quinta-feira, 10 de julho de 2014

O Fascismo da Pró-Actividade


"Can you believe it? Fifty miles from McDonald's. I didn't think there was anywhere in the world that was fifty miles from McDonald's." - Neil Gaiman

Nos meus piores momentos, admito, não tenho uma opinião positiva sobre a humanidade. Não é uma perspectiva detentora de raridade exótica. Os prazeres da misantropia provavelmente existem desde que dois homens decidiram partilhar a mesma caverna. O reconhecimento do inferno alheio é algo que qualquer pessoa, seja por dez minutos ou por dez anos, já sentiu. Não é necessário ir longe. Basta ligar qualquer televisão ou tentar discutir qualquer assunto político e perceber que, na sua larga maioria, os seres humanos não passam de algoritmos glorificados, programas que respondem de uma maneira tristemente previsível face à presença de certos estímulos.

Apenas por diversão, façam o seguinte. Defendam o desmatamento da Amazónia. Tentem argumentar que a ajuda externa destruiu a economia do continente africano. Afirmem que a aritmética garante que o corte de pensões é inevitável. Declarem que o Holocausto causou menos dor ao mundo do que qualquer álbum dos U2. Aquilo que responderão será o seguinte: a Amazónia é um património inviolável, mandar dinheiro para África é bom, cortar pensões a velhinhos é cruel e os U2 são o maior fenómeno musical do século XX.

Leio anúncios de emprego. O desespero. A tragédia. O horror. As minhas mãos ganham vida própria e insistem em tentar tapar os meus olhos. É um esforço inútil. Através das frestas entre os dedos, vejo que as minhas hipóteses de sobrevivência neste mundo moderno são ténues. Afinal de contas, querem pessoas com “cinco anos de experiência”, “fluência em alemão e francês”, “facilidade de comunicação”, “boa apresentação”, “espírito empreendedor”, “determinação”, “capacidade de liderança” e “espírito de equipa”. São todas exigências razoáveis. Aquilo que destrói a minha vontade de viver e que me impele a saltar para o fundo do precipício mais próximo é a “pró-actividade”, um atributo que, garantidamente, nove em cada dez empregadores não saberão definir.

Selecciono os anúncios de emprego. Vou às entrevistas. Na recepção estão algumas dezenas de pessoas da minha idade, vestidas com o seu melhor fato-de-ir-à-missa, a variarem a sua atenção entre os telemóveis silenciosos e os quadros pendurados na parede, para onde os seus olhos apontam com a incerteza de um passageiro desesperado por um lugar no último bote salva-vidas. Chega a minha vez. Entro na sala. Três homens de meia-idade estão sentados numa mesa em disposição paralela de júri. Parecem entediados. Sento-me na cadeira vazia. As perguntas de rotina aparecem. Pedem-me para descrever o meu percurso académico e profissional. Pedem-me para enumerar as razões que fazem com que eu seja o “candidato ideal” para esta vaga. Perguntam-me por que razão sou superior aos restantes candidatos. Respondo a todas as questões. Sorrio. Rio das pequenas piadas que contam. Resisto ao impulso de coçar o nariz. Mantenho a compostura. Perguntam-me se sou “pró-activo”. Perco a compostura.

Não, digo eu, não sou pró-activo. Também não sou um sociopata com superpoderes, que é aquilo que o vosso anúncio parece descrever. Não tenho a capacidade de prever o futuro. Não sei antecipar as dificuldades. Sou preguiçoso, indiferente e indisciplinado. Se me contratarem, vou passar o dia a navegar a Internet e a fingir que trabalho. Vou roubar cápsulas de café da máquina Nespresso que está na recepção. Tendo em conta o salário miserável que oferecem, até vou roubar rolos de papel-higiénico. Nem sequer tenho a certeza do nome desta empresa. Aliás, já me esqueci dos vossos nomes. Em certos dias, quando vier para o trabalho completamente bêbado, nem me lembrarei do meu próprio nome. Não sou motivado. Estou aqui apenas a contar os minutos até me qualificar para receber o subsídio de desemprego. Não trabalho bem em equipa. Não, não vou “dar tudo pela empresa”. Vocês fazem publicidade digital para pequenas empresas. Pelo amor de deus, não estamos nas trincheiras de Flandres. Não é preciso levar isto tão a sério. E, já agora, meus senhores, peço desculpa, mas eu aconselharia a esta empresa um sério investimento em rebuçados de mentol. Sem ofensa, mas os vossos hálitos cheiram a merda. Já fizeram todas as perguntas? Posso sair? Meus senhores, muito boa tarde. Cumprimentos às famílias.

