sábado, 29 de setembro de 2012

Sangue, suor e lágrimas de sangue

"Os mistérios da vida" são um conjunto de quatro palavras utilizadas por maus escritores para começar frases banais e pelos sábios populares para tentar impingir alguma sabedoria barata em assuntos que eles não dominam. É também por aí, temo, que esta crónica irá começar e, subsequentemente, descarrilar. Portanto, se estiverem dispostos a sofrer e a perdoar a minha pobre escolha de palavras para o início desta crónica, aqui vai.

Ah, os mistérios da vida... São complexos e infinitos, e muitos outros adjectivos relativos à extensão vasta dos fenómenos terrenos. Neles se podem incluir as dúvidas do foro filosófico-existencial-religioso sobre o início do Universo e o sentido da vida. São as complicações das instituições humanas, nas suas diversas manifestações políticas e sociais, e também incluem os mistérios das relações sociais, nas suas diversas modalidades de amizade, inimizade, amor e indiferença. No entanto, o assunto sobre o qual tentarei dissertar não está incluído nestas categorias enigmáticas. O assunto desta crónica são os mistérios do corpo humano.

Quem já viu o Woody Allen em acção, encarnando personagens neuróticas e obsessivas nos seus filmes, sabe certamente o que são os mistérios do (nosso) corpo. Como somos criaturas frágeis, somos susceptíveis a um conjunto diverso de maleitas e lesões que podem trazer um fim abrupto à nossa jornada despreocupada por este planeta. O hipocondríaco que vive em todos nós sofre pelos diversos sinais e sintomas que surgem esporadicamente e nos alertam para o perigo real e imaginado que é a morte.

Quando, há dois meses, acordei com uma dor lancinante na pálpebra inferior do olho esquerdo, imediatamente pensei o pior. Um diagnóstico prematuro surgiu depois da minha consulta inicial com a autoridade médica omnisciente que é o Google. Era cancro. Um tumor cerebral. Um enxerto maligno. A chaga do século XXI. Uma enorme massa de células mal formadas a brotar no meu cérebro destinadas a acabar com a minha vida ou, pelo menos, a minha visão. Uma semana depois, no local da dor, surgiu uma pequena elevação inflamada. Ainda paranóico, mas decidindo não confiar nos poderes científicos da Internet, marquei uma consulta com um oftalmologista.

O médico aparentava ter uma centena de anos. Tinha uma voz grave, ríspida e baixa. Os seus fartos cabelos brancos confundiam-se com a tez cadavérica da sua pele que, por sua vez, confundia-se com o branco industrial da sua bata. Ele era uma daquelas pessoas imersas num mar de bom humor permanente, talvez por saber quanto ele receberia por aquela consulta (humor, desespero e surpresa - a santíssima trindade de coisas que não devem ser expressadas por médicos). Mostrava também a característica mais irritante que um médico pode ter - arrogância. Ele falava num tom jocoso e académico, como se fosse um oráculo supremo a conceder pérolas de conhecimento ao paciente leigo, ingénuo e confuso.

Quando, depois de uma examinação avançada a olho nu, ele revelou que era apenas um calázio, respirei de alívio. Por cinco segundos. O médico informou-me que seria necessário um pequeno procedimento cirúrgico para remover o calázio. Mandou-me deitar na mesa de operações da sala ao lado. Uma enfermeira entrou na sala e aplicou líquido anti-séptico à volta do meu olho. O médico entrou e, com uma injecção na pálpebra inferior, aplicou a anestesia. Cinco minutos passaram. A anestesia começou a fazer efeito e eu já não sentia qualquer toque à volta do olho esquerdo. O médico pegou num bisturi. Fiz uma pergunta:

- Em que consiste o procedimento?
- Se eu lhe disser, eu já não lhe sirvo. O jovem pode fazer a operação sozinho - disse ele, sorrindo.
- Sim, doutor, mas eu não estou a tentar descobrir os segredos do seu ofício para abrir o meu próprio consultório. Eu só quero saber o que é que o homem a segurar um bisturi vai fazer ao meu olho.
- Não se preocupe.

