terça-feira, 30 de setembro de 2014

A Retórica Bovina da Palha


“(Os governantes) são todos uns ignorantes e idiotas” – Mário Soares

É uma paisagem típica do Verão alentejano. Os arbustos secos sobre o solo árido. As planícies ocupadas por campos de milho. As casas isoladas no cimo dos montes. Os batalhões de sobreiros e os pelotões de oliveiras. Mas eles não estão sozinhos. Ela também está lá. A palha. Empilhada no reboque que é puxado por um tractor vagaroso. Atirada ao ar por crianças e espalhada pelo vento. Enrolada em fardos redondos e paralelepipédicos. Mastigada pelas bocas ruminantes do gado feliz. É exactamente ali que ela deve estar. É ali que ela pertence.

Abra-se um jornal, leia-se uma revista e veja-se um programa televisivo. Observe-se o parlamento, os noticiários, os fóruns de opinião e os debates políticos. Depois de estarmos devidamente apetrechados com um fato de protecção química e um tubo de oxigénio, leia-se as caixas de comentários. Não sei como é que ela chegou ali, mas sei que ela – a palha – migrou do seu tradicional posto agrícola para as bocas dos nossos agentes culturais, sociais e políticos, onde se instalou sem quaisquer intenções de sair no futuro. Brevemente, se nada se fizer, passará a dispor de estatuto de dialecto oficial.

Essa palha, depois de navegar pelo sistema digestivo da humanidade, passando pelo intestino grosso da cidadania e pelo recto da consciência social, origina o produto final da retórica humana – uma mistela podre, malcheirosa e desprovida de nutrientes. Uma espécie de epidemia assolou esta nação e causou uma regressão evolutiva que nos relegou para criaturas que comunicam através de chavões, grunhos e clichés.

Generaliza-se impunemente sobre os desejos íntimos das “pessoas”. Fazem-se interpretações míticas sobre o “futuro da nação”. Propõe-se, com uma seriedade cómica de académico a apresentar o resultado de décadas de investigação, que a solução está na “estratégia”. Decreta-se que aquilo que é necessário é “esperança”. Promete-se “mudança” pela bilionésima vez e, nós, como esposas submissas que atribuem as nódoas negras causadas pelos punhos do marido aos degraus das escadas, aceitamos tudo. Depois, numa bipolaridade promíscua, recebemos estas palavras vazias como declarações eternas de amor, e acreditamos cegamente quando nos dizem que a culpa não é nossa, que a culpa é “deles”, dos outros, dos maus, “daqueles que nos governam”, dos “mercados”, da “austeridade”.

Aceitamos a retórica e contentamo-nos com o alívio das piadinhas de costume. Os trocadilhos são produzidos com a eficiência monstruosa de uma fábrica chinesa. Qualquer coisa serve - utiliza-se a palavra “irrevogável” como arma de arremesso, chama-se isto de “piegas” e aquilo de “neoliberal”, reduzem-se os “submarinos” a argumentos desesperados e, quando tudo falha, pronuncia-se a sigla mágica – “PPP” – que garante a vitória em qualquer discussão, e permite que o arguente se deleite enquanto a união soprada do lábio inferior e superior produz a repetição triunfante do som da letra “p”.

No “Prós e Contras” observam-se debates que transformam as conversas bêbadas e inflamadas no tasco duvidoso da esquina na apologia de Sócrates. Os dois candidatos à liderança do único partido da oposição afirmaram, numa corrida entre uma tartaruga e uma tartaruga coxa, perante os olhos incrédulos de metade do país (aqueles que não tinham entrado em coma), que a solução para crise é o crescimento económico e que a solução para criar crescimento económico é fazer com que a economia cresça. Este fenómeno acontece repetidamente, e em nenhuma ocasião ocorreu aos jornalistas presentes nas proximidades questionar este exercício carnavalesco de lógica da batata. Expressões como “reindustrialização”, “qualificação”, "cadeias de valor" e “aumento de riqueza” são pronunciadas, e os cavaleiros da verdade, os paladinos da democracia, os guerreiros da cidadania dão-se por satisfeitos, crentes que, graças aos seus esforços altruístas, a liberdade abrilesca do povo continuará protegida dos abusos do poder corrupto.

