bem sucedido? Provavelmente não. Mas é reconfortante saber que não estou sozinho nisto.

1 comentário:

  1. A correlação entre o escriba e o conteúdo parece já ter sido descoberta por alguém antes. E quem conhece a minha obsessão por t-shirts não estranhará o meu comentário: https://www.spreadshirt.com/political+scientist+tshirt-A107768619

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