sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Se Isto é um Homem

Caso um leitor tropece involuntariamente no livro "Se Isto é um Homem", de Primo Levi, um tratado pessoal e memorial acerca do período experimentado em Auschwitz, campo de concentração alemão durante a II Guerra Mundial, e não saiba de ante-mão o assunto do livro, o químico e autor italiano faz na primeira frase, com inusitada crueza e íntima intenção, uma asserção que inquieta pelo seu simplismo e factualidade. Dedica parcimoniosas palavras perante o acontecimento que iria alterar irrevogavelmente a sua vida e, assim, a sua leitura acerca da natureza humana,: "Fui capturado pela Milícia fascista a 13 de Dezembro de 1943."


Ainda antes, a obra principia com um pequeno poema introdutório, deliberadamente provocatório, em que Primo Levi lança o repto aos que "vivem tranquilos" para considerarem se as vidas que irá prontamente apresentar, onde se perdiam os nomes e recebia-se um número, poderão ser consideradas como tal; e condena da mesma forma tanto aqueles que lhe fiquem insensíveis, como os que não propalem a sua história, que não foi menos que a de vários milhões, destituídos e isolados da humanidade - e na maior parte subtraídos. É quem mais tem dificuldade na sua recordação que mais faz questão que este nunca seja, nem assim o pode, um delírio encerrado no esquecimento colectivo.

O autor italiano discorre sobre aquilo que sabe ser, e várias vezes o refere, inenarrável para o comum mortal: a transfiguração de um homem para um "animal cansado". Dispõe-se, ainda assim, porque é a única maneira de estreitar a relação entre quem conhece - se é que esta palavra neste caso é permitida - e quem viveu,  a relatar com insuperável objectividade, que pontilha e intercala com reflexões, acontecimentos cuja emotividade é abstractamente irrepresentável, num auto-caracterizado exercício de "libertação interior".

Que ninguém parta para a obra com ilusões, ela não poderia ser mais esmagadora perante a essência humana. Primo Levi, praticamente ao jeito de crónicas capituladas, identifica e desmonta a organização logística e social do "Lager", onde os SS tinham até um papel bastante reservado. Demonstra, igualmente, de que forma um ser-humano pode ser privado da sua própria alma através da supressão da sua liberdade e dignidade, num local onde "o homem está só e a luta pela vida se reduz ao seu mecanismo primordial". Como a moralidade impetuosamente se transformaria somente numa palavra, a história interminavelmente pararia e a esperança assentaria no supremo desafio para os mais românticos, atendendo a que sonhar configurava-se uma ousadia desaconselhável: "Não se deve sonhar: o momento da consciência que acompanha o acordar é o sofrimento mais intenso". De resto, a caracterização dicotómica com que acabaria por percepcionar o trabalho traduz perfeitamente a convulsa condição de vida com que um Haftlinger - assim eram denominados - se deparava , uma vez que este era a fonte inesgotável do cansaço, que vergastaria em todas as dimensões qualquer um, embora, sincronicamente, uma distracção importante para suportar o dia-a-dia. Nada mais restava a um homem que a luta, por si só, para não deixar de o ser.

Nesta sua primeira e grande obra, Primo Levi atinge um discurso bastante lúcido, nunca moldado por sentimentos menores. Chega, no entanto, a ser perturbadora a moderação e precisão analítica que consegue imprimir às suas palavras face aos horrores que há tão pouco tempo tinha experimentado. O livro nada mais pretende ser que o retrato de uma história de sobrevivência humana num pântano impestado de desumanidade. Não que a obra se torne obrigatória para delimitar o mal que é aqui, afinal, facilmente e por demais reconhecível; mas para tomar consciência que a perversão incontrolada do Homem poderá não ter limites.

(A "crítica" foi escrita para efeito de um jornal académico. Dado que o tempo disponível actualmente é diminuto, e para não protelar a minha contribuição, fica a partilha e, acima de tudo, a sugestão)

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