O que o médico não sabia era que, para mim, a frase "não se preocupe" é a frase mais inútil da língua portuguesa. Ele não disse nada e sorriu mais uma vez. O bisturi aproximou-se do meu olho. Temi espirrar. Temi a instabilidade da mão do médico que provavelmente estava vivo durante do Regicídio de 1908. Eu pensava que a operação duraria cinco minutos. Acabou por durar vinte. Já estive em acidentes de carro. Já fui assaltado com recurso a uma faca. Uma vez quase me afoguei numa piscina de ondas. Mas durante aqueles vinte minutos passei por uma das experiências mais aterradoras da minha vida. Não só eu estava completamente consciente, como também tinha os olhos abertos. No meu campo de visão eu via duas pessoas a olharem directamente para mim enquanto aplicavam a ponta afiada de várias ferramentas cirúrgicas no meu olho. A anestesia não funcionou. Aliás, funcionou, mas apenas parcialmente. Eu conseguia sentir o que eles estavam a fazer. Não era apenas desconfortável. Era doloroso. A dor era suportável, mas como a carnificina estava a ser realizada num olho, digamos que não é uma experiência que eu queira repetir. Sinceramente, acho que preferiria cancro.

Ah, os mistérios da vida. Sao complexos e infinitos. Tumores malignos acabam por ser calázios benignos. Liberais acabam por ser socialistas. Nada parece o que é. Há coisas que não têm resposta. Deus sabe. Tudo isso e mais uma série de clichés expressos pelos provérbios populares. A única coisa que eu sei é que existem mistérios da vida que são simples, mistérios da vida que são complicados e mistérios que acabam por ser dolorosos. Estes últimos devem permanecer mistérios eternos. Os mistérios do corpo humano são fascinantes quando envolvem as outras pessoas mas, quando somos nós as vítimas, estes acabam sempre por envolver bisturis e sangue.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Filoctetes

O André Mota já havia aqui falado das produções literárias e filosóficas dos gregos clássicos; partilhamos esse fascínio por seres que, perdidos num tempo de obscuridade e desconhecimento, alcançaram por via da razão as mais espantosas conclusões acerca da natureza humana e cósmica, e as propagaram até que chegassem até nós, que vivemos numa época de informação absoluta e acessível e procuramos, ainda assim, a sua ajuda, a destes génios que pereceram há 2500 anos, na procura da iluminação. Assim vos apresento uma passagem de Filoctetes, uma notável peça de Sófocles, um dos pais da arte dramática.

A contextualização é simples: após ter sido mordido no pé por uma víbora venenosa, Filoctetes é abandonado numa ilha deserta, sem nada mais do que o seu arco, que durante dez anos usou para caçar e subsistir-se, já que não consegue deslocar-se senão com grandes dificuldades. Quando Ulisses e Neoptolemo o ludibriam e assim se apoderam do seu arco, tentando convencer Filoctetes a voltar com aqueles que o abandonaram, este rejeita, apesar dessa decisão significar uma morte lenta e dolorosa. Inutilizado e sem arma com que caçar alimento, Filoctetes volta para a gruta que habita há dez solitários anos e, confrontado com a morte certa no abandono, fala aos pássaros dos quais se alimentou durante a sua estadia, preparado para "pagar com a morte a sua morte":

"Ó gruta de côncava rocha,
abrasadora e gelada! Assim
estava condenado - que infeliz eu sou! -
a não te deixar jamais.
Da minha morte serás única testemunha.
Ó aves rapaces e feras,
e olhar flamejante, que habitais
os montes desta região,
nunca mais da minha gruta vos acercareis
para logo fugirdes. Já não tenho nas mãos,
como dantes, a força dos meus dardos.
Oh! como sou desgraçado agora!
Livre fica este lugar,
não mais é temível para vós.
Vinde, que a altura agora é bela
para saciar a gosto as fauces vingadoras
na minha carne corrompida.
Em breve deixarei a vida.
Donde me virá subsistência?
Quem pode de brisas nutrir-se,
quando já não possui nada
de quanto produz a terra fecunda?"

Raros são os artistas que, por palavras apenas, espelharam de forma tão convincente, aliada a um brilhantismo semântico assombroso para a época, a dor alheia (e ficcionada) perante a inevitabilidade de uma morte sofrida.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Milan Rados Radenovich (1951-2012)


"Então Jesus afirmou - Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá." (João 11:25 - Bíblia Sagrada)

Morte e impostos. É impossível escapar ao seu alcance. São forças poderosas que acabam sempre por nos encontrar numa forma indiferente à nossa conveniência. Pelo menos os impostos são compreensíveis. São o preço que pagamos por uma sociedade civilizada. No entanto a morte pode até ser estudada exaustivamente, mas a sua inevitabilidade, os seus movimentos discretos de vulto, sempre à espreita nas nossas costas, faz com que seja uma verdade irreconciliável com os nossos instintos mais básicos.

