quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A Tradição Humorística da Revolta Portuguesa

Para melhor ou para pior, se uma peça artística sobrevive ao julgamento implacável do tempo, isso é um sinal da sua qualidade. Quando, há mais de 137 anos, Rafael Bordalo Pinheiro criou a primeira ilustração do Zé Povinho, ele não tinha a menor ideia daquilo que tinha acabado de fazer. O autor tinha criado uma figura mítica que era imaculada na sua representatividade do espírito reivindicativo do povo português.

A simpática ilustração atravessou quatro regimes políticos diferentes da nossa história (cinco, se contarmos a actual “ditadura germânica dos mercados” que o Mário Soares jura existir), ao mesmo tempo que a relação dos portugueses com o poder não mudou significativamente ao longo das várias transições atribuladas. Ainda estamos aqui e, se aquilo que a caracterização da figura sugere é verdade, somos pobres e iletrados, banais e diminutivos, acomodados e inofensivos, apenas carne para canhão, cidadãos de segunda, esmagados pelo peso avassalador da corrupção, incapazes de fazer frente ao poder que nos arruína, ineptos para compor uma resposta que consista em mais do que um patife manguito.

A caricatura nacional é um piscar de olhos malandro para o nosso lado revoltoso e para a incapacidade crónica dos portugueses em levar a realidade a sério. Nem mesmo o seu próprio declínio merece a atenção lusitana. É uma incapacidade que surge quando a necessidade de comiseração é maior do que o medo das privações da miséria. Aquilo que o Zé Povinho nos conta é que os portugueses protestam e reclamam, mas não sabem o motivo do protesto e da reclamação. Aquilo que eles querem é alguém que sinta pena deles e que admita que, afinal, eles têm razão.

Quando não existem motivos verdadeiros para chorar, o riso é o instinto mais próximo. Isso se reflecte quando ouvimos as descrições que os portugueses nos oferecem sobre a crise. Ninguém enuncia problemas concretos da conduta governativa, ou as razões dos protestos através de algumas frases declarativas simples, com sujeito, predicado e complemento directo. Aquilo que se obtém, tendo em conta a amostra televisiva, radiofónica, impressa e real dos revoltados, são respostas rebuscadas, sem qualquer base factual, com tiques de teoria da conspiração, vitimização e extremismo socialista.

Os cartazes de protesto são outro sintoma da doença de que sofre o Zé Povinho. Os portugueses ainda utilizam, de forma generalizada, essa forma de humor sofisticado que são os trocadilhos. Dispensam a argumentação. Se rima, é suficiente. O resto são piadas óbvias e vulgares que são um desserviço ao país e um insulto à inteligência. É mais importante para os portugueses ridicularizar a situação com recurso a mentiras infantis do que ter um debate adulto.

Toda esta tradição de escárnio protestativo tem consequências. A gritaria distorce a realidade e retira o microfone da minoria que realmente sofre, das pessoas para quem a miséria é uma possibilidade real. No final, o microfone fica junto da boca daqueles que apenas sofrem por atenção. O protagonismo é reservado para as prostitutas mediáticas que valorizam a polémica, bombástico e o egocêntrico.

A narrativa que muitos portugueses querem desesperadamente fazer passar é a de que, sem os subsídios, o seu Natal será passado em casa, quase às escuras, com apenas a luz trémula de uma vela humilde no meio da mesa, enquanto a família partilha a última de lata de feijão. As crianças cantam hinos religiosos na outra sala, enrolados em jornais para combater o frio, depois de não conseguirem comprar um casaco de Inverno, devido aos cortes cegos avassaladores da política neoliberal de Passos Coelho, que não é nada mais do que um fantoche da Angela Merkel, a sobrinha-neta perdida do Hitler.

Assim como charutos e caviar, a verdade é sobrevalorizada. A sua posição central nos ditames da existência humana é inegável, mas a ubiquidade aparente da verdade é apenas uma ilusão. Por mais que se proclame a verdade como sendo um sustentáculo social, esta tanto é louvada como é flagrantemente ignorada. Os portugueses têm todo direito de se revoltarem perante o estado catastrófico do país. Mas a forma como desconsideram sistematicamente a verdade na hora de protestar é alarmante. Nessas ocasiões, a verdade é apenas um empecilho e não é difícil observá-la sendo estilhaçada, e o seu cadáver abandonado alegremente na berma da estrada.

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