domingo, 14 de junho de 2015

Os meus pêsames

Nunca me senti tão insignificante como na primeira ocasião em que me encontrei com a morte, durante o ensino secundário. Ainda não tinha dezoito anos, mas o meu melhor amigo desde a infância apareceu na entrada da escola com os olhos vermelhiços, com um jornal amachucado nas mãos, aberto na página dos obituários, entre os anúncios de prostitutas e os curandeiros místicos africanos que juravam deter o segredo de curas para todos os males da humanidade - mau-olhado, inveja, desemprego, drogas, álcool, amor e impotência.

- O que aconteceu?

O jornal veio parar às minhas mãos e reconheci numa das fotografias sorridentes de bilhete de identidade o primo do meu amigo. Numa tipografia gótica e discreta, a família desejava que Deus o tivesse e anunciava que o velório seria dali a três dias. Não era referida a causa de morte, nem tive eu o ímpeto de ceder à curiosidade mórbida e perguntar:

- Como morreu?

Enquanto procurava palavras reconfortantes, o meu amigo agarrou-se a mim num abraço violento, as suas unhas arrastavam-se pelo poliéster do meu casaco de inverno como se este fosse um quadro negro, produzindo um som insuportável que dava voz à agonia que naquele momento nenhum dos dois conseguiria descrever.

- Estás bem?

A pergunta saiu da minha boca antes de eu ter compreendido a sua inutilidade. Não era aquela a hora para a boa educação e para os bons costumes que me tinham sido impingidos pela família nas dezenas de funerais de desconhecidos nos quais eu tinha marcado presença. O meu amigo não me respondeu, continuava irracional, agarrado a mim, numa crise de histeria que contrastava com o estoicismo que eu tinha encontrado frequentemente nos outros.

- Queres alguma coisa?

A ausência de preparação para aquela situação levava-me a uma incerteza tão ampla que eu queria oferecer ao meu amigo o mundo. Queria dar-lhe o colmatar de uma necessidade - sede, fome ou sono – mas nada parecia ser capaz de retirar o afligido do seu transe. Eu ofereceria qualquer coisa, a minha própria vida, até, qualquer coisa para conseguir sair daquele abraço, qualquer coisa para que o meu amigo parasse de sujar o meu casaco com as suas lágrimas, qualquer coisa para conseguir voltar aos tempos em que ninguém dependia de mim para exorcizar a sua dor. Os meus pensamentos teimavam em tirar-me daquela experiência real e dolorosa.

Aquilo era a vida a acontecer – na sua manifestação mais dramática – e eu estava absorto no meu egocentrismo, alheio ao sofrimento do meu amigo mais próximo. No final das aulas, quando a minha mãe veio buscar-me, sentia-me enganado e ressentido. Odiei-a naquele momento, a sua incompetência parental, a sua fraqueza, não consegui acreditar como é que ela tinha deixado aquilo acontecer, como é que, com todos os recursos da humanidade, eu, um rapaz de dezassete anos, tinha sido incumbido com a tarefa de amortecer o impacto da morte, como é que, depois de todos aqueles anos de vida, tinham-me deixado tão despreparado para lidar com o evento mais natural do mundo.

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