sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Águas Passadas


"A maioria dos homens persegue o prazer com tanta impetuosidade que passa por ele sem vê-lo." - Soren Kierkegaard

Quão difícil era a vida. O silêncio imposto por fantasmas. A inexistência de cuidados médicos. A ameaça distante, mas presente, da fome. A frieza humana que era um pré-requisito para viver. Era a ditadura - esse horror tão básico e tão comum que é incompreensível para as almas da minha geração privilegiada. A minha mãe jura que o meu avô já foi um homem soturno e agressivo, e eu, confrontado com a amabilidade desarmante que o define nos dias de hoje, tenho dificuldades em acreditar, mas enquanto caminho sozinho pela casa vazia dos meus avós maternos, vejo os sinais desse passado.

As portas grossas, pesadas e ruidosas da casa possuem três fechaduras e duas travas de ferro. As fechaduras comportam chaves maiores do que as minhas mãos. O movimento rotativo das chaves abana toda a estrutura da porta à medida que o intrincado mecanismo de linguetas encerra a casa com o resguardo preventivo de um castelo medieval à espera das tochas e dos engaços de uma multidão enlouquecida. Na antiga sala de estar os sinais multiplicam-se. Nas fotografias a preto-e-branco de familiares mortos – de tuberculose, de desgosto, em acidentes de trabalho, de cirrose, na guerra, por motivos desconhecidos – não se observa um sorriso. A base metálica do ferro de engomar era aquecida por brasas cuja incandescência deixaram cicatrizes na ponta dos dedos da minha mãe. A lamparina a azeite que era a única fonte de luz numa casa onde viviam seis pessoas. Um pequeno armário expõe com frieza museológica os pertences íntimos do meu bisavô – um relógio de bolso (que ainda funciona), um garrafinha minúscula com água-de-colónia (que ainda perfuma) um canivete enferrujado (que não abre) e um par de óculos (com apenas uma lente).

Ando pelo corredor escuro que percorre a sala, a cozinha e os quartos. Toda a casa acumula em colecções dispersas os objectos dessa vida agreste: atiçador de brasas, canetas de tinta permanente, cartões-postal das colónias, gravuras religiosas e souvenires daqueles que fugiam para a França. Sou obrigado a desviar a minha cabeça para não magoar as pequenas andorinhas brancas de porcelana suspensas no ar. No final da tarde, sem os óculos, olho para elas, para o seu movimento delicado que dança em ciranda com o vento e com as cortinas, e imagino-as vivas, a voar em órbitas singelas. Entro nos quartos, agora vazios, e vejo as camas que ainda hoje são arrumadas com lençóis limpos todas as semanas. Sou obrigado a baixar novamente a cabeça. As molduras das portas são baixas, como eram as pessoas que ali dormiam.

Agora, no presente, olho à minha volta, para as caras que povoam a mesa da sala de jantar na casa de uma amiga. Conversa-se, pela quarta ou pela vigésima vez, sobre os méritos e os deméritos do novo iPhone. Sei o que quero dizer: não vejo nenhum melhoramento significativo entre o Nokia 3310 de 2002 e o iPhone 6 de 2014. Ambos são usados exactamente com o mesmo fim – comunicar através de palavras (e para assegurar as mães de que continuamos vivos e bem alimentados). O mundo não mudou entre um teclado com botões e um ecrã táctil. Mas nada faço; calo-me e ouço.

A experiência passada ensinou-me que estas intervenções são mal recebidas (até mesmo agora, relendo aquelas palavras, reprovo a minha pretensiosidade nostálgica), mas não consigo evitar que elas surjam na minha cabeça. Eu sou o que sou e não há nada a fazer. Não consigo evitá-lo - odiar aquela conversa, odiar os móveis da IKEA onde nos sentamos, odiar o apresentador eufórico que promete dinheiro na televisão ligada (para fazer ruído de fundo, não é?) durante o jantar. Não consigo evitar tudo isto e não consigo deixar de me interrogar: a vida do passado era difícil e por vezes cruel, mas pelo menos não duvidavam se aquilo que chamamos de cultura e inovação não são apenas fogos-de-artifício que explodem para nos distrair enquanto mãos nos separam de tudo que faz de nós humanos. E o pior vem depois. O pior é pensar - ao deparar-me com a última ronda de publicação de fotos privadas de celebridades - que estamos a abandonar, muito entusiasmados, o maravilhoso primitivismo animal, para abraçarmos, como uma turba alucinada, os enfeites brilhantes da masturbação digital.

Sei que a defesa do passado é uma causa perdida. A nostalgia não passa de uma ilusão delicodoce. Sei que não possuo argumentos fortes. O uso básico da razão é suficiente para retirar a todas as palavras que escrevi a massa que as sustenta. Este é um caso emotivo. Eu penso o que penso, sinto o que sinto e sou o que sou. A razão diz-me que caminhamos em direcção a um ideal incerto de progresso e que, como tudo, este tem benefícios e malefícios. Mas não consigo deixar de sentir que estamos a caminhar de mãos dadas em direcção a um precipício. Com medo das emoções, contentamo-nos com o alívio proporcionado por sensações fugazes. Aterrorizados pelas possibilidades do silêncio, aceitamos um entorpecimento gratuito. O mundo já não gira: ele pisca, vibra e recebe wi-fi. Mas a verdade continua a mesma: hoje, como há dez mil anos, quando abandonamos o significado, a razão engole tudo. Os antigos sofriam e não sorriam nas fotos, mas pelo menos, durante o jantar, não tinham que testemunhar isto: os sorrisos ensaiados das caras obcecadas em gravar obsessivamente o quotidiano em fotos e vídeos. Desprezamos o passado. Idolatramos o futuro. O presente desaparece, perdido algures entre os terabytes dos discos rígidos, pens e clouds.

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