Quando alguém da nossa vida morre, além da tristeza que vem com a perda humana irreparável, surge também uma advertência que nos lembra da nossa própria mortalidade. Lembra-nos que somos apenas carne, sangue e células no meio de um equilíbrio frágil e instável com os elementos de um universo desprovido de significado.

Milan Rados Radenovich morreu, neste sábado, aos 61 anos de idade, terminando em Espanha um percurso que se iniciou na antiga Jugoslávia. Não conheço bem os detalhes da sua vida pessoal. Sei que, em primeiro lugar, foi um filho, irmão, marido e pai. Às pessoas da sua vida não tenho nada a oferecer senão as minhas sentidas condolências. Foi também jornalista, autor e professor universitário. É no seio destas competências que posso oferecer o meu humilde testemunho.

Frequentei três cadeiras leccionadas pelo Professor Milan Rados durante a minha frequência do curso de Ciências de Comunicação na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Foram estas - História do Mundo Contemporâneo; Ciência Política; Relações Internacionais.

Nenhum outro professor me inspirou tanto interesse nas cadeiras que leccionava como o Professor Milan Rados. O que me marcou não foi apenas a sua personalidade lendária que incluiu para sempre no imaginário cultural do curso um conjunto de chavões humorísticos que todos os alunos (cervejeros!) que passaram pelas suas salas de aula certamente se lembram. O que me marcou foi o ambiente que o professor impingia nas suas aulas.

Não eram apenas palestras onde o professor limitava-se a enunciar a matéria exposta em apresentações de Power Point. As aulas podiam ser apenas isso, mas a sua boa vontade acabava por transformar aquelas duas horas em debates e simpósios. Cheguei a estar presente em aulas onde quase não se falou sobre a matéria do programa da cadeira. Discutiam-se opiniões sobre assuntos da actualidade. Criavam-se cenários hipotéticos no campo das relações internacionais - passamos uma hora a discutir a possibilidade da ocorrência de uma Terceira Guerra Mundial.

Essa liberdade retórica fazia com que as aulas fossem mais do que a simples transmissão asséptica e inofensiva de conhecimentos formais. Criava uma sede sem fim pelo conhecimento universal. Aspirava a dar aos alunos os benefícios da relação simbiótica entre saberes teóricos e aplicações práticas. Acordava-nos para realidades impossíveis, deixando-nos inconformados com o triste estado deste mundo. E incutia aquilo que eu considero a maior dádiva de uma educação universitária - a liberdade de pensamento - que nos permitiria formar opiniões independentes e, quem sabe, encontrar alternativas e soluções.

O Professor Milan Rados morreu, mas eu nunca aceitarei a sua morte. Aliás, nunca aceitarei a morte. Recuso-me. Ela acontecerá na mesma, disso não tenho dúvidas. A espécie humana olha para a morte e vê um inimigo. Algo a ser erradicado. Assim como acredito que um dia iremos dominar o espaço sideral com o nosso engenho e criatividade, creio que um dia, muito distante do presente, a raça humana irá dominar a morte, fazendo com que esta possa apenas ocorrer segundo a nossa vontade. As pessoas que admiramos e gostamos deixarão de ser afectadas por esse empecilho supremo que é a morte. Mas, até lá, as pessoas que gostamos e que já se foram, e nestes incluo o Professor Milan Rados, terão que, tragicamente, se contentar com as limitações de continuar a viver apenas nas nossas memórias.

