segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Hipocristiania


Não há a mínima dúvida de que o Papa Francisco parece ser uma excelente pessoa. Bondoso, caridoso, tolerante. Daí ser difícil não nos questionarmos acerca da contradição entre essa cativante personalidade e a imoralidade do livro, instituição e ideias que este senhor representa.

Os movimentos anti-discriminatórios que defendem a maioria muçulmana, que é pacífica e que se trata da principal vítima da radicalização, são importantes para combater os racismos mais ignorantes. Mas não podemos excluir a religião do debate geo-político em que todos estamos envolvidos. Hei-de discorrer ainda muito sobre as várias dimensões deste conflito global. Hoje, queria apenas tocar ao de leve num ponto importante neste confronto que é também religioso: o Islamismo não é dogmaticamente mais perigoso que o Cristianismo ou o Judaísmo. Tudo o que os distingue é moralidade resultante do desenvolvimento civilizacional em que estão inseridos.

Como crítico de longa data de qualquer crença mítica, deparo-me com frequência com o argumento da moralidade dos escritos e da sua importância para que as pessoas, hoje em dia, tenham compaixão umas pelas outras. Há poucos argumentos tão falaciosos como o da importância da Bíblia na construção da moralidade humana ocidental. Durante séculos, vivemos numa sociedade dominada pelos valores bíblicos, e isso mais não trouxe do que discriminação, preconceito, rejeição científica, conflitos bélicos, genocídios e autoridade moral ilegítima. Os grandes avanços civilizacionais foram obtidos precisamente quando a autoridade dos escritos foi questionada, quando o estado começou a secularizar-se, quando a realidade passou a importar mais que os mitos, quando o sofrimento humano se sobrepôs á palavra de Deus. O argumento da moralidade bíblica devia ser encarado como uma piada de mau gosto, um escandaloso fechar de olhos a séculos de imoralidade que provém precisamente das escrituras.

Olhemos para o que a Bíblia judaica-cristã tem a dizer sobre a posição social da mulher:

 - O homem não foi criado para a mulher, mas a mulher para o homem. (Coríntios, 11:9)
 -  Se uma jovem é dada por esposa a um homem e este descobre que ela não é virgem, então será levada para a entrada da casa de seu pai e a apedrejarão até a morte. (Deuterónimo 22:20-21)
 - Foi pela mulher que começou o pecado, e é por culpa dela que todos morremos. (Eclesiástico 25: 24)
 - É melhor a maldade do homem do que a bondade da mulher: a mulher cobre de vergonha e chega a expor ao insulto. (Eclesiástico, 42: 14)
 - As mulheres tem de ser submissas aos vossos maridos (Pedro 3:1)

Estas nojentas normais morais não são passagens do livro sagrado dos terríveis muçulmanos terroristas; são transcrições da palavra do Deus que o Papa Francisco segue, que muitos de vocês seguem, que os nossos avós veneram. Tudo isto está escrito e é considerado pela Igreja Católica como a inatacável palavra do Senhor. Como é que alguém pode considerar este livro a grande origem moral da sociedade moderna? Como pode o papa chamar blasfémia ao acto de cometer atrocidades em nome de Deus e, simultaneamente, ser o grande representante na terra de um Deus que, a acreditar nas escrituras como ele acredita, impôs ele próprio as mais vis atrocidades e ataques aos direitos universais?

A sociedade ocidental não é mais avançada e pacífica por a nossa religião ser moralmente superior. O que a maioria dos cristãos faz é separar aquilo que os escritos divinos têm de ensinamentos positivos e priorizá-los, ignorando pornograficamente os actos grotescos cometidos pelo Deus que deviam amar, mas que na realidade temem. O que está na origem dessa separação entre as partes boas e as partes más da Bíblia é precisamente uma moral secular, intelectual, filosófica, uma bondade que faz os cristãos olhar para a palavra de Deus e, mesmo admitindo a sua origem e infalibilidade divina, optam ainda assim por descartá-la como lixo. Esta é a prova definitiva de que a moralidade humana não provém da religião. É, isso sim, bem mais forte do que ela.

Isso não é só visível nas sociedades de tradição judaica-cristã. Pelo contrário, este ponto é ainda mais forte quando olhamos a sociedades maioritariamente muçulmanas que não vivem de acordo com os radicalismos que associamos a esta crença.

Os cristãos, judeus e muçulmanos que vivem em países desenvolvidos no século XXI pegam nas palavras bíblicas como inspiração moral e filosófica, não como normas inatacáveis de atuação. Deus não lhes ensinou que passagens da Bíblia estão incorrectas. Deus não desceu novamente à terra em forma de arbusto para nos dizer "pessoal, só uma coisinha, afinal enganei-me naquela história das mulheres serem inferiores, elas são afinal iguais aos homens". Foram, isso sim, séculos de desenvolvimento científico, filosófico e humano que nos levaram a um ponto de iluminação em que a bondade, a tolerância e a igualdade são mais importantes do que a palavra divina. A nossa bússola moral é a nossa consciência, não o livro.

Por isso, Sr Francisco, deite-o fora. Se é a pessoa boa que parece ser, rasgue a Bíblia toda e deixe de representar um livro que vai totalmente contra a sua posição do mundo. Dispa-se desse fardo. Porque as palavras que proferiu vieram da sua consciência moral, não da palavra do Senhor, muito menos da história de actuação e pensamento da instituição que chefia. A sua moral, como a minha, provém do respeito mútuo, da compaixão humana e da nossa própria reflexão intelectual e emocional. Não sei quanto a si, mas o facto da raça humana ser capaz desse processo filosófico e comportamental dá à minha vida bem mais sentido do que ser obediente a uma mitologia ancestral.

1 comentário:

  1. Alguém ainda acreditar que a Bíblia, e apenas a Bíblia, é que está na génese do Estado Moderno e na base da cultura do mundo ocidental é igualmente grave.

    Tem de rever as suas leituras para não ter uma visão tão afunilada da questão.

    A.

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