domingo, 19 de abril de 2015

Sobre a banalidade dos homens - II


“This is the day upon which we are reminded of what we are on the other three hundred and sixty-four.” - Mark Twain, sobre o primeiro de Abril

Rodrigo de Borja, conhecido profissionalmente como Papa Alexandre VI, teve um pontificado de onze anos, entre 1492 e 1503. Subornou cardeais para garantir a sua eleição. Atribuiu cargos importantes a membros da sua família e a membros da família da sua amante, Vanozza Catonei, com quem teve quatro filhos. Organizou os três casamentos da sua filha Lucrécia de acordo com necessidades políticas. Vendeu indulgências como se fossem commodities em mercados internacionais. Os rumores que circulam à volta do seu mito incluem palavras como incesto, homicídio, envenenamento e orgia.

Quando Jorge Bergoglio se transformou no Papa Francisco, ele decidiu morar na casa de hóspedes do Vaticano, rejeitando o luxo do tradicional apartamento papal. Lavou os pés a doze detidos de prisões romanas. Abdicou dos tradicionais ornamentos dourados que embelezavam decadentemente a figura papal. Trocou o trono extravagante do Bispo de Roma por uma cadeira respeitável. Substituiu os tradicionais sapatos vermelhos de couro por um par de sapatos banais. O seu ascetismo foi aplaudido. Até alguns ateus de serviço se juntaram à salva. Outras pessoas, no entanto, criticaram a santíssima decisão, assim como a torrente ingénua de elogios que se seguiu.

Afirmaram que não era suficiente - o Papa não tinha montado uma tenda humilde na Praça de São Pedro. Os museus do Vaticano estão cheios de tesouros avaliados em milhares de milhões de euros enquanto nações inteiras passam fome. A instituição católica continua tingida por uma opacidade tenebrosa que oculta escândalos chocantes. É natural que existam discordâncias, mesmo nas coisas mais simples. Afinal, unanimidades absolutas só no Comité Central do PCP. Mas uma pergunta impõe-se: o que é que podemos concluir sobre a natureza humana quando mesmo actos deste género são criticados?

Nada de mais, para ser sincero. É perigoso extrair conclusões abrangentes de pedaços avulsos de informação. Mas aceitando esse perigo, poder-se-ia arriscar e concluir que um certo cinismo irónico venceu, instalando-se como o tom preponderante do nosso discurso cultural.

É um mundo onde as nossas almas se retraem com náuseas cada vez que se fala de honra e moral e certo e errado, como se essas questões fossem simples e o debate já estivesse resolvido. Assume-se que nascemos livres e puros, que a bondade é intrínseca no coração humano, e que a única coisa que resta é a busca da felicidade e a procura pelo prazer. Aqueles que ousam pregar do púlpito, mesmo do púlpito secular, são ostracizados pelo relativismo céptico de quem se julga o detentor inquestionável da sabedoria.

É certo que o Papa não realizou nenhum acto extraordinário na sua decisão de recusar a mansão papal. O mundo não mudou porque ele decidiu rejeitar a ostentação que tradicionalmente cobria o sucessor de São Pedro. Mas esta questão tem implicações mais graves e mais subtis.

Esqueça-se o Papa Francisco e considere-se o Jorge Bergoglio. É um homem. Come e dorme. Olha-se ao espelho. Arrota. Bate com o dedo mindinho nos móveis. Usa papel higiénico. Tem erecções. Ele provavelmente até acorda da mesma forma que nós. Abre os olhos, mas não quer sair da cama. Fecha os olhos, e cede àquele impulso misantropo de pequena duração que nos faz duvidar do valor da existência fora do conforto enrodilhado de cobertores quentes. Depois, num gesto corajoso, masoquista e banal, arranca as cobertas, pousa os pés no chão frio de madeira envernizada e luta para manter os olhos abertos.

Esta pequena batalha – acordar – é partilhada por todos. É superficialmente insignificante. Mas quantos de nós, se estivéssemos na posição do Papa, teríamos abdicado do que ele abdicou? Acordar pode ser uma batalha pequena, mas é uma batalha que seria ganha com maior facilidade no conforto do apartamento papal. Qualquer um de nós, uma grande maioria, provavelmente, teria muita dificuldade em recusar todos aqueles símbolos de poder. Mesmo sendo o representante máximo de uma religião que prega a humildade, aproveitaríamos a oportunidade suprema de sermos algo próximo de mestres do universo, alguém que vive num palácio, veste-se de seda, adorna-se com ouro e influencia o mundo com apenas meia dúzia de palavras. E sejamos honestos. Um homem que é voluntariamente abstinente precisa de todos os outros prazeres que a humanidade tem para oferecer. Ao retirar-se o sexo da equação, o mínimo que podem fazer pelo homem é cobri-lo com ouro e oferecer-lhe um palácio onde se serve lagosta todos os dias.

Os tempos são outros. O mundo de hoje nunca toleraria a devassidão que reis e papas desfrutaram no passado. Mas criticar o Papa Francisco desta forma não é um exercício de cepticismo saudável. Não há nenhuma grande hipocrisia escondida no papado. A hipocrisia é criticar este Papa por fazer coisas que poucos fariam. Não que ele seja assim tão exemplar, ou assim tão bom e puro, mas, nós, na esmagadora maioria, não somos nem exemplares, nem bons, nem puros. O problema aqui não é reconhecermos a superioridade moral do Papa. É não reconhecermos que, na maioria dos casos, o nosso pontificado estaria mais próximo de Alexandre VI do que de Francisco. E certamente que não teríamos lavado os pés de ninguém. Nem sequer os nossos.

Sem comentários:

Enviar um comentário