Acordo. Estava a fantasiar. Percebo que passei demasiado tempo a fingir que estava a pensar numa resposta para a pergunta. Considera-se pró-activo, perguntam eles. Sim, respondo eu, sou “pró-activo”. Não somos todos?

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Roger

Roger Federer é um tipo simples. A esposa está esteticamente distante das super-modelos que normalmente abrilhantam as bancadas dos jogos dos cônjuges e namorados (ver, a título de exemplo, a mulher mais deslumbrante do mundo). Juntos têm dois pares de gémeos e é impossível, ao ver aquela família, não imaginar um lar agradável e harmonioso. O jogo do suíço é tão natural e relaxado quanto parece ser toda a sua vida. Como desportista, conquistou tudo; ao juntar a sua genuinidade humana, conquistou uma legião mundial de fãs. Roger é um homem inteligente, um gentleman cordato e ajuizado. Tem o ar confiante, discreto e ponderado que faz toda a gente afirmar sem reservas que lhe confiaria os filhos só de olhar para ele. No court e na rua, demonstra uma invejável compostura (excepção feita a estes deliciosos bloopers numa entrevista a Pedro Pinto, e estes, ainda mais irresistíveis, com Nadal, numa publicidade a um jogo de caridade). E, por referir o espanhol, os seus duelos históricos com Rafa são tão épicos que até os leigos do ténis apreciavam a rivalidade no seu apogeu, naquele contraste de estilos tão gritante.

Wimbledon é o meu torneio predilecto. Não sei dizer se é a graciosidade estética do verde da relva, se os tradicionais equipamentos brancos, se o ritmo frenético de jogo. É onde o ténis atinge o seu ponto mais legítimo. Foi para ser jogado em Wimbledon que o jogo foi inventado.

Djokovic, o seu oponente na final de ontem, é um adversário à parte. Tem uma regularidade e firmeza inéditas no circuito. Em qualquer que seja o terreno, qualquer que seja o adversário, a vitória de Djokovic é altamente expectável. Isso é ao mesmo tempo admirável e fastidioso. O seu jogo parece previsível, monótono, e no entanto é de uma eficiência notável; escolhe sempre o movimento certo no momento certo, e combina-o com execuções técnicas irrepreensíveis. Djokovic nunca perde o ponto, é preciso ser o adversário a ganhá-lo.

Federer não é desses aborrecimentos: limitar-se a responder é de uma simplicidade ultrajante. Roger quer fantasia, quer vertigem, quer tornar o impossível realizável à frente dos nossos incrédulos olhos. A recuperação do quarto set é um triunfo psicológico brutal, ao trepar o iceberg que é Djokovic com 5 jogos consecutivos de concentração, crença, perseverança e mestria. No quinto set, cedeu o jogo de serviço que não podia ceder. Não é assim que terminam os filmes.

Depois do pior ano da carreira, sem sequer atingir uma final de Grand Slam, Federer deixava-nos tristes. Nada temos a ver com o assunto, mas a queda de um génio põe-nos sempre comovidos. Esta final de Wimbledon era, para Roger no seu auge, o mínimo exigível. Para um Federer questionado pelas exibições medíocres, repleta de erros e de uma excruciante falta de confiança, foi mostrar que pode-se perder a forma, podem-se perder encontros, mas a capacidade de nos fazer contemplar o seu jogo com a admiração apenas destinada aos grandes artistas é algo que irá perdurar nos courts, e no nosso imaginário.