segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Dreamer

A figura de John Lennon está envolta num misticismo ímpar no moderno mundo artístico. Muitos outros músicos foram encarados como estando espiritualmente acima dos pífios mortais: Elvis Presley e os obsessivos mitos da sua sobrevivência são um exemplo incontornável. Mas nenhum se aproximou tanto do estatuto de Jesus Cristo do mundo moderno como o Beatle.

A figura física ajudou. As semelhanças com a imagem que os frescos renascentistas disseminaram como sendo do nazareno são impossíveis de ignorar. Está lá tudo: os longos cabelos castanhos, o olhar firme mas terno, o corpo delgado. Até arranjou uma mulher de outras terras para reforçar a já inevitável associação. Mas estas semelhanças nunca seriam suficientes para esta profana comparação se Lennon nunca tivesse composto aquela mensagem de paz, de forma cantada, e não pregada, mas não por isso menos popular. A Imagine, apesar de renegar a mensagem religiosa (ou pelo menos as consequências negativas que dela advêm), tem com o discurso cristão de harmonia e perdão denominadores comuns incontornáveis.

Outro factor indispensável à sua canonização foi o assassinato. Armado de um revólver na mão direita e de Salinger na esquerda, Mark David Chapman viu na raiva juvenil de Holden Caufield a inspiração para abater um ícone das raízes pacíficas da sua geração. Esta martirização foi exactamente o que faltava na consagração de Lennon como venerado semi-deus.

Mas a realidade é bem mais vil do que a nossa propensão para santificar ídolos nos permite conceber. John Lennon, que fez o mundo utopizar um primaveril mundo de concórdia, batia na mulher. Nas mulheres, para ser mais preciso. A sua primeira mulher Cynthia, mãe do seu filho Julian, e a sua musa Yoko Ono foram ambas vítimas de violência doméstica. E já que referimos o rebento, é pretinente acrescentar que, numa entrevista dada já após a morte do progenitor, este confessou que Paul McCartney sempre foi mais um pai para ele que o próprio Lennon. Não podemos condenar o petiz; além da brutalidade física que o ícone da paz reservava para as companheiras, brindava regularmente Julian com insultos frutos do ressentimento provocado pela sua concepção, que obrigara Lennon a assentar raízes numa altura da sua vida em que a rotina de casado não se enquadrava no seu documentado narcisismo.

Outras contradições valem a pena serem referidas. A opulência financeira, que publicamente condenava, era contrariada pela vida de milionário que ostentava (um pouco ao estilo Floribella, portanto). Repudiava religião, mas era um homem altamente espiritual. Fazia meditação, mas só atingia a paz de espírito abusando fisica e psicologicamente da sua família.

Não é meu intento, ao partilhar estes factos, denegrir de forma gratuita a figura de Lennon. Admiro de resto, inevitavelmente, o artista. Além de inspirado compositor, tem um timbre de voz que parece reflectir a extravagância e multiplicidade do seu carácter: tanto nos encantou com a brandura de Across the Universe como com a deliciosa aspereza de Yer Blues, passando pelo tom mecânico da psicadélica I am the Walrus e a voz descontraída e compassada em Come Together.

Quero, ao partilhar estes sórdidos pormenores da vida pessoal de Lennon, exemplificar que é perigoso desumanizar os ídolos. Já nem quero referir as eventuais consequências de conceptualizarmos a existência de seres humanos perfeitos, e do que isso faz ao frágil ego de uma população consciente dos seus pecados. Apenas me insurjo contra a injustiça em si.

Lennon é colocado lado a lado com Malcolm X, Mandela, Ghandi ou Martin Luther King como personalidades que lutaram com as suas armas contra a desigualdade, a guerra e a discórdia. John Lennon merece figurar nos anais da história como um dos músicos mais inovadores e influentes do século XX. Mas nunca como um candidato póstumo a Nobel da Paz. Exceptuando, talvez, no lugar de Obama em 2009. Verdade seja dita: Lennon surrava nas companheiras, mas nunca bombardeou um país.

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