No fundo do buraco, o cenário é ainda mais deprimente. Nas entrevistas conduzidas depois das partidas de futebol, os jogadores falam. Foi um jogo difícil, fomos prejudicados pela arbitragem, entramos bem na segunda parte, entramos mal na primeira parte, soubemos sofrer, merecíamos a vitória, lutamos pelo empate, o resultado é justo, o resultado é exagerado, o segundo cartão amarelo era desnecessário, foi penálti, não era fora-de-jogo, temos que trabalhar, o importante é a equipa, já estamos a pensar no próximo jogo, graças a Deus, graças ao apoio dos adeptos, é assim o futebol, às vezes perdemos, às vezes ganhamos, boa noite. O problema não está na repetição semanal das declarações nas quais jogadores de futebol vomitam a mesma massa amorfa de betão discursivo. O problema é que os canais de televisão insistem em realizar estas entrevistas e os espectadores insistem em assisti-las.

Não nego. O choque inicial é fútil e interesseiro: estas pessoas recebem mesmo dinheiro por isto? Mas depois, como alguém que prestou atenção às aulas de Formação Cívica, o choque transforma-se em genuína preocupação social. Enquanto o Putin continuar em Donetsk e o vírus da Ébola continuar no sovaco africano, é aqui que reside o núcleo da “crise de valores” da civilização ocidental (da qual fazemos parte, aos Domingos e feriados). Na evocação de banalidades. Na celebração do irrelevante. Na dramatização do inevitável. Na constatação do óbvio. Na institucionalização da linguagem. Na cauterização do significado. Na evisceração da complexidade. Na espiritualização do politicamente correcto. Estes fenómenos não são novos, mas agora, graças à difusão sifilítica nos “meios de comunicação” e nas “redes sociais”, o seu impacto é exponencialmente maior. Mas não nos preocupemos em demasia. Não pensemos. Afinal de contas, hoje em dia, quem é que tem tempo para tal coisa?

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Águas Passadas


"A maioria dos homens persegue o prazer com tanta impetuosidade que passa por ele sem vê-lo." - Soren Kierkegaard

Quão difícil era a vida. O silêncio imposto por fantasmas. A inexistência de cuidados médicos. A ameaça distante, mas presente, da fome. A frieza humana que era um pré-requisito para viver. Era a ditadura - esse horror tão básico e tão comum que é incompreensível para as almas da minha geração privilegiada. A minha mãe jura que o meu avô já foi um homem soturno e agressivo, e eu, confrontado com a amabilidade desarmante que o define nos dias de hoje, tenho dificuldades em acreditar, mas enquanto caminho sozinho pela casa vazia dos meus avós maternos, vejo os sinais desse passado.

As portas grossas, pesadas e ruidosas da casa possuem três fechaduras e duas travas de ferro. As fechaduras comportam chaves maiores do que as minhas mãos. O movimento rotativo das chaves abana toda a estrutura da porta à medida que o intrincado mecanismo de linguetas encerra a casa com o resguardo preventivo de um castelo medieval à espera das tochas e dos engaços de uma multidão enlouquecida. Na antiga sala de estar os sinais multiplicam-se. Nas fotografias a preto-e-branco de familiares mortos – de tuberculose, de desgosto, em acidentes de trabalho, de cirrose, na guerra, por motivos desconhecidos – não se observa um sorriso. A base metálica do ferro de engomar era aquecida por brasas cuja incandescência deixaram cicatrizes na ponta dos dedos da minha mãe. A lamparina a azeite que era a única fonte de luz numa casa onde viviam seis pessoas. Um pequeno armário expõe com frieza museológica os pertences íntimos do meu bisavô – um relógio de bolso (que ainda funciona), um garrafinha minúscula com água-de-colónia (que ainda perfuma) um canivete enferrujado (que não abre) e um par de óculos (com apenas uma lente).