Não acredito em Deus. Não acredito em nenhuma forma de transcendência objectiva. Mas se existe alguma coisa que me faz sentir romântico sobre a espécie humana, é isto. A nossa capacidade de prolongar a vida dos mortos. A nossa memória colectiva habitada por familiares e amigos perdidos. A teimosia milenar da nossa recusa da morte. A nossa luta para transformar a inevitabilidade e a impossibilidade em conceitos do passado.

domingo, 23 de setembro de 2012

A relação dos portugueses com a democracia

Isaltino Morais: Presidente pela primeira vez em Oeiras em 1985. Em 2005, é arguido em processos de corrupção passiva, fraude fiscal, branqueamento de capitais e abuso de poder. O PSD, por isso mesmo, não o apoia na sua candidatura para a autarquia. Ainda assim, alcança a eleição, enquanto independente, com 34% dos votos, sob a égide de campanha "Isaltino - Oeiras Mais à Frente". Em Agosto de 2009 é condenado a sete anos de prisão, perda de mandato e uma indeminização de cerca de meio milhão de euros. Consegue, através de recursos ao Ministério Público, suspender a pena antes das autárquicas, de 11 de Outubro, podendo assim voltar a candidatar-se: é eleito com, desta vez, 41,52% dos votos. 

Fátima Felgueiras: Presidente da Câmara Municipal de Felgueiras, vê-se em 2003 acusada de corrupção, sendo emitida uma ordem de prisão preventiva em seu nome. Deserta para o Rio de Janeiro por ter dupla nacionalidade brasileira. Em Setembro de 2005 regressa a Portugal. É tão rapidamente detida quanto libertada, esperando por julgamento em liberdade. Candidata-se às autárquicas de Outubro do mesmo ano como independente: é eleita.

Valentim Loureiro: Eleito para a Câmara de Gondomar pela primeira vez em 1993. Re-eleito em 1997 e 2001. Em 2005, o PSD retira o seu apoio partidário devido ao escândalo "Apito Dourado", cujo processo judicial lhe dedicou quatro anos de pena suspensa em 2008. Candidata-se, porém, nas autárquicas de 2005 como independente: é eleito.

Exemplos de escolhas eleitorais por completo incompreensíveis e que só podem ser motivo de preocupação, para não estar a perder tempo em estilizar insultos. Numa altura em que foi recentemente publicada uma sondagem da Universidade Católica, que demonstra que 87% dos portugueses estão desiludidos com a democracia, e que não é para menos, convém não esquecer que somos nós que elegemos os políticos que tanto gostamos de insultar. A desresponsabilização do eleitorado num regime democrático é meio caminho andado para o sistema estar condenado. Se os governantes têm de assumir responsabilidades perante os governados que os destacam para essas funções, ressalta a gravidade da importância dessas escolhas, que emergem como corolário e são sintomáticas do nosso grau de ética e cultura. Nomear políticos que são reconhecidamente corruptos faz de nós mais conscienciosos cúmplices que eventuais vítimas e é indesculpavelmente anti-democrático. Só restam duas possíveis explicações: profunda ignorância e/ou conivência, desde que os nossos interesses estejam a ser atendidos, sem querer saber a por que meios e com que consequências.

As autárquicas vão ser daqui a sensivelmente um ano e era de muito bom tom que não estivessem novamente envoltas neste ensandecimento nada distante.  

sábado, 22 de setembro de 2012

Lipofobia


Fui recentemente convidado a ler uma crónica de Margarida Rebelo Pinto, que remonta ao ano de 2010, mas a qual nunca havia tido o prazer de ler, por confessa ignorância minha relativamente às publicações da autora. O texto foi recentemente alvo de grandes críticas quando atingiu alguma notoriedade nas redes sociais, e, ainda que não com a melhor pertinência temporal, quero juntar a minha voz à indignação pública; faço-o, no entanto, por motivos que serão em parte dissonantes das críticas que já proliferaram.

O tema da crónica é simples: as gordas. Mais concretamente, e de forma a não deturpar as idiossincrasias semânticas da autora, as gordinhas. Chamar-lhes gordinhas tem um propósito, que quem ler a crónica facilmente identificará como uma ironia, dentro da ironia, dentro da ironia, num Inception estilístico delicioso. A autora ressalva que o termo gordinhas serve para distinguir uma categoria especifica entre as gordas, que a própria define como "aquela amigalhaça companheirona que desde o liceu cultivava o estilo maria-rapaz, era espertalhona e bem-disposta, cheia de energia e de ideias, sempre pronta para dizer asneiras e alinhar com a malta em programas".

É sacrilégio tentar resumir uma peça literária de tanto calibre, mas vou ousar. Ora diz a autora que as gordinhas têm mais direitos de mau-comportamento social por serem gordas, e que as bem-constituidas gostariam de poder cometer os mesmos pecados sem serem confrontadas com um, e passo a citar, "inquisidor de serviço a apontar o dedo para lhe chamar leviana, ordinária, desavergonhada e até mesmo porca". Entre os direitos sociais de que apenas as gordinhas beneficiam, a autora lista "poder dizer palavrões, falar de sexo à mesa, apanhar grandes bebedeiras e consumir outras substâncias igualmente propícias a estados de euforia, inclusive fazer chichi de pernas abertas num beco do Bairro Alto".

A realidade lisboeta é certamente muito diferente da portuense. Sendo eu um orgulhoso nativo da invicta, observo com prazer que, nesta libertina cidade, todas as mulheres, independentemente do índice de massa corporal, dizem palavrões como vírgulas, falam abertamente de questões sexuais e apanham bebedeiras eufóricas quando bem lhes aprouver. No Porto, nunca vi nenhuma mulher ser condenada por estes pecados. Mas vamos assumir que a autora fala a verdade e que, nos círculos que frequenta, estas liberdades não são concedidas às "miúdas giras". Mesmo assumindo este cenário, é de observar que Margarida Rebelo Pinto quer os benefícios de ser gordinha, sem ter de arcar com as consequências negativas das banhas. Estando eu longe de ser uma gordinha (sou homem e escanzelado), arrisco-me a dizer que as gordinhas trocariam sem hesitar o direito de mijar na rua pelo olhar guloso dos homens e o olhar invejoso das outras mulheres. Perdoem-me a aparente piada de mau gosto, mas a autora fala de barriga cheia.

Jamais serei polícia de bons costumes. O que me incomoda no texto não são as críticas feitas às gordinhas e à forma como a sociedade as trata de forma diferente. Como quem dispara de metralhadora ao calhas acaba por atingir alguém, a autora acerta em alguns pontos. As gordas são, de facto, alvo da pena e comoção social; daí, como a autora sagazmente observa, ninguém lhes dizer diretamente que o são.

O texto é perturbador vários níveis, mas nenhuma passagem específica da crónica me indigna mais do que a condescendência que banha todas as palavras. Uma condescendência que não se limita a ser dirigida às gordinhas, como é também uma sobranceria intelectual, que incomoda bastante quando se trata de um texto em que a autora, independentemente das barbaridades que profere, recorre abusadamente a clichés, revela uma fraca destreza com as palavras e em que cada tentativa de ironia é embaraçosamente forçada.

Destaco também a forma como a autora distingue gordinhas e giras, ao invés de recorrer à óbvia antonímia gordinha e magrinha. Esta distinção incomoda porque existem magrinhas feias. Eu conheço-as e a autora, se alguma vez olhou para as contracapas dos seus livros, conhecerá também.

Sendo a adolescência uma fase decisiva na definição da personalidade, é inegável que a gordura que reveste um jovem tem influência na moldagem das suas características futuras. As gordinhas têm baixa auto-estima e são divertidas, porque se o interior fosse tão desinteressante como o exterior, ficariam totalmente descartadas da corrida por um parceiro sexual. No entanto, a complexidade dos factores que definem a individualidade deve levar-nos a ter redobrado cuidado com as generalizações. Já conheci gordinhas simpáticas e antipáticas, bêbedas e abstémias, puritanas e ordinárias, inteligentes e acéfalas. Além disto, quem ler a crónica fica com a ideia de que só existem dois tipos de pessoas que bebem: as gordinhas, para afogarem o desgosto de serem gordas e com o intuito de aumentarem a sua popularidade, e os homens, para comerem as gordinhas. E eu, que já carreguei magrinhas desmaiadas pelo álcool (até porque as magrinhas cedem mais facilmente pelo parco peso corporal) tenho uma consciência diferente da realidade do alcoolismo jovem. Mas, neste ponto, dou o braço a torcer. A autora, pela idade, experiência e popularidade, terá já conhecido bem mais gordinhas que eu; até porque, como diz a autora com muita pertinência, as gordinhas não despertam muito o nosso interesse.

A autora sabia que ia provocar uma onda de choque com este texto; não tenho dúvidas de que essa consciência foi o que mais a motivou a publicá-lo. Escritores destes vivem do povo, das massas, seja por via da admiração seja pela indignação. E eu, pasme-se, concordo com a cronista; às vezes temos de deixar o politicamente correto de lado e dizer as coisas como elas são.

Assim sendo, cara Margarida, desejo que o seu próximo AVC não demore muito a manifestar-se.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

O Estado Socialista e o estado a que isto chegou

A manifestação de 15 de Setembro e a glorificação barata que se seguiu das motivações dos revoltosos produz um belo retrato sociológico deste país. Os portugueses reclamam e criticam de uma forma tão grosseira e ignorante que não é possível pensar na manifestação como mais do que apenas uma emanação física de todos os erros do passado e do desejo pulsante de continuar a cometê-los.

Os portugueses parecem não conseguir assimilar esta verdade absoluta: não existem medidas, soluções e alternativas indolores para ultrapassar esta crise. Qualquer pessoa que diga o contrário está incluída numa destas hipóteses:

a) É estúpido

b) É ignorante

c) É mentiroso

d) É louco

e) É socialista (todas as anteriores)

f) É comunista (todas as anteriores)

g) É o António José Seguro* (todas as anteriores)

O país foi virtualmente à falência. Aquilo que nos levou à falência foram as ideias que a maior parte dos portugueses (e a quase totalidade dos manifestantes) ainda defende. A única coisa que nos separou da bancarrota oficial (alternativa que mostraria aos portugueses o que é a verdadeira austeridade) foi a intervenção e o empréstimo concedido pelo Tróica. É por causa dessas três instituições (BCE, FMI, CE) que ainda é possível manter um funcionamento relativamente estável das instituições públicas e dos serviços que elas proporcionam.

Existe uma abundância tremenda de coisas para criticar na conduta governativa da coligação entre o PSD e o CDS. Mas nenhuma das querelas dos manifestantes apresenta a validade necessária para constituir uma crítica, quanto mais uma crítica construtiva. Criticar envolve diagnosticar o erro e apresentar uma alternativa e isso, para um português, representa uma responsabilidade grave e sufocante.

O Passos Coelho não é um “gatuno”. Ele não está a cortar salários e a amealhar o dinheiro dos contribuintes numa conta pessoal nas Ilhas Caimão. Ele não tem um jacto à espera dele num aeroporto privado para o caso de ser necessário uma fuga repentina. Ele nem sequer é o verdadeiro culpado desta austeridade.

A austeridade actual só tem um culpado: os portugueses. É por causa da pressão pública que o governo está relutante em fazer reformas estruturais e os cortes necessários na despesa pública. É por causa da revolta juvenil portuguesa que o Governo está a sanear as contas públicas da forma mais branda possível, instituindo sequências de meias-soluções para resolver problemas enormes. O único resultado que pode surgir é o prolongamento incerto do sofrimento.

Quando o Governo corta salários e aumenta impostos, está a fazê-lo para maximizar a receita fiscal. E, digo mais uma vez, essa receita não vai para o bolso dos políticos. Essa receita é utilizada para pagar tudo o que os portugueses exigem do seu governo: saúde, educação, segurança social, transportes e segurança. Essa receita é utilizada para pagar o salário daqueles que mais reclamam: os funcionários públicos. O malfadado corte do subsídio de Natal e Férias aos funcionários públicos foi feito para que fosse possível pagar os restantes doze salários.

Não se enganem. A austeridade actual é o modo que o Governo arranjou de vos manter minimamente satisfeitos. Se o Primeiro-Ministro fizesse aquilo que ele defendia antes de chegar ao poder, os portugueses ficariam chocados com o que seria necessário para conseguir atingir esses objectivos.

Seria necessário despedir dezenas de milhares de funcionários públicos, extinguir e privatizar empresas públicas, realizar cortes abrangentes no Sistema Nacional de Saúde, diminuir a presença do Estado na Educação e reformar (cortar) a Segurança Social. Só assim seria possível cortar verdadeiramente a despesa pública, eliminar o défice e iniciarmos uma trajectória económica que permitiria começar a diminuir a dívida pública a longo prazo.

Mas se o Governo fizesse isso, os portugueses não votariam no PSD e no CDS nas próximas eleições. Se o Governo fizesse aquilo que é necessário, os portugueses votariam naquele homenzinho simpático de óculos que promete dinheiro e emprego para toda gente. Se fossem confrontados com o peso da realidade, os portugueses iriam preferir as promessas tóxicas do *Pai-Natal socialista que diz que a culpa não é nossa e que, afinal, somos todos bons meninos e merecemos muitos prendas.