Ando pelo corredor escuro que percorre a sala, a cozinha e os quartos. Toda a casa acumula em colecções dispersas os objectos dessa vida agreste: atiçador de brasas, canetas de tinta permanente, cartões-postal das colónias, gravuras religiosas e souvenires daqueles que fugiam para a França. Sou obrigado a desviar a minha cabeça para não magoar as pequenas andorinhas brancas de porcelana suspensas no ar. No final da tarde, sem os óculos, olho para elas, para o seu movimento delicado que dança em ciranda com o vento e com as cortinas, e imagino-as vivas, a voar em órbitas singelas. Entro nos quartos, agora vazios, e vejo as camas que ainda hoje são arrumadas com lençóis limpos todas as semanas. Sou obrigado a baixar novamente a cabeça. As molduras das portas são baixas, como eram as pessoas que ali dormiam.

Agora, no presente, olho à minha volta, para as caras que povoam a mesa da sala de jantar na casa de uma amiga. Conversa-se, pela quarta ou pela vigésima vez, sobre os méritos e os deméritos do novo iPhone. Sei o que quero dizer: não vejo nenhum melhoramento significativo entre o Nokia 3310 de 2002 e o iPhone 6 de 2014. Ambos são usados exactamente com o mesmo fim – comunicar através de palavras (e para assegurar as mães de que continuamos vivos e bem alimentados). O mundo não mudou entre um teclado com botões e um ecrã táctil. Mas nada faço; calo-me e ouço.

A experiência passada ensinou-me que estas intervenções são mal recebidas (até mesmo agora, relendo aquelas palavras, reprovo a minha pretensiosidade nostálgica), mas não consigo evitar que elas surjam na minha cabeça. Eu sou o que sou e não há nada a fazer. Não consigo evitá-lo - odiar aquela conversa, odiar os móveis da IKEA onde nos sentamos, odiar o apresentador eufórico que promete dinheiro na televisão ligada (para fazer ruído de fundo, não é?) durante o jantar. Não consigo evitar tudo isto e não consigo deixar de me interrogar: a vida do passado era difícil e por vezes cruel, mas pelo menos não duvidavam se aquilo que chamamos de cultura e inovação não são apenas fogos-de-artifício que explodem para nos distrair enquanto mãos nos separam de tudo que faz de nós humanos. E o pior vem depois. O pior é pensar - ao deparar-me com a última ronda de publicação de fotos privadas de celebridades - que estamos a abandonar, muito entusiasmados, o maravilhoso primitivismo animal, para abraçarmos, como uma turba alucinada, os enfeites brilhantes da masturbação digital.

Sei que a defesa do passado é uma causa perdida. A nostalgia não passa de uma ilusão delicodoce. Sei que não possuo argumentos fortes. O uso básico da razão é suficiente para retirar a todas as palavras que escrevi a massa que as sustenta. Este é um caso emotivo. Eu penso o que penso, sinto o que sinto e sou o que sou. A razão diz-me que caminhamos em direcção a um ideal incerto de progresso e que, como tudo, este tem benefícios e malefícios. Mas não consigo deixar de sentir que estamos a caminhar de mãos dadas em direcção a um precipício. Com medo das emoções, contentamo-nos com o alívio proporcionado por sensações fugazes. Aterrorizados pelas possibilidades do silêncio, aceitamos um entorpecimento gratuito. O mundo já não gira: ele pisca, vibra e recebe wi-fi. Mas a verdade continua a mesma: hoje, como há dez mil anos, quando abandonamos o significado, a razão engole tudo. Os antigos sofriam e não sorriam nas fotos, mas pelo menos, durante o jantar, não tinham que testemunhar isto: os sorrisos ensaiados das caras obcecadas em gravar obsessivamente o quotidiano em fotos e vídeos. Desprezamos o passado. Idolatramos o futuro. O presente desaparece, perdido algures entre os terabytes dos discos rígidos, pens